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Fiança: Servidão Humana?

31 de março de 2009

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Sabido é que, costumeira ou, melhor, invariavelmente, os contratos de fiança garantidora de obrigações decorrentes de contratos de locação predial urbana ostentam cláusulas, pelas quais o fiador renuncia a todos os benefícios que a lei civil lhe confere para se exonerar, total ou parcialmente, da mesma — seja o de excussão seja o de rompimento do vínculo com o credor, mediante manifestação receptícia de vontade de promovê-la —, obrigando-se, ademais, a assegurar, indefinidamente, a percepção dos créditos por ele assim garantidos.
Cumpre, contudo, destacar a reconhecida índole benéfica e, quase sempre, graciosa de referido contrato relativamente ao afiançado, devendo merecer, suas disposições, apreciação ou interpretação restritiva, evitando que se ultrapassem os limites da verdadeira extensão das obrigações nele contidas, aliás, como recomendado pela parte final do art. 819 do Código Civil.
Assim, chega a causar perplexidade que no mundo jurídico se admita a subsistência da fiança após o termo final previsto para sua duração, quando prorrogado o vínculo locatício tácita ou formalmente, sem que, a tanto, tenha o fiador anuído, tornando-se fonte perene de obrigações para este, ainda que nada lhe seja comunicado pelos demais interessados, únicos, a quem aproveita o compromisso, por aquele assumido, de solver obrigação alheia, passando, sua responsabilidade, a prevalecer indefinidamente e pelo tempo que, egoisticamente, desejarem afiançado e locador.
Isso constitui autêntica servidão humana imposta ao fiador, devendo ser reconhecido, pois, que findam seus deveres contratuais, com o advento do termo final do contrato por ele celebrado, por prazo determinado, ainda que haja previsão de permanecerem, eles, exigíveis “até à entrega das chaves” — outra imposição leonina dos locadores — porquanto sem aposição de cláusula desse jaez no instrumento contratual de fiança não se celebra a locação, como é de sabença trivial e geral. De qualquer modo, necessário se faz entender que, mesmo diante de tal previsão, não poderá prevalecer a indefinida responsabilidade do fiador até tal advento, se, anteriormente a este, outra causa extintiva do negócio jurídico da fiança se manifestou, qual seja, precisamente, o decurso do prazo de duração pelo qual, expressamente, se obrigou o fiador a cumprir a obrigação assumida pelo afiançado junto a seu locador, e, por isso, se vier a operar esta causa extintiva do vínculo de fiança, sem que tenha ocorrido a cessação do contrato de locação mediante a famigerada “entrega das chaves”, não pode prevalecer, este último momento, como tal, como parece evidente, porquanto já anteriormente extinta tal obrigação.
Com efeito, repugna ao Direito que alguém, sem qualquer proveito, permaneça cativo, indefinidamente, ao compromisso de cumprir obrigação de terceiro mediante prorrogação expressa ou tácita de outro contrato, por força do exclusivo interesse deste e de seu credor e sem a concordância daquele que, precisamente, expõe a risco o seu patrimônio.
A esse propósito, há a destacar que, mesmo a dicção do enunciado n° 134 da Súmula de jurisprudência dominante do TJ/RJ, segundo o qual, “nos contratos de locação responde, o fiador, pelas obrigações futuras após a prorrogação do contrato por prazo indeterminado e, se assim o anuiu expressamente e não se exonerou na forma da lei”, impede ou prejudica o entendimento atrás alvitrado, porquanto, como destacado em tal orientação pretoriana. A responsabilidade do fiador pelas aludidas obrigações futuras, ou seja, que ultrapassam o tempo pelo qual, expressamente, se obrigou, somente prevalece, se houve, previamente, sua concordância com isso, o que não se obtém, evidentemente, através da imposição da cláusula leonina acima referida.
Não se pode olvidar, ainda, a recomendação da Súmula 214 do E. STJ, nela se afirma que “o fiador, na locação, não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu”, nada impedindo que, por “aditamento”, se entendam, também, as manifestações de vontade, expressas ou tácitas, dos demais protagonistas que venham a exacerbar a responsabilidade de fiador que a elas não aderiu, pois, aí, subsiste o mesmo substrato lógico que inspirou o princípio assim insculpido em tal Súmula.
Por identidade de razões, o disposto no art. 39 da Lei nº 8.245/91 não há de patrocinar o ressuscitamento de vínculo contratual já extinto pelo decurso de seu prazo de duração, sem que, com isso, concordem as partes, a ele, jungidas.
Necessário destacar que as práticas suso assinaladas, tendentes a impor ao fiador o aprisionamento, permanente e por tempo indefinido, a uma obrigação — o que, por si só, contraria os basilares princípios do direito negocial —, são, ainda, reforçadas com outra imposição maquiavélica, qual seja a prévia renúncia dele à faculdade de se exonerar dela, quando contratada por tempo indeterminado, mediante sua manifestação, nesse sentido, comunicada ao credor, com a antecedência prevista no art. 835 do Código Civil (antigo art. 1.500), o que, contudo, a todas as evidências, não corresponde à legítima e autêntica manifestação de vontade do fiador, sendo exigência unilateral do locador, por ele garantido, como ensina a experiência comum, porquanto, sem essa prematura capitulação, não se contrata a locação e, assim, não deve ser entendida como óbice a impedir que aquele venha a se libertar das obrigações relativas à fiança oferecida, pelas razões já expostas.
Obrar contrariamente ao aqui proposto é criar perverso círculo vicioso em torno do fiador, de tal modo que, dele, não poderá se livrar, pois, caso celebre fiança por tempo certo, claro está que, durante seu curso, não poderá se exonerar por unilateral manifestação de vontade e, mesmo depois de ocorrido o termo final ajustado, permanecerá, aquele, obrigado, até, à restituição do imóvel ao locador por ele garantido e, na hipótese de se obrigar por tempo indeterminado, antecipadamente, já se lhe exigiu a declaração de renúncia a tal faculdade.
Costuma dizer-se, em defesa da preservação desse perverso modelo, contrário aos mais comezinhos princípios de Direito e de Justiça, que é, ele, o sustentáculo do mercado locatício imobiliário, o que, contudo, não é fundamento ético nem legítimo para sua conservação, até porque a própria lei específica prevê outras modalidades de garantia que cumpre pôr em prática em substituição a aludido modelo, observado até hoje, e que, na verdade, consiste na imposição de verdadeira servidão humana a quem se disponha a contratar fiança, em garantia de cumprimento de obrigações locatícias concernentes a imóveis urbanos.
Espera-se que os bons ventos da modernidade, da boa-fé e da humanização das relações jurídicas possam bafejar, generosamente, os intérpretes das disposições legais e negociais relativas aos contratos de fiança de obrigações locatícias, de modo a preservar o interesse dos investidores no mercado imobiliário urbano, sem, contudo, perseverar em desgastados e desumanos dogmas hermenêuticos, que conduzem a resultados indesejáveis.