Edição 267
Fake news ou desinformação? Os limites da liberdade de expressão
3 de novembro de 2022
Gustavo Silveira Borges Professor de Direitos Humanos do Mestrado em Direito da UNESC, Consultor/ Advogado
Leonardo Zamparetti de Queiroz Advogado
A desinformação não surgiu conjuntamente com a Internet, mas foi por ela potencializada, sobretudo a partir da emergência das mídias sociais. No entanto, o que se vê hoje é algo muito mais abrangente, uma verdadeira infodemia global. Trata-se de um fenômeno muito complexo, que envolve diversos atores e razões para a disseminação de questões que são capazes de distorcer a percepção da realidade, a partir da imitação de notícias reais e da utilização de manobras para manipular o emocional do interlocutor. Temos o fenômeno da desordem informacional.
O cenário atual, de fluxo intenso e constante desinformação, é potencializado por alguns fatores, dentre os quais, a ambição por poder político, o modelo de anúncios on-line e o desgaste da mídia tradicional. As mídias sociais são a principal fonte pela qual transitam informações de um número cada vez maior de pessoas. Dados do Digital Global Statshot Report, de julho de 2022, apontam que, no mundo, quatro a cada cinco pessoas consumem notícias pela Internet; já aquelas que consomem notícias por meio da televisão são três a cada cinco. Somando-se a isso, houve um aumento da criação de espaços virtuais para a publicação de notícias com baixo custo, se comparada à manutenção de uma mídia televisiva ou jornalística, com seu editorial.
Como resultado disso, um público crescente acessa estas páginas on-line, nas mídias ou mediante elas, para se informar, tendo no lado oposto pessoas que utilizam do ambiente digital para projetarem suas ideias e promoverem engajamentos com o objetivo único de retorno financeiro mediante os anúncios adicionados às suas páginas.
É aí que a estratégia de captação de visualizações aparece. O criador de conteúdo, ciente dos engajamentos e mais visualizações, utiliza-se, muitas vezes, de chamadas apelativas e tendenciosas, de informações hiperbolizadas e de imagens distorcidas, para um número exponencialmente significativo de cliques. Quanto mais acessos, maior será a exposição dos anúncios e, proporcionalmente, a monetização do seu criador.
O termo fake news vem sendo utilizado no Brasil, sobretudo a partir do ano de 2018, para representar o fenômeno que corretamente devemos denominar de desinformação. O termo fake news, embora amplamente conhecido, não é o mais adequado para tratar da temática, pelas seguintes razões: (i) é contraditório, já que as notícias precisam ser verdadeiras, sendo impossível considerar algo falso como notícia; (ii) é inapropriado, pois uma parcela das informações tidas como “fake news” sequer é falsa, podendo ser parcial ou totalmente verdadeira, mas descontextualizada e instrumentalizada para compartilhar uma falsidade; (iii) uma parcela do conteúdo não é notícia, mas sim apenas um vídeo, uma foto, uma piada ou um rumor; (iv) tratar uma informação enganosa como “notícia” atribui a ela uma legitimidade que ela não tem; (v) é insuficiente para descrever a complexidade da desordem informacional.
Em seu lugar, a desinformação pode ser explicada cientificamente, a partir dos termos disinformation (desinformação), para informações falsas elaboradas e compartilhadas com a intenção de causar dano, mediante uma estratégia de desinformação; misinformation (informação incorreta), informações incorretas repassadas sem intenção de causar dano, de forma individual e independente; e malinformation (má-informação), para informações corretas, mas indevidamente divulgadas, com o intuito de causar dano.
Embora repletas de particularidades, no Brasil, as três categorias são aglutinadas pelo termo “desinformação”. Para o Tribunal Superior Eleitoral, no Plano Estratégico das Eleições 2022 do Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação, este é um termo guarda-chuva, que reúne qualquer conteúdo falso, enganoso, manipulado, fraudulento, odioso ou impreciso, com ou sem a intenção de causar dano, mediante qualquer meio, com ou sem estratégia de disseminação.
Na esteira do campo eleitoral, o uso da desinformação tem-se mostrado presente e, inclusive, vem influenciando eleitores e ameaçando a democracia brasileira desde 2018.
A desordem informacional vem refletindo alguns dilemas jurídicos. Talvez o maior deles seja o estabelecimento de balizas entre a liberdade de expressão e a desinformação.
O conceito de liberdade tem intrínseco a si a ideia de autodeterminação, de decisão sem interferência externa. A liberdade é gênero que comporta algumas espécies, como a liberdade de expressão. Trata-se de um direito humano, que permite a manifestação de opiniões, ideias e informações, mediante o meio mais adequado, e a internalização de pensamentos e percepções, sem interferência indevida de terceiros. Visa garantir tanto o desenvolvimento e a externalização de uma personalidade única e exclusiva quanto a autonomia individual, a capacidade de autodeterminar-se. Em âmbito individual, a razão de existir da liberdade de expressão é dar ao indivíduo a prerrogativa de ser soberano sobre si mesmo. Já na esfera coletiva, ela é um dos pilares da democracia.
A liberdade de expressão, no entanto, não é absoluta. Seu exercício é amplo e engloba uma gama de pensamentos, mas não admite abusos. São vedadas as manifestações lesivas à democracia, à dignidade e à integridade humana e aos direitos de personalidade e de autodeterminação de terceiro. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que regula a liberdade de expressão enquanto direito humano, esclarece que o seu exercício deverá ter restrições para proteger os direitos e a reputação dos outros, a segurança nacional, a ordem, a saúde e a moral públicas, sempre com previsão legal.
De modo geral, a liberdade de expressão tem seus limites traçados no respeito aos direitos e às liberdades dos demais. Já os limites específicos deverão ser delineados por cada Estado soberano. Para a Organização das Nações Unidas (ONU), as restrições deverão ter um propósito legítimo, visam à função de proteção e devem obedecer a lei, as autoridades administrativas e as decisões judiciais.
No Brasil, por exemplo, o texto constitucional reafirma a liberdade de expressão, aqui como direito fundamental, e delimita suas balizas, vedando o anonimato, garantindo o direito de resposta e estipulando o dever de indenizar eventuais danos. A Constituição preza pelo respeito aos direitos de terceiros, à intimidade, à honra, à imagem e à vida e garante o acesso à informação. Para Gilmar Mendes e Paulo Branco, o respeito a qualquer valor constitucional, previsto expressamente ou não na Constituição, vai servir de limite para o exercício da liberdade de manifestação, respeitados os critérios do princípio da proporcionalidade.
O direito à liberdade de manifestação, assim, encontra limite quando conflita com direito de outrem. Não prejudicar direito alheio é um requisito intrínseco ao próprio conceito de liberdade, haja vista que, sendo liberdade a autodeterminação, o seu exercício não poderá violar a soberania alheia, porque se assim se fizer, estar-se-á infringindo a autodeterminação do outro.
Situada a análise da liberdade de expressão no contexto da disseminação de desinformação, enquadrar, ou não, o compartilhamento de desinformação no campo do direito à liberdade de expressão do agente depende dos reflexos que o ato gerará perante a liberdade de informação de quem a recebe.
A liberdade de informação, também amparada pela Constituição Federal, consiste no acesso livre e amplo à informação fidedigna e, nesse sentido, guarda relação com a liberdade de expressão. Ora, a liberdade de expressão abrange a internalização de informações e resguarda a livre formação do pensamento e da personalidade do indivíduo, o que presume o acesso a informações isentas e de qualidade.
A disseminação de informações falsas ou enganosas pode influenciar negativamente a formação de opiniões e na construção da personalidade, induzindo o indivíduo ao erro. Há uma visível influência externa à autodeterminação do indivíduo e, quando o agente tem a intenção de, com a desinformação, induzir terceiro a concepções e comportamentos ilegítimos, é possível dizer que a influência externa é indevida. Trata-se de uma violação ao direito à liberdade de informação.
Os danos decorrentes desta violação são, num primeiro momento, aferidos individualmente, porque ela pode deturpar a construção de opinião do indivíduo, tirando dele a liberdade de coletar informação e de desenvolver livremente a opinião. Mas há ainda dano à coletividade, já que as conclusões equivocadas podem manipular o exercício da cidadania, desvirtuando a vontade popular.
É preciso reconhecer, no entanto, que a liberdade de expressão comporta o compartilhamento de informações incorretas. Para a ONU, é direito do indivíduo expressar sua opinião ainda que errada. Todavia, não é correto afirmar que a disseminação de desinformação com a intenção de causar dano à liberdade de informação de terceiro tenha a mesma proteção. Isso porque é inadmissível pensar que uma violação ao direito e à liberdade de terceiro, como o direito à autodeterminação e a liberdade de informação, esteja sustentada pela liberdade de expressão.
A partir disso, é possível concluir que a liberdade de expressão encontra limite quando há conflito com os direitos de outrem ou da coletividade, sendo este limite um requisito intrínseco ao próprio conceito de liberdade, pois seu exercício não pode prejudicar ninguém, nem o direito de alguém. Ainda, é preciso ressaltar que, estabelecer restrições à liberdade de opinião e de expressão, com o objetivo de proibir a disseminação de ódio e incitação à violência, discriminação ou hostilidade, entre outros, não fere a liberdade de expressão, muito antes ao contrário, já que este tipo de ação mostra-se como um verdadeiro abuso do uso do direito da liberdade de expressão. Isto posto, a desinformação, evidentemente, não pode ser aceita como extensão do direito de liberdade de expressão, já que encontra limites em nosso ordenamento jurídico interno e internacional.
Notas________________________
1 https://datareportal.com/reports/digital-2022-july-global-statshot
2 Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado na ONU, em 16 de Dezembro de 1966, em decorrência da Declaração Universal dos Direitos Humanos.