Fidelidade Partidária – Ficção jurídica

19 de outubro de 2015

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Eduardo_Damian_DuarteO Direito Eleitoral é um dos ramos do Direito que vivencia, com maior ênfase, a interveniência do Poder Judiciário na interpretação e, até mesmo, na elaboração de normas e regras que incidem no dia a dia das eleições. Abordando instigante tema relativo à fidelidade partidária, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a titularidade do mandato eletivo ao partido político, o que levou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a editar a Resolução no 22.610/2007, que regulamentou os processos de perda de cargo eletivo e de justificação para os casos de desfiliação partidária. A norma emanada pela Corte Superior Eleitoral surgiu para integrar a lacunosa legislação ordinária, a fim de atender o decidido pelo STF nos Mandados de Segurança no 26.602, 26.603 26.604. 

Importante pontuar que, recentemente, o STF decidiu que a regra da fidelidade partidária não alcançaria os detentores de cargos majoritários (Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 5.081).

A regra, portanto, indica que o mandato pertence ao partido que poderá recorrer ao Poder Judiciário para obter a posse do suplente imediato na vaga do filiado “infiel”. As exceções estão previstas no § 1o do artigo 1o da Resolução TSE no 22.610 (alguns doutrinadores defendem que as hipóteses previstas na resolução são meramente exemplificativas): (i) incorporação ou fusão do partido; (ii) criação de novo partido; (iii) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; (iv) grave discriminação pessoal.

O sistema partidário previsto na Constituição Federal de 1988 é o pluripartidarismo, inexistindo qualquer restrição à criação de novas agremiações partidárias, desde que respeitados os preceitos constitucionais e os requisitos previstos na lei dos partidos políticos (Lei no 9.096/1995).

Em síntese, a lei orgânica dos partidos políticos divide a criação de um novo partido em duas etapas: (i) a anotação no registro civil das pessoas jurídicas (artigo 8o) e (ii) registro do estatuto junto ao Tribunal Superior Eleitoral TSE, (artigo 9o).

Sem dúvida alguma, a criação de um partido político não é tarefa das mais fáceis, necessitando de grande apoio de eleitores e estrutura para suportar a logística para busca de assinaturas e certificação destas. 

Entretanto, diante da nova interpretação jurisprudencial, que trouxe a grave consequência de perda do cargo eletivo no caso de desfiliação partidária injustificada, a tarefa de criação de um novo partido, apesar de árdua, poderá trazer poderosos dividendos políticos aos líderes dessa nova agremiação. Além disso, passamos a nos deparar com pedidos de registros de partidos políticos temáticos, tais como Partido dos Aposentados, Partido da Mulher Brasileira, entre outros, elevando o Brasil ao topo do ranking de número de legendas (hoje são 33).  

Entre as hipóteses de justa causa para a desfiliação partidária, verifica-se que algumas demandam uma análise subjetiva da Justiça Eleitoral, como a grave discriminação pessoal e mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário. Por outro lado, a criação de um novo partido não permite a incidência de subjetividade por parte do julgador. Ocorrendo a desfiliação partidária para ingresso nos quadros de um novo partido, no prazo de 30 dias contados da criação, restará protegido o direito ao exercício do cargo eletivo. 

Assim, com a garantia de exercício pleno do mandato eletivo nessa nova agremiação, a migração para a nova legenda se torna ainda mais atrativa para o político insatisfeito.

Algumas dúvidas começaram a surgir entre os políticos que pretendem ingressar em um novo partido sem o risco de perderem seus cargos eletivos.

A primeira indagação que surge se refere à suposta “desfiliação automática” em caso de declaração de apoio à criação de novo partido ou subscrição como fundador dessa nova agremiação. 

A jurisprudência do TSE sempre consignou a inexistência de incompatibilidade entre uma filiação partidária e a assinatura em registro de criação de novo partido. A filiação ao segundo partido somente pode ocorrer após o registro do seu estatuto no TSE. 

Assim já decidiu o TSE: 

o registro de um novo partido no Cartório de Registro Civil não implica a desfiliação automática dos fundadores dessa nova agremiação, que continuam vinculados a seus partidos de origem, até que se efetive o registro do estatuto do novo partido no TSE. A filiação partidária, pois, inicia-se com a chancela da Justiça Eleitoral, quando o novo partido estiver definitivamente constituído” (Pet 3.019/DF, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe de 13.9.2010).

Em 2 de junho de 2011, o TSE respondeu à Consulta 755-35 DF, esclarecendo detalhadamente o tema: 

A adesão inicial de eleitores à criação de partidos políticos não só é permitida como necessária à formação do partido. No entanto, ela se dá apenas com os fundadores – subscritores do requerimento do registro do partido no Registro Civil das Pessoas Jurídicas da Capital Federal – e apoiadores – eleitorado em geral.

A filiação partidária ocorre após o registro do estatuto no TSE e deve ser formalizada pelo interessado junto ao partido, independentemente de manifestação anterior, haja vista que a filiação não pode ser presumida, por constituir ato de vontade.

Com efeito, o ato de filiação partidária é ato processual eleitoral formal e depende de manifestação expressa. Além disso, a lei prevê – para aqueles que pretendem ser candidatos – um tempo certo para o seu requerimento.

Assim, qualquer ato de subscrição antes do registro do estatuto pelo TSE não pode ser considerado como filiação partidária.

Ademais, não há filiação partidária por presunção ou interpretação analógica. A respeito, confira-se os artigos 16 a 18 da Lei no 9.096/1995.

Invocando interpretação analógica com o artigo 9o, § 4o da Lei no 9.096/1995, o TSE, na Consulta no 755-35, estabeleceu que, para se reconhecer a justa causa, o prazo razoável para filiação à nova legenda é de 30 dias após o registro no TSE.

A criação de novo partido político é a “janela” esperada por muitos políticos de diversas tendências ideológicas. A explicação é simples. Em toda associação de pessoas existem insatisfeitos. Em alguns grupos o número é maior, em outros poderá ser menor, mas a insatisfação, a ansiedade e a expectativa eleitoral da classe política estarão sempre presentes em qualquer sociedade.

Assim, com um pouco de organicidade e liderança, um novo partido político poderá arrebanhar adeptos das mais diversas origens, o que, indubitavelmente, gerará insatisfação naqueles grupos que se enfraquecem. 

Em artigo publicado na Revista Justiça Eleitoral em Debate de agosto de 2011, tive a oportunidade de abordar esse mesmo tema e mencionei: 

Nessa linha de raciocínio, observado o histórico pragmatismo do legislador eleitoral, conclui-se que outras “janelas” para o troca-troca partidário poderão surgir, em breve, no Congresso Nacional, protegendo os interesses dos atuais partidos políticos, pois, caso contrário, um novo partido poderá ser a única “salvação” de muitos insatisfeitos.

Alguns anos se passaram, mas o Congresso aprovou recentemente mais uma reforma política, ainda sob análise da Presidência da República que, provavelmente, sofrerá controle de constitucionalidade futuro.

Entre as novidades, o texto da lei prevê que também deverá ser considerada justa causa para desfiliação “mudança de partido efetuada durante o período de trinta dias que antecede o prazo de filiação exigido em lei para concorrer à eleição, majoritária ou proporcional, ao término do mandato vigente”.

Outra proposta de mudança é a redução do prazo de filiação partidária para seis meses antes do pleito.

Em síntese, verifica-se, com clareza, que o legislador pretende instituir e legalizar “janelas” para evitar a incidência da perda do cargo eletivo no caso de troca partidária, seja por meio da previsão legal expressa da janela de 30 dias – lembrando que há dúvidas sobre a constitucionalidade da mesma – ou por meio da diminuição do prazo de filiação para seis meses, o que impediria o julgamento a tempo e eventual eficácia da ação de perda do cargo eletivo.

De um lado, o Poder Judiciário interpreta e aplica a regra da fidelidade partidária, mas na outra ponta o Poder Legislativo sinaliza a flexibilização do entendimento.

O eleitor brasileiro decide seu voto de acordo com o candidato, tendo pouca interferência a legenda pelo qual disputa aquele pleito, circunstância comprovada por meio de enquetes e analisando a idêntica votação de candidatos mesmo após a mudança de partido. E não poderia ser de outra forma, pois a ideologia sonhada para partidos políticos encontra-se dissipada em mais de trinta legendas, com estatutos e programas incipientes. Além disso, a identificação partidária sofre grande revés com um sistema que permite coligações partidárias para todos os cargos.

Por todo o exposto, atrevo-me a afirmar que a fidelidade partidária nada mais é que uma ficção jurídica que não encontra respaldo na vontade do eleitor, muito menos concordância do legislador, legítimo representante do Povo.