Edição

Flexibilizando os efeitos da ADIN

5 de junho de 2005

Compartilhe:

I- Introdução

A Ação Direta de Inconstitucionalidade, nada mais é do que a materialização da fiscalização abstrata das leis, assentando-se no poder de requerer ao Supremo Tribunal Federal a apreciação da constitucionalidade de normas jurídicas.

Esse poder é classificado por Jorge Miranda, in Manual de Direito Constitucional, como “poder funcional”, porque cabe a certos órgãos ou a frações de titulares de órgãos do poder político global da Constituição.

Entende, ainda, o renomado autor, que somente se justifica falar em ação de inconstitucionalidade como ação pública e não, como ação stricto sensu.

II- Modelos de fiscalização da constitucionalidade.

A Inglaterra, dos países do bloco europeu continental contaminados pelo movimento constitucional das revoluções burguesas, foi o único Estado a não adotar a fiscalização constitucional.  Neste, a vontade do Parlamento, expressão da maioria, é ilimitada, pois inexistindo constituição escrita, não há lugar para a instituição de mecanismo fiscalizatório, cumprindo aos juízes aplicar a statutory law, votada pelo Parlamento.

A França, de outra banda, adotou um sistema constitucional rígido, pois não admitia interferências recíprocas entre os poderes do estado, conforme admite o modelo americano dos checks and balances e, esse tipo de fiscalização, segundo a visão francesa, caracteriza a intromissão do Judiciário na competência do Legislativo.

Com a Constituição de 1958 foi implantado o Conselho Constitucional, que longe de ser dotado de função jurisdicional, caracteriza-se pelo cunho eminentemente político, sendo certo que sua atuação é meramente preventiva, o que, de uma maneira ou de outra, já vinha sendo exercido pelo Conselho de Estado.

O modelo americano, ainda sob a égide da Constituição de 1787, incorporou a doutrina de Sir Edward Coke, segundo o qual, caberia aos juízes e somente a eles, o poder de controlar a legitimidade das leis, negando aplicação àquelas que ferissem a “common law”.

A “Judicial review” foi incorporada ao modelo americano em 1803, com o largamente conhecido precedente “Marbury x Madison”, que negou aplicação de lei por descompasso com a Constituição, embora a Jurisprudência que antecedeu esse precedente, dê notícias de outros casos semelhantes, que, entretanto, não tiveram a mesma repercussão.

A Constituição americana, por outro lado, não contempla expressamente o controle da constitucionalidade, mas a jurisprudência firmada nas cortes demonstra a competência dos seus juízes para fazê-lo.  Assim, qualquer juiz é competente para julgar as questões postas perante eles por seus jurisdicionados e que apresentem conflito entre norma ordinária e a norma fundamental.  Entretanto, uma vez decidido pela Suprema Corte qualquer questão constitucional, esta decisão vincula os demais órgãos judiciais, com eficácia erga omnes, ressaltando-se que, mesmo estando a norma constando dos códigos e livros, ela é considerada como “lei morta”.

O modelo austríaco concebido, principalmente, por Hans Kelsen, foi incorporado à Constituição de 1920 e, anteriormente, aquele país seguia o modelo francês, onde o Parlamento assumia a supremacia de elaboração das leis, as quais não podiam se submeter ao crivo do Judiciário, sob pena de ser considerado como uma intromissão indesejada.

Com a referida constituição foi criada a Corte Constitucional para, de forma concentrada e direta, exercer a fiscalização da constitucionalidade, excluídas as demais Cortes.  Somente a partir de 1929, a Áustria passou a admitir o controle concreto, provocado no curso da demanda judicial. Assim, as decisões emanadas da Corte Constitucional teriam efeitos ex nunc e aquelas emanadas dos juízes singulares teriam efeitos ex tunc.  Tal modelo foi adotado por diversos países europeus.

III- Histórico do modelo brasileiro.

A Constituição de 1824 não se manifestou sobre a fiscalização jurisdicional da Constitucionalidade, valendo-se o Imperador dos modelos praticados na França e na Inglaterra, onde imperava a supremacia do Parlamento, cabendo a este exercer a guarda da constituição de forma preventiva.

Somente a partir da Constituição de 1891 é admitido o controle jurisdicional e assim mesmo por força do trabalho hercúleo de Ruy Barbosa, comprovando essa prerrogativa do Poder Judiciário, passando-se a praticá-lo de forma difusa, incidental e sucessiva.

A Constituição de 1926 aprimorou as disposições fiscalizadoras da Carta anterior, explicitando funções, tendo, contudo, tudo sido mantido pela Carta de 1934, acrescentando-se a eficácia erga omnes às decisões do STF e a representação interventiva do Procurador Geral da República.

Ainda, na Carta de 1934, pouco há que se acrescentar vez que, na verdade, teve por objetivo legitimar o golpe de Estado, estabelecendo o regime ditatorial de Getúlio Vargas, reproduzindo, tão somente o modelo de 1891, incluindo-se a exigência de maioria absoluta para a declaração de inconstitucionalidade.

Reintegrada a democracia, a Carta de 1946, tratou de restabelecer a competência do Judiciário para apreciar as questões relativas à constitucionalidade, conferindo ao Procurador Geral da República a competência para propor ao STF argüição sobre ato dito inconstitucional que, uma vez assim declarado, caberia ao Congresso suspender a sua execução.

Foi, por fim, a emenda 16/65, que introduziu a fiscalização abstrata da constitucionalidade entre nós em pleno regime militar, mantendo-o as cartas de 1967 e 1969, tendo este último estendido aos Estados-membros a fiscalização das leis municipais.

A emenda 7/77 introduziu a competência do Supremo Tribunal Federal para interpretar, com efeito vinculante, os atos normativos, por representação do Procurador Geral da República.

A Constituição de 1988 manteve, em termos gerais, o modelo de fiscalização constitucional das cartas de 1967/69, alargando, entretanto, a legitimidade ativa para a propositura da ação direita de inconstitucionalidade, estendendo-a aos Estados-membros.

IV- O modelo brasileiro

O Prof. Clémerson Clève, na sua obra “A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro”, estabelece uma visão comparativa entre o modelo europeu e o norte americano para estabelecer uma visão do modelo brasileiro, constatando que foi a ação direta interventiva que introduziu paulatinamente a fiscalização abstrata no Brasil.

Cumpre relevar que um dos motivos que nos levou a estabelecer um parcial controle concentrado com a ação direta de inconstitucionalidade foi, justamente, a inexistência de efeito vinculante nas decisões do Supremo Tribunal Federal, quando proclamatórios da constitucionalidade e inconstitucionalidade das leis, em sede de recurso ordinário ou extraordinário pelo modelo difuso.

O julgamento da ação direta, em razão de sua eficácia horizontal e vinculante, presta-se a pacificar, imediatamente, a controvérsia; pondo cobro a diversas disputas judiciais, que não raro concluem diversamente sobre o mesmo tema.

A legitimação ativa é regulada pelo artigo 103, incisos I a IX, da Constituição Federal de 1988, sendo apresentada em numerus clausus, admitindo-se a interpretação extensiva apenas nos incisos IV e V, que não fazem menção ao Distrito Federal.

A doutrina estabelece uma diferença entre os legitimados ativos universais, (Presidente da República etc.) e os especiais (aqueles que demonstram interesse processual na causa ou pertinência temática, incisos IV, V e IX).

Importante destacar o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a perda de representação do partido no Congresso Nacional importa a extinção do processo, mas somente se exige que o partido tenha representação no Congresso para promover o processo durante o curso deste.

No que concerne ao objeto da ADIN, o artigo 102, inciso I, alínea “a” faz menção à lei, como ato legislativo em sentido formal e ao ato normativo, como ato legislativo em sentido material.

Insta ressalvar que, o sistema pátrio admite a inaplicação por inconstitucionalidade na hipótese do Chefe do Poder Executivo deixar de aplicar uma norma por entendê-la inconstitucional, independentemente de ação.

Outra questão que merece atenção é a da medida liminar, disciplinada no artigo 102, alínea “p” da CF/88, regulamentada pelos artigos 10, 11 e 12, da lei 9868/99.  Esta pode apresentar-se sob a forma de tutela cautelar, que tem por objetivo assegurar meios e fins de processo principal posterior e a tutela antecipada, que antecipa os efeitos práticos de uma eventual decisão de procedência.

A liminar na ADIN tem natureza de tutela antecipada já que seu efeito é a suspensão da eficácia da norma até o julgamento do mérito, concedida inaudita altera parte, que coincide com o efeito da decisão de mérito.  Os efeitos são ex nunc, podendo excepcionalmente, produzir efeitos retroativos, desde que o STF faça menção expressa a ela, por ocasião de sua concessão (art.11, § 1º, da lei 9868/99).

Outro efeito, a partir da decisão liminar, é a possibilidade de produção do efeito repristinatório imediato, salvo se este for expressamente afastado, tanto na liminar, quanto na decisão de mérito (art. 11, § 2º).

Na decisão de mérito da ADIN, segundo o entendimento do STF, o ato tido por inconstitucional é nulo, o que induz que, em relação ao tempo, os efeitos são sempre ex tunc na interpretação clássica, retroagindo à data em que a lei foi elaborada, entendendo-se que jamais produziu qualquer efeito.

V- A relativização do modelo.

Ocorre que a adoção de um modelo originário do pós-guerra na sua integralidade pode levar a radicalismos indesejáveis, sendo evidente a postura do Supremo Tribunal Federal, no temperamento da compreensão dos arestos derivados de ação declaratória de inconstitucionalidade. Notadamente, quando concerne à autoridade da coisa julgada, do princípio da boa-fé e na ressalva de situações consolidadas e constituídas antes do ato declaratório de inconstitucionalidade, prestigiando, assim, a segurança e a estabilidade das relações jurídicas.

Daí a possibilidade do seu efeito ex nunc, vez que não pode retroagir para atingir situações consolidadas sob a égide da declaração de inconstitucionalidade.

Na Alemanha, a Corte Constitucional, tem a previsão na sua Lei Orgânica, de acordo com a reforma de 1970, da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade. Essa modalidade declaratória, embora reconhecendo a incompatibilidade da norma em face do diploma constitucional, mantém os seus efeitos até a sua declaração de nulidade, evitando ofensa até mesmo a normas supra-legais vigorantes no sistema legal. Verifica-se uma tendência, nesse mesmo sentido, na Itália e na Espanha.

Impende destacar, em particular, o caso francês, onde o Conselho Constitucional ao declarar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de norma, o faz com a autoridade da coisa julgada, em face de todas as autoridades francesas, sejam políticas, administrativas ou jurisdicionais, a despeito de não ostentar característica de órgão julgador.

A Constituição Portuguesa (art.284,4), a seu turno, ostenta um espaço discricionário aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade nos casos comissivos, onde o julgador poderá emprestar qualquer dos efeitos, adaptando-o a situação concreta em exame, podendo afastar o efeito ex-tunc de sua decisão.

Nesse sentido as Cortes Européias e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que também operam ex nunc.

VI- Conclusões

Reporto-me, por fim, à obra do Professor José Ribas Vieira, in “Em vista de um Conceito de Jurisdição Constitucional” onde, citando Rubio Llorente, conclui que não mais se pode trabalhar com modelos estanques como o judicial review e noutra ponta a jurisdição constitucional concentrada, devendo-se traçar um perfil de Jurisdição Constitucional dentro de um marco teleológico.

Importante ressaltar que no Brasil, como também no exterior, especialmente na Europa, vem se desenvolvendo a tese, entre os estudiosos de direito constitucional, no sentido da relativização dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, justamente para garantir os direitos obtidos em razão da boa-fé e de relações jurídicas consolidadas sob a égide da lei posteriormente declarada inconstitucional.

Muito embora a sua evolução histórica, adotando inicialmente o modelo americano que consistia no binômio nulidade-retroatividade, o Brasil segue a tendência dos países europeus e até mesmo da América do Norte, no sentido de relativizar os efeitos retroativos ex-tunc, bem como os direcionados ao futuro ex-nunc.

Com isso prestigia-se a segurança das relações jurídicas, o princípio da boa-fé e as situações consolidadas.

A partir da elaboração das leis 9.868/99 e 9.882/99, foi conferido ao Supremo Tribunal Federal a prerrogativa de graduar os efeitos das declarações de inconstitucionalidade e de descumprimento de preceito fundamental da Constituição, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social.

Tais conceitos são bastante abertos, justificando a sobrevida temporária e anômala de atos ou normas reconhecidamente inconstitucionais, o que segundo Inocêncio Mártires Coelho é uma prerrogativa de índole política, mas não desprovida de razoabilidade.

Diz ainda o referido autor que nesse sistema jurídico, embora objetivo, o sentido da constituição é aquele fixado pela jurisdição constitucional. Tal posicionamento singular de guarda da constituição acaba por constitucionalizar a sua própria concepção de justiça, que nada mais é do que a própria ideologia, fruto da classe social que integram e representam, carecendo de uma “viragem radical” para que a interpretação constitucional que a todos interessa seja levada a cabo por toda a sociedade e não apenas pelos órgãos de jurisdição constitucional.

Embora alguns autores entendam pela inconstitucionalidade do artigo 27, da lei 9868/99, examinando o voto vista do Ministro Gilmar Ferreira Mendes no RE 107917-8, verifico que manifestou seu entendimento no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade deveria ter limitação de efeitos.

Nesse mesmo voto cita, a título de exemplo, a constituição de Weimar, em analise de Jellinek, quanto à nulidade da lei eleitoral, só podendo fazê-lo se essa nulidade resolvesse a questão ou se houvesse lei que preenchesse a lacuna do ordenamento jurídico, do contrário o Tribunal deveria abster-se de pronunciar a nulidade.

Ressalta, o Ministro Gilmar, que não se trata de discutir a constitucionalidade do artigo 27, da Lei 9868/99, mas de examinar a sua aplicação em termos de controle incidental.  Cita o modelo americano, que foi a base do nosso modelo e do modelo defendido por Ruy Barbosa, onde restou estabelecido limites à declaração de inconstitucionalidade, especialmente quanto à eficácia retroativa, que poderia atingir eventuais condenações, sob a vigência da norma inconstitucional.

Nesse sentido, a jurisprudência americana evoluiu quanto aos efeitos amplos ou limitados, aceitando que o sistema difuso não é incompatível com a doutrina da limitação dos efeitos.

Relata, ainda, que na própria Áustria, berço da tese Kelseniana, ocorreram casos de se atribuir efeito ex-tunc à repercussão de decisão de inconstitucionalidade, afigurando-se integralmente aplicável ao Direito Brasileiro, mesmo sendo este um sistema misto.

Assim, com a entrada em vigor das leis 9.868/99 e 9.882/99, foi conferida ao Supremo Tribunal Federal a prerrogativa de graduar os efeitos das declarações de inconstitucionalidade e de descumprimento de preceito fundamental da constituição, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social.

Por fim, destaco e infirmo, por razoável, o entendimento de vanguarda, conforme declinado no voto exarado no recurso já acima declinado, do Ministro Gilmar Mendes, dando temperamento ao referido dispositivo (artigo 27, da Lei 9868/99), como se verifica a tendência mundial na flexibilização desses conceitos.