Fake news e a defesa da democracia

4 de maio de 2023

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Temos diante de nós o dilema das democracias: o risco de uma sociedade vulnerável à desinformação, inclinando-se para onde as redes sociais mal intencionadas tornam patente, revelam, indicam, como instrumentos de manipulação que são.

Há movimentos para coibir as fake news. Cito como exemplo o inquérito que apura ameaças contra ministros do Supremo Tribunal Federal. Houve, igualmente, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre o disparo em massa de fake news durante as eleições de 2018. Na Câmara, tramitam mais de 50 propostas para combater e criminalizar a disseminação de informações falsas. Um dos maiores produtores de notícias falsas do mundo, inclusive por agentes públicos, o Brasil ocupa um lugar relevante neste debate.

É manifesto que não se cuida da liberdade de expressão, protegida pelos incisos IV, IX e X do art. 5º da Constituição. A liberdade de expressão não é um valor absoluto e sua má utilização não pode ser instrumento de ódio, de falsidade, de violação da honra, da imagem e da reserva das pessoas.

Apesar disso, muitos se deixam submergir às fake news. E quem são tais pessoas? A meu juízo, alguns dentre eles não desejam de fato conhecer a realidade. Ficam abastecidos apenas pela visão das sombras projetadas, como na alegoria da caverna de Platão. Outros não podem conhecer a realidade, estão subjugados, dominados pela inteligência artificial.

Cuida-se, pois, de um cenário desolador, exigindo das pessoas independência e uma bagagem cultural de peso que lhes proteja das sombras e dos artifícios tecnológicos. Cabe a cada um de nós saber a diferença entre o que é a verdade e o que parece ser a verdade. A democracia tem esse relevante papel, o de oferecer oportunidade para as pessoas lograrem, concretamente, alcançar essa distinção.

Agora um exercício de fantasia, um devaneio. Platão imaginou uma caverna habitada por seres humanos que dela nunca saíram. Nesta caverna, apenas uma fração de luz do dia entra. Acorrentados uns aos outros, os seres humanos, lá presos, enxergam apenas uma parede ao fundo da caverna. Eles assistem sombras projetadas na parede vazia. E que sombras são estas? São sombras de coisas e pessoas passando em frente ao fogo que se encontra atrás das pessoas acorrentadas. Os sons vindos de fora ecoam pelas paredes da caverna, fazendo com que os acorrentados pensem que se tratam de sons produzidos por objetos, que parecem mover-se sozinhos.

O filósofo procura compreender a Verdade – e aqui destaca-se a verdade com letra maiúscula – por trás das aparências imediatas. Tornando-se sábio, neste processo, ao mesmo tempo busca ajudar os outros humanos a alcançarem a verdade e a sabedoria. Assim como aquele que olha para o fogo pela primeira vez, este é um processo doloroso, ensina Platão, um processo que exige dedicação, que exige capacidade, pois a realidade, olhada com mais proximidade, pareceria menos clara, a princípio, por estar o protagonista acostumado a ver apenas sombras. Dessa maneira, assim como quem passa das sombras à luz, o processo de aquisição da sabedoria é gradativo e, muitas vezes, lento e doloroso.

Questionado sobre o fato de que este seria um grupo de pessoas inusual, e que esta situação seria igualmente inusual, Sócrates – pela escrita de Platão – alerta que estas pessoas são muito semelhantes a todos nós humanos. Em nosso mundo, Sócrates relaciona a luz do Sol com a luz do fogo na caverna, explicando que os fatos do mundo não se apresentam imediatamente. E mais, que a realidade última das coisas pode estar oculta ao olhar menos atento, procurando, desta forma, explicar como chegamos a conhecer as coisas, através de um olhar que ultrapassa a mera aparência imediata e procura – aí vem a parte, a meu ver, capital – a realidade. A realidade e a verdade.

A alegoria da caverna é interpretada, sob essa ótica, de modo culminante, como uma advertência sobre como governantes, sem uma mentalidade filosófica forte, manipulam a humanidade.

A alegoria prossegue e Platão narra que, num certo dia, um dos prisioneiros consegue libertar-se e alcançar o lado de fora da caverna. No início, ao sair da caverna e das trevas que ali reinavam, ele ficou cego, devido à claridade vinda de fora.

Pouco a pouco, gradativamente, seus olhos foram se acostumando à claridade e visualizaram outro mundo. E que mundo era este, visualizado pelo desacorrentado? O mundo da natureza, o mundo das cores, o mundo das imagens diferentes daquelas que antes ele considerava verdadeiras. O universo da ciência e do conhecimento se abria perante ele, podendo então visualizar o mundo das formas perfeitas ou o mundo da verdade, o mundo do conhecimento verdadeiro. Absolutamente siderado pelo conhecimento verdadeiro, ele voltou para dentro da caverna, carregado de emoção e de alegria, para narrar a descoberta aos seus amigos ainda acorrentados, com a intenção notória de também libertá-los. Mas o que acontece? Os acorrentados não acreditaram nele e, então, revoltados com a sua suposta “mentira”, acostumados a permanecer na “zona de conforto”, ameaçaram matá-lo.

Então, que conclusão podemos tirar neste momento da exposição? Resposta: o mundo dos acorrentados é o mundo da imperfeição, o mundo da ilusão, o mundo da mera opinião, o mundo do “eu acho”. O mundo encontrado pelo desacorrentado lá fora é o mundo da verdade, do conhecimento, das ideias, das formas inteligíveis e perfeitas, dos conceitos baseados na verdade.

Agora, vamos fazer um exercício de imaginação, trazendo esta alegoria para o nosso tempo. Temos no cenário que está diante de nós as redes sociais. Isto é um fato. As redes sociais – WhatsApp, Twitter, Facebook, Instagram – essas novas ferramentas de comunicação, passaram a ser também protagonistas de um processo de colocação de irrealidades, inexatidões, falsidades ou, em duas palavras, de fake news.

Que temos hoje? Temos as campanhas de desinformação, difamação e ódio. Não há solução fácil para essa tragédia contemporânea. O Judiciário tem um relevante papel, mas é um papel residual no enfrentamento das notícias falsas. A própria caracterização do que seja fake news não é fácil, não a detectamos de imediato, a não ser em casos grosseiros, o que é e o que não é uma fake news. O Poder Judiciário é aquele no qual operamos, tem o seu rito, as suas regras dependem de representação, forma-se o contraditório e, depois, o julgamento. Finalmente, vem o mais perigoso dos ingredientes desse formato: grande parte das máquinas que operam as notícias falsas estão fora do Brasil, não temos jurisdição extraterritorial para ir atrás delas e impedir a disseminação das mentiras.

A disseminação de informações falsas e de ataques à democracia não pode estar amparada pelo direito à liberdade de expressão, assegurado no art. 5º da Constituição, sendo um dos valores mais preciosos do Estado Democrático de Direito. Temos ainda a utilização desenfreada de robôs que viola a garantia constitucional que veda o anonimato no exercício da liberdade de expressão, como previsto no inciso IV do artigo 5º da Constituição.

Como podemos avaliar, o tema é sutil e produz, para muitos, uma forte dose de incredulidade. Alguns poderão indagar como a mente vai ser deturpada em razão de uma informação que vem de uma máquina, de alguém que não está no mundo real, que não é identificável. Colhe-se informações minuciosas e muito atualizadas na obra “Inteligência artificial e Direito”, coordenada pelas professoras Ana Frazão e Caitlin Mulholland, contemplando variados e oponentes temas ligados ao assunto.

O ensaio denominado “Inteligência artificial e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: Breves anotações sobre o Direito à explicação perante a tomada de decisões por meio de machine learning”, de autoria de Caitlin Mulholland e Izabella Frajhof, muito destrava desse quadro devastador. Ressaltam as autoras: 

Uma das práticas em que há um alto poder de causar descriminações é o profiling, ou perfilhamento, que é a criação, por parte do controlador, do perfil do titular de dados que tem como intuito servir como parâmetro de avalição sobre alguns aspectos da sua personalidade.

As autoras explicam como isso se desenvolve, anotando que uma vez munidas de tais informações sobre as pessoas, entidades privadas e governamentais, tornam-se capazes de “rotular” e relacionar cada pessoa a um determinado padrão de hábitos e de comportamentos, situação que pode favorecer inclusive graves discriminações, principalmente se analisados dados sensíveis. 

Ou seja, ali está dito que a inteligência artificial é capaz de selecionar, de obter dados, de conhecer preferências, de indicar condutas pessoais, procurando um benefício bem determinado, que é o de enviar mensagens robóticas dirigidas a pessoas com gostos previamente selecionados, afim de que a mensagem, a notícia falsa, as indicações alcancem aqueles que estão mais propensos a recebê-las.

Cada um de nós deve sair da redoma, da zona de conforto, e redobrar a consciência para que não sejamos tragados, não sejamos vítimas indefesas da inteligência artificial que indique preferências, que não são as nossas do ponto de visto ontológico, mas que estaríamos sendo induzidos, infelizmente, a aceita-las.

Devemos assumir o protagonismo do desacorrentado, aquele que viu a luz, que conheceu a realidade, que conheceu a verdade. Nunca o comportamento fraco, frágil, daqueles que, além de acorrentados e desinteressados em conhecer a verdade, serão sempre presas fáceis de plataformas capazes de desviar as suas preferências, condutas e escolhas. Somente a democracia permite fazer a distinção entre o que é verdade e o que parece ser verdade. A democracia dá a oportunidade às pessoas de pensarem livremente, alcançando o que é fidedigno, genuíno, em uma palavra, verdadeiro.

Não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. O homem está condenado a ser livre, o homem é quem decifra, ele mesmo, a jornada que vai percorrer. O homem, sem qualquer tipo de apoio ou auxilio, está condenado a inventar, a cada instante, o homem. Francis Ponge, poeta francês, disse isso numa frase de rara beleza: “O homem é o futuro do homem”. E Jean Paul Sartre explica: “(…) existe uma universalidade humana, mas ela não é dada, e sim permanentemente construída”.

Conhecer a si mesmo. É a regra maior. E conhecer é libertar-se.