Edição 270
Extensão da responsabilidade patrimonial – Sem equilíbrio não há solução
15 de fevereiro de 2023
Advogado / Professor de Direito Processual

Não se conhece fórmula perfeita pra superar os problemas que, no Brasil, impedem a execução civil de ser eficiente e efetiva, sem que se abra mão da estrita observância do devido processo legal. A busca de soluções adequadas começa por um diagnóstico correto e, sem embargo do contexto heterogêneo (por exemplo, Fazenda Pública – como credora ou devedora – é um capítulo à parte), é possível identificar pelo menos duas grandes vertentes a partir das quais podem ser obtidos resultados mais satisfatórios: uma é a do aperfeiçoamento das técnicas executivas; a outra é a do alargamento da responsabilidade patrimonial. Na primeira, inscrevem-se temas como simplificação e racionalização do processo, incentivos para o adimplemento voluntário, mecanismos indiretos de coerção, emprego de tecnologia (inclusive o de inteligência artificial) e até a proposta de delegar atividades a entes privados; na segunda, alinham-se temas como garantias reais ou pessoais, relação entre pessoas que integram grupo econômico, fraude contra credores e de execução, alienação da coisa litigiosa, desconsideração da personalidade jurídica e sucessão empresarial.
Embora o mercado seja sensível a ambas vertentes, é seguramente na segunda que parece residir o maior desafio. Se o sistema não é apto a satisfazer o credor a partir de algum patrimônio, não perde apenas o titular do crédito, mas também o interesse público – o que pode ser ilustrado pelo desperdício dos recursos empregados pelo Judiciário e aumento do custo do crédito. Em contrapartida, se o sistema, no afã de proporcionar resultados a qualquer custo, extrapola os limites pelos quais razoavelmente o patrimônio de determinada pessoa se sujeita à satisfação do credor, então o prejuízo não é apenas do titular dos ativos afetados, mas igualmente da coletividade: abala-se a segurança nas relações jurídicas e econômicas e, dessa forma, desestimula-se o investimento. Não é à toa, portanto, que a Lei no 13.874/2019 – qualificada com a da “liberdade econômica” – alterou a redação do art. 50 do Código Civil, quiçá na tentativa de corrigir distorções no tocante à desconsideração da personalidade jurídica.
É realmente difícil dizer onde está o equilíbrio. Contudo, parece possível tentar estabelecer parâmetros para tanto, a partir do ordenamento jurídico. Eis aqui, então, um decálogo, apresentado como tentativa de contribuição sobre tema tão relevante para o mercado.
Primeiro: ter sempre em mente que a regra do ordenamento é a de que a responsabilidade patrimonial é do devedor e, portanto, de que a extensão desse encargo para outrem é exceção.
Segundo: interpretar as exceções à regra da vinculação entre débito e responsabilidade patrimonial de forma estrita ou restritiva, isto é, não de forma ampliativa e com grande cuidado no emprego de analogia. Por isso é que elas são exceções.
Terceiro: fazer a devida distinção entre as diferentes formas pelas quais, de forma primária ou secundária, é possível chegar ao patrimônio de outrem que não o devedor. Fraude é uma palavra técnica no Direito, mas que, ao mesmo tempo, pode ter diferentes sentidos e alcances. Para cada eventual fraude há uma forma de reação adequada do sistema. Portanto, fraude de execução não se confunde com desconsideração da personalidade jurídica, diversas por seus requisitos e efeitos. Desconsideração da personalidade jurídica não se confunde com sucessão empresarial, especialmente pelo fato de que essa última pressupõe que alguém assuma integralmente a posição jurídica de outra pessoa, que, por alguma razão, deixa de existir. Sucessão, por seu turno, não se confunde com a aquisição de ativos de devedor em dificuldades econômicas (inclusive em casos de recuperação judicial) e, quando muito, talvez se possa falar de ineficácia do ato por fraude de execução. Enfim, tratar de forma atécnica as diferentes situações que podem levar à extensão de responsabilidade é desprestigiar a dignidade que tem o sistema jurídico.
Quarto: ter em mente que fraude, embora seja repugnante e deva ser combatida com energia, não se presume. Inadimplemento é fato relevante para o Direito; nem por isso se pode dizer que todo devedor inadimplente seja fraudador. Portanto, é ônus da parte interessada – nos limites compatíveis com as garantias do acesso à Justiça, ao devido processo legal e ao contraditório – alegar e provar a ocorrência de fraude, qualquer que seja a modalidade de que se cogite.
Quinto: considerar que a extensão de responsabilidade patrimonial é usualmente subsidiária. Só deve cogitar da invasão do patrimônio de outrem que não o devedor se e quando tiverem sido razoavelmente exploradas as tentativas de satisfazer o credor a partir do patrimônio daquele que, no plano material, ostenta a dívida.
Sexto: a mera existência de grupo econômico não é, por si só, autorizadora de desconsideração de personalidade jurídica. Esse postulado nem deveria integrar o decálogo, considerando que isso é o que expressamente decorre da lei. Talvez ele devesse dar lugar a um outro postulado: não deixar de aplicar a vontade consagrada na lei, sob o pretexto – expresso ou velado – de que a escolha do legislador não teria sido a melhor. Além disso, quando se trata de grupo, não se deixar levar pelo viés segundo o qual força econômica – na verdade, um sinal de bom funcionamento do sistema capitalista – seria sinônimo de abuso ou de aptidão para arcar com dívidas contraídas por outrem.
Sétimo: não estender responsabilidade patrimonial sem prévia audiência do terceiro. Da mesma forma, isso não precisaria ser dito porque exatamente para isso é que foi positivado no Direito brasileiro o assim chamado incidente de desconsideração de personalidade jurídica – aplicável a todas as demais formas de extensão de responsabilidade patrimonial, por força da regra inscrita no art. 5o, LIV da Constituição Federal. Por precipitarem juízos sobre temas que devem ser analisados com largueza e profundidade, medidas deferidas naquela forma podem gerar julgamentos tão rápidos quanto equivocados. Tão nefasto quanto tolerar manobras fraudulentas é comprometer o patrimônio de quem não deve responder por dívidas de outrem. Portanto, constrições mediante tutela de urgência só devem ser empregadas em hipóteses excepcionalíssimas e, para tanto, o dever de fundamentação e o (alto) nível de exigência da prova devem ser estritamente observados.
Oitavo: lembrar que iliquidez do devedor, ou mesmo ausência de patrimônio suficiente para satisfação de seus credores, não são situações que, por si só, autorizem extensão de responsabilidade patrimonial a terceiros. Aquela primeira, conquanto realmente seja um obstáculo a vencer, pode e deve ser enfrentada com racionalidade e engenhosidade, a partir das ferramentas ofertadas pelo sistema – dentre as quais o eventual emprego de medidas coercitivas indiretas, tendentes a estimular o devedor a contribuir para célere liquidação do patrimônio. A outra (insolvência do devedor), desde que associada a outras circunstâncias, é dado potencialmente relevante para a configuração de fraude de execução; e, claro, pode ser determinante de eventual decreto de falência – mas não para a pura e simples extensão de efeitos dessa última a terceiros.
Nono: considerar que a produção antecipada de prova, com a amplitude estabelecida nos incisos II e III do art. 381 do Código de Processo Civil, pode ser, desde que não haja abuso, medida adequada a investigação patrimonial para revelação de eventuais fraudes, como forma de tutelar o credor e, ao mesmo tempo, não realizar constrições patrimoniais sobre terceiros, desprovidas de fundamento fático ou jurídico. Mas, também nessa hipótese, o contraditório deve ser respeitado.
Décimo: lembrar que toda extensão de responsabilidade patrimonial que desconsidere as regras anteriores pode até gerar uma falsa sensação de que o sistema foi eficiente e efetivo; mas, ter em mente que encontrar a todo custo alguém que pague a conta deixada por outrem não é apenas injusto, mas tem perversas repercussões econômicas, não apenas para o terceiro, mas para todo o sistema, que – justamente por ter essa característica – é interligado.