Edição 275
Fórum de Lisboa celebra democracia e aponta caminhos para o novo mundo digital
12 de julho de 2023
Da Redação
A partir da esquerda, o Presidente da OAB, Beto Simonetti, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Carlos Blanco de Morais, o Presidente da Assembleia da República de Portugal, Augusto Santos Silva, a Diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Paula Vaz Freire, o Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, o Ministro do STF Gilmar Mendes, e o Presidente da FGV, Carlos Ivan Simonsen Leal
Plural, estratégico e grandioso. São alguns dos adjetivos utilizados pelos participantes para qualificar o XI Fórum de Lisboa, maior evento jurídico do mundo lusófono, que foi retomado este ano após a pausa forçada pela pandemia de covid-19. Realizado entre os dias 26 e 28 de junho, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), o Fórum teve como tema central a “Governança Digital” e contou com a maior participação e alcance de todas as suas edições, com mais de 1.400 inscritos e acompanhado por milhares de pessoas na transmissão ao vivo pela Internet.
Organizado em parceria entre o Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), o Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e o Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (CIAPJ/FGV), o evento reuniu magistrados, juristas, acadêmicos, estudantes, autoridades e representantes da sociedade civil organizada do Brasil e da União Europeia para debater desafios contemporâneos como a defesa das instituições democráticas, a regulação das redes sociais e da inteligência artificial (IA), a responsabilidade socioambiental e a digitalização das relações entre governos e cidadãos.
“As democracias contemporâneas vivem em conjuntura de expiação diante da disseminação em escala global do populismo. Estratégias de desinformação e discursos sectários de radicalização política têm influenciado e deformado o debate público. Disso tudo resulta que recalques em estado de latência passam a condição de comportamentos políticos de cunho autocráticos. Atores e setores resistentes ao projeto do constitucionalismo moderno se descobrem livres de qualquer pudor para expressar aversão à liberdade e à igualdade, vetores que tão caracteristicamente definem aquele. É necessário reconhecer que a entrada em cena das mídias digitais confere uma tonalidade inédita ao novo populismo”, contextualizou na abertura do evento o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Ferreira Mendes, que divide a coordenação do Fórum de Lisboa com o professor da FDUL Carlos Blanco de Morais, consultor jurídico sênior do Conselho de Ministros de Portugal.
“O cruzamento entre a progressiva digitalização da vida e a democracia é hoje a questão chave tanto da teoria quanto da prática. (…) À testa deste intenso e profundo fluxo de inovações estão grandes conglomerados privados, mais ricos e poderosos do que a imensa maioria dos governos, e com uma capacidade quase ilimitada de gerar e disseminar informações. Não é dos menores, portanto, o desafio intelectual prático que este admirável mundo novo lança à democracia e suas instituições representativas”, acrescentou ainda na abertura o Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL).
Para além do alinhamento ao movimento em defesa das instituições democráticas e da conformação do Direito às novidades da “era digital”, o Fórum de Lisboa cumpre ainda papel importante em relação aos desafios geopolíticos atuais, como lembrou o Presidente da FGV, Carlos Ivan Simonsen Leal: “Uma borboleta bate as asas na Ásia e isso tem efeito no mundo todo, estamos chegando a esse ponto. Está todo mundo ligado pelo lado fiscal, pelo comércio, pelas taxas de câmbio, pelos problemas geopolíticos, e essa ligação é tanto mais forte quanto mais forte for o desequilíbrio fiscal, sobretudo dos Estados Unidos, coisa que nem a União Europeia nem o Brasil controlam. Dado isso, esse Fórum toma cada vez mais uma importância crucial para criar também a possibilidade de entendimentos maiores entre Brasil e Portugal, entre Brasil e União Europeia e assim por diante.
Nova governança – As discussões do primeiro eixo temático, sobre Estado Democrático de Direito e defesa das instituições, foram abertas com o painel moderado pelo Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos Rodrigo Mudrovitsch. Debate que contou, entre outros, com a participação do Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, e do Presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinicius Furtado Coêlho.
Em sua participação, o Ministro Flávio Dino enumerou como riscos à democracia: o deslocamento da hegemonia política e econômica mundial, que traz “sintomas patológicos” como as guerras; a mudança dos paradigmas que suportam a democracia representativa, antes baseados na solidariedade, porém caminhando de forma acelerada em direção ao “ultraindividualismo”; a capacidade cada vez maior de autorregulação transnacional dos mercados, à margem do controle estatal; a naturalização do extremismo; e o deslocamento do debate público para o ambiente digital, muitas vezes controlado por mecanismos de IA.
Para minimizar estes riscos, o Ministro Flávio Dino defendeu a atualização dos processos decisórios do Estado para acompanhar a “velocidade alucinante” da atual revolução tecnológica; a “indeclinável” regulação das redes sociais, das plataformas tecnológicas e da inteligência artificial; e a criação de novos pactos internacionais de governança, na medida em que as instituições criadas no pós-II Guerra Mundial, como a própria Organização das Nações Unidas (ONU), já demonstraram ser insuficientes e pouco representativas para enfrentar problemas mundiais como a fome, a desigualdade, as guerras e as mudanças climáticas.
Tensões com a democracia – Aos riscos impostos à democracia pelas transformações digitais, Marcus Vinicius Furtado Coêlho acrescentou: o abuso de poder; o desrespeito ao devido processo legal; a criminalização da atividade política; a insegurança jurídica provocada pela ausência de regras claras; a utilização das redes sociais pelos “falsificadores de ideais e fatos”; e a exclusão social associada à exclusão digital.
“Sem inclusão social, sem inclusão de gênero e racial, sem que todos nos sintamos partícipes da sociedade e dos benefícios do Estado de Direito, a sociedade brasileira ficará refém de argumentos simplórios segundo os quais a democracia provoca desemprego e falta de acesso aos bens da vida. Portanto, deixaremos nossa população à mercê de discursos autoritários, populistas e autocráticos. Quanto mais inclusão houver na sociedade, mais a democracia será defendida e assegurada”, comentou Coêlho.
Algumas dessas questões foram também tratadas no painel “Novas formas de populismo e relações de tensão com o Estado Democrático”, mediado pelo Presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Ministro Bruno Dantas, que contou com a participação do Advogado Geral da União, Ministro Jorge Messias.
“Nos últimos quatro anos houve uma redução da cobertura vacinal de 73% para 57%, em algumas faixas de idade figuramos agora nas últimas posições na América Latina. (…) É preciso que esta máquina de fake news que atua diretamente contra a credibilidade do nosso sistema vacinal seja combatida, porque temos a obrigação constitucional de zelar pelas nossas políticas públicas”, afirmou o titular da AGU.
O Ministro Jorge Messias acrescentou: “Caberia perguntar se após tão profunda crise o Brasil logrará concretizar as promessas de retomada do crescimento com Justiça Social, preservação ambiental e fortalecimento da democracia. Quero dizer a todos que a despeito dos riscos desse novo tempo, estou seguro de que estamos no caminho correto. Não é porque estou aqui em Lisboa, mas temos o exemplo de Portugal, que após uma dura crise financeira evitou a rota fácil do populismo e embarcou num consistente ciclo de crescimento econômico com progresso social”.
Regulação da IA – No segundo eixo temático, sobre a esfera pública digital e os desafios regulatórios, o painel “Inteligência artificial e governança algorítmica”, mediado pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Ricardo Villas Bôas Cueva, contou com a participação, dentre outros, da professora da Universidade de Brasília (UnB) Laura Schertel Mendes, relatora da Comissão de Juristas do Senado Federal sobre regulação da inteligência artificial, da Deputada Federal Luísa Canziani (PSD-PR), coordenadora da Bancada Feminina da Câmara dos Deputados, e do professor da FDUL Domingos Farinho.
A deputada opinou que nenhuma solução para a regulação da IA artificial será satisfatória se não for global, a exemplo das regulações já existentes em relação à engenharia genética e à energia nuclear. Ela ressaltou ainda que, segundo estudo realizado pelo grupo financeiro Goldman Sachs, 18% dos empregos podem vir a ser digitalizados nos próximos anos, levando à extinção de 300 milhões de postos de trabalho em todo o mundo. “A primeira onda vai acontecer nos EUA, obviamente com aumento de produtividade, mas num cenário de concentração de poder. Com o emprego estrutural sendo impactado, mais do que nunca precisaremos falar de requalificação de mão de obra, usar a tecnologia para complementar as nossas ações e limitações”, ressaltou a parlamentar, para quem também há em paralelo um cenário de novas oportunidades, com a necessidade da criação de ao menos 100 mil novos empregos ao ano na área da tecnologia da informação.
A professora Laura Schertel concordou com o Ministro Cueva e a Deputada Canziani a respeito da existência de um grande consenso internacional sobre a necessidade de regular a IA, na medida em que hoje já são muito claros os seus riscos. “Os avanços que esses sistemas podem proporcionar para a sociedade são tão palpáveis quanto os riscos. Se pensarmos, por exemplo, num sistema aplicado à saúde, ele pode ser muito útil e importante para gerar mais eficiência. Porém, se os dados estiverem equivocados ou se trouxerem um viés que permita diagnósticos equivocados por parte dos médicos, multiplicando-se em milhares de outros diagnósticos equivocados no País inteiro, conseguimos perceber que o potencial logo se transforma em risco”, exemplificou.
Para Laura Schertel, que coordena o mestrado profissional em Direito do IDP, é preciso mitigar os riscos para preservar direitos fundamentais. “Os sistemas falham, precisam da supervisão e intervenção humana para corrigir seus erros”, concluiu.
A supervisão humana na regulamentação da IA foi também assunto da palestra do professor Domingos Farinho. De acordo com ele, o detalhado e complexo Artificial Intelligence Act, recentemente aprovado pelo Parlamento Europeu – ainda em fase de validação pelos Estados membros – estabelece uma “supervisão desconfiada”, sob a responsabilidade dos desenvolvedores de ferramentas de IA, com especial foco na inteligência artificial considerada de alto risco, que é aquela capaz de impactar os processos eleitorais, a saúde, a segurança pública, o meio ambiente, a democracia e os direitos fundamentais. Nestes casos, segundo o professor, o AI Act define que decisões só poderão ser tomadas pelas máquinas após confirmação humana de, no mínimo, duas pessoas naturais.
Governos digitais – O painel “Políticas públicas de inclusão digital e digitalização das relações entre a Administração e os cidadãos”, moderado pelo Corregedor Nacional de Justiça, o Ministro do STJ Luis Felipe Salomão, contou com a participação do Ministro do STJ Mauro Campbell Marques, que é Diretor-Geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), da professora da FDUL Alexandra Leitão, que até o ano passado foi ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública de Portugal, e da Juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) Aline Aparecida de Miranda.
Na opinião do Ministro Campbell Marques, a inclusão digital precisa servir como ferramenta para a inclusão social. Ele mencionou estudo do TCU sobre políticas governamentais de inclusão digital. O levantamento teria identificado várias políticas governamentais das três esferas de poder. Contudo, a pesquisa aponta que são iniciativas pontuais e desarticuladas, o que impacta na universalização dos serviços.
“Há uma nova forma de exclusão e desigualdade que a transição digital traz e que precisa ser combatida”, observou na sequência a professora Alexandra Leitão. Segundo ela, os desafios para superar estas dificuldades e possibilitar uma digitalização positiva das relações entre os Estados e as populações passam pela cibersegurança, para garantir a estabilidade e confiabilidade dos serviços, bem como pela mitigação dos riscos de dependência dos órgãos públicos em relação às grandes plataformas de tecnologia.
Já a Juíza Aline de Miranda, após falar da proposta de emenda que tramita no Congresso Nacional para fazer a inclusão digital constar como direito fundamental de quarta geração, inserido no inciso 80 do art. 5o da Constituição Federal, apontou a falta de interesse, o alto custo e as dificuldades de acesso como os principais motivos para que 36 milhões de brasileiros nunca tenham utilizado a Internet. O que na prática inviabiliza, ou ao menos desestimula, as iniciativas de digitalização das relações entre a Administração e os cidadãos. “Uma mudança cultural não se impõe, precisa ser construída”, pontuou a magistrada.
Regulação das redes – Mediado pelo Professor Ricardo Campos, da Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main, na Alemanha, o painel sobre “Responsabilidade das plataformas por conteúdos ilícitos e riscos sistêmicos” contou com a participação, dentre outros, do Vice-Predisente do STF, Ministro Luís Roberto Barroso, e do Deputado Federal Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do Projeto de Lei no 2.630/2020, popularmente conhecido como PL das Fake News – cuja tramitação foi paralisada no Congresso Nacional diante das pressões exercidas pelas grandes plataformas digitais, as chamadas big techs.
Para o Ministro Luís Roberto Barroso, apesar da democratização do acesso e difusão de informações, a revolução digital trouxe uma série de aspectos negativos, o que demanda a regulação das redes sociais e da Internet como um todo, diante da necessidade de limitar o imenso poder privado das plataformas digitais e garantir novos direitos sociais, como o direito à privacidade, à inclusão digital e à liberdade cognitiva.
“Já não há mais como discutir a necessidade da regulação. A questão é discutir como e quando vamos regular, porque as plataformas digitais precisam ser reguladas, do ponto de vista econômico, para fazer a tributação justa, proteger direitos autorais e impedir a dominação de mercados; para proteger a privacidade, porque essas plataformas sabem nosso nome, onde moramos e o quanto ganhamos, sabem também qual foi o último filme que assisti, o último livro que comprei, a última pesquisa que fiz e qual é a doença com a qual estou preocupado agora, é importante regular para que essas informações não sejam veiculadas indevidamente; por fim, é indispensável regular para disciplinar os chamados comportamentos coordenados inautênticos e os conteúdos ilícitos”, defendeu Barroso.
Para o ministro, o formato deve ser o da autorregulação regulada, com a criação de um órgão independente e não governamental para monitorar o dever de cuidado das plataformas, que precisarão se obrigar a remover conteúdos criminosos por via algorítmica – como hoje já o fazem em relação à pedofilia e ao terrorismo – e nos casos de inequívoca violação de direitos, além daqueles em que houver expressa determinação judicial.
O Deputado Orlando Silva também defendeu a autorregulação regulada, igualmente por meio da criação de um mecanismo de supervisão pública, e aprofundou o debate elencando as oito hipóteses, incluídas em seu relatório, nas quais deve ser exigido o dever de cuidado das plataformas: ataques ao Estado Democrático de Direito; crimes contra a infância e a adolescência; indução à mutilação e ao suicídio; terrorismo; violência contra a mulher; racismo; infrações sanitárias; e crimes contra a saúde pública.
“É desafiador o cenário que temos no caso brasileiro, mas sou muito otimista, porque percebo que aos poucos a sociedade se dá conta da importância de estabelecer parâmetros e regras para que possamos explorar as maravilhas e potencialidades oferecidas pela tecnologia. Espero que o Parlamento brasileiro num prazo muito breve se encoraje e dê a sua contribuição para isso, inclusive superando as reflexões que estão no STF acerca do art. 19 do Marco Civil da Internet (Lei no 12.965/2014), que foi fundamental há dez anos e segue sendo um parâmetro eficiente no Brasil e no mundo, mas que carece de desenvolvimento, levando em conta a dinâmica que alcançou o universo digital”, opinou o parlamentar.
Pesquisas judiciais – Uma série de outros debates relevantes foi realizada em paralelo à programação principal, como no painel “Um novo tempo de pesquisas judiciais – Dados sobre como decide a Magistratura brasileira”. Mediada pelo Ministro Luis Felipe Salomão, Coordenador do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV e Presidente do Conselho Editorial da Revista JC, a mesa contou com a participação de outros membros do Centro de Inovação, como o Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) Elton Leme e os juízes federais do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) Marcus Lívio Gomes, Daniela Pereira Madeira e Caroline Tauk – coordenadora acadêmica do Centro de Pesquisas Judiciais da Associação dos Magistrados Brasileiros (CPJ/AMB).
“Acreditamos que não se pode chegar a um bom quadro sem um bom diagnóstico, o que só é possível por meio de pesquisas qualificadas, para apontar os defeitos e as possíveis soluções. É um trabalho que desenvolvemos com muito cuidado já há cinco anos, produzindo pesquisas de muita qualidade e reconhecimento no mundo científico, no mundo acadêmico e pelo próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ), porque são análises independentes, feitas por profissionais de gabarito, sem as amarras dos canais oficiais”, comentou na abertura do painel o Ministro Salomão.
O Desembargador Elton Leme apresentou os resultados de pesquisa inédita sobre fake news e moderação de conteúdo pelo Poder Judiciário, que analisou decisões do STJ envolvendo plataformas digitais. Segundo o levantamento, 63% das decisões estabeleceram obrigações de fazer, como a retirada de conteúdos e pagamento de indenizações, tendo como fundamentos mais frequentes os danos à imagem, os discursos de ódio, a pornografia de vingança e o desrespeito aos direitos autorais. A pesquisa também mostra que os dispositivos legais mais citados nas decisões foram os artigos 19, 20, 21 e 22 do Marco Civil da Internet.
A Juíza Daniela Madeira e o Juiz Marcus Livio Gomes apresentaram os dados preliminares de outra pesquisa, com lançamento previsto para setembro, sobre a atuação do Poder Judiciário no combate à lavagem de bens e capitais relacionados a crimes ambientais, feita a partir da sistematização de informações sobre processos judiciais disponíveis na base de dados do DataJud e também obtidos a partir da análise de diários oficiais.
“A partir de agora estamos fazendo políticas públicas baseadas em evidências. O Poder Judiciário sempre foi intuitivo ao legislar com provimentos e resoluções, mas agora temos a real fotografia, sabemos exatamente o que está acontecendo, o que possibilita uma abordagem resolutiva por parte da Corregedoria”, comentou Gomes. Ele acrescentou que a partir dos dados obtidos será possível traçar estratégias e planos de ação para atuar nos polígonos desses crimes, verificar sua reparação, identificar as cadeias de valor e alertar o Ministério Público sobre condutas ilícitas que ainda não foram judicializadas.
Segunda a Juíza Daniela Pereira, a pesquisa também vai ajudar a identificar todos os envolvidos nos crimes relacionados à grilagem de terras e à extração ilegal de madeira e minérios. “Há toda uma estrutura, com vários atores envolvidos, em situações que ocorrem geralmente em áreas da União e terras indígenas, com a utilização de empresas formais para fazer a lavagem de dinheiro”, acrescentou a magistrada.
Fake news e participação feminina no Judiciário – A Juíza Federal Caroline Tauk apresentou resultados parciais de duas pesquisas. A primeira, intitulada “O que é a desinformação no Judiciário brasileiro”, analisa julgados sobre o assunto no STF, no STJ, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e no Tribunal Superior do Trabalho (TST). Segundo o levantamento, a maior parte dos conteúdos de desinformação hoje no Brasil é relacionada às questões eleitorais e ao ambiente político, por isso a maior parte desses processos vai parar no TSE, tendo como principais autores os políticos e os partidos políticos.
“No TSE, as ações que discutiram fake news e desinformação aumentaram mais de 300% nas eleições do ano passado. Tínhamos em 2021, 31 ações no TSE em que os políticos diziam que havia conteúdo falso propagado contra eles. Esse número aumentou para 127 em 2022. Temos, portanto, uma conclusão bem clara no sentido de que no Brasil a maior parte da desinformação é relacionada ao conteúdo eleitoral”, comentou a magistrada.
Outra conclusão extraída da pesquisa é que ainda não existe uma conceituação uniforme sobre o fenômeno nos tribunais superiores, nos quais juízes usam expressões diversas como desinformação, fake news, conteúdo falso, notícia enganosa, fraude informacional, conteúdo inverídico, etc. “Por isso, estabelecer parâmetros legais de atuação talvez possa ajudar os juízes na hora de decidir”, acrescentou a Juíza Federal Caroline Tauk.
A segunda pesquisa apresentada por ela diz respeito à participação feminina no Poder Judiciário, feita em parceria com a Enfam, que ouviu 1.450 magistradas de todos os ramos do Poder Judiciário brasileiro e buscou investigar, com a aplicação de 103 perguntas, porque as mulheres brasileiras têm reclamado tanto das dificuldades de atuação na carreira.
“De 2010 em diante temos observado uma queda de mulheres no Judiciário, não se sabe os motivos ainda, precisamos investigar. A maior parte dessas mulheres está no primeiro grau de jurisdição, 90%, só 7% são desembargadoras e somente 0,1% são ministras, que podem ser contadas nos dedos das mãos. Por isso é que a Presidente da Associação Paulista dos Magistrados (Apamagis), Vanessa Mateus, diz que temos na magistratura ‘o teto é de vidro e o piso é pegajoso’, ficamos grudadas na primeira instância”, comentou Tauk.
Direitos e garantias individuais – A mesa sobre “Mecanismos de aprimoramento das investigações criminais”, moderada pelo Presidente da OAB, Beto Simonetti, contou com a participação, dentre outros, dos Ministros do STJ Sebastião Reis e Rogério Schietti, e do professor da Unione Nazionale Avvocati per la Mediazione, da Itália, Andrea Marighetto. O painel debateu os limites dos poderes de investigação quando estes esbarram nos direitos individuais dos cidadãos.
“Precisamos acabar com o mito de que o Brasil é um país amigável, em que não existe preconceito e racismo. Esse tipo de atitude mostra justamente o contrário”, pontuou o Ministro Sebastião Reis, após enumerar abusos cometidos em abordagens policiais, notadamente contra cidadãos pobres e negros. Segundo ele, todas as recentes decisões da Seção de Direito Penal do STJ relacionadas à quebra de sigilo sem justificativa, invasões de domicílio, prisões por mera identificação fotográfica ou denúncias anônimas, brutalidade policial e outras arbitrariedades correlatas têm como objetivo preservar os direitos e garantias individuais. “Espero que esse novo andar se consolide e, mais do que isso, que a autoridade policial e o Ministério Público se convençam da importância de respeitar os mesmos limites. Provavelmente, se houvesse um controle maior do MP numa de suas inúmeras competências, que é o controle da atividade policial, grande parte dos processos que hoje chegam ao Tribunal não chegaria mais”, disparou o magistrado.
O Ministro Rogério Schietti lembrou que as garantias individuais do Processo Penal no Brasil são muito semelhantes às que existem em Portugal, na Itália, nos EUA e em outros países. O problema está no que ocorre nas delegacias e nas abordagens e operações policiais.
“Temos procurado avançar, não para criar dificuldades, atrapalhar ou simplesmente dizer que o policial é truculento. Muitas vezes é, mas respeitar o trabalho da polícia é fundamental, para coibir os crimes, prender os criminosos, investigar as condutas ilícitas e trazer ao Poder Judiciário o conjunto de provas que nos permita bem julgar. Infelizmente, porém, a tradição das nossas polícias é autoritária, talvez porque não haja essa fiscalização, talvez porque os atos sejam praticados distantes daqueles órgãos que normalmente poderiam coibir essas práticas, como o promotor, o juiz e o advogado. O público destinatário desta atividade também é quase sempre o público das periferias, jovens, negros, mal vestidos, desempregados, sem educação formal, totalmente desamparados e invisíveis, que, portanto, são alvos fáceis para todo tipo de truculência e de abuso. Quando procuramos anular essas assimetrias, o que estamos tentando fazer é dar civilidade à investigação e elevar o inquérito policial a um patamar de atividade estatal que minimamente possa representar algo correspondente à República fundada na dignidade da pessoa humana. Não é para impedir o trabalho da Polícia”, argumentou o Ministro Schietti.
Único civilista nesta mesa de Direito Penal, o professor Andrea Marighetto lembrou que há elementos do Direito Civil que podem ser utilizados para resolver questões de caráter criminal, como os instrumentos de compliance e os acordos de colaboração. Fez assim uma provocação de que é possível utilizar outros modelos para promover a luta contra a criminalidade e ao mesmo tempo preservar os direitos fundamentais, fazendo com que os equilíbrios processuais sejam mantidos. “Precisamos de novos modelos para manter o Estado Democrático de Direito e, ao mesmo tempo, a eficiência da luta contra a criminalidade. A proposta é justamente utilizar modelos do Direito Civil, baseados, por exemplo, no conceito de boa-fé objetiva”, comentou.
“O debate sobre os limites dos poderes de investigação vai sempre existir, porque de fato é um diálogo permanente entre diferentes poderes e entidades sobre as mudanças de metodologia que devem ocorrer para que o processo seja mais justo”, concluiu ele, lembrando que o mesmo debate sobre os limites dos poderes investigativos também ocorre atualmente na Itália, notadamente em relação à abolição do crime de abuso de autoridade.
Mudanças climáticas e desmatamento – As questões mais urgentes na área ambiental foram discutidas na mesa “Mudanças climáticas e desastres naturais”, com moderação do Desembargador Elton Leme, e participação, dentre outros, do Governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e do advogado Adriano Ribeiro. Em sua participação, Freitas apontou ações prioritárias de sustentabilidade em sua gestão, como o Plano Estadual de Meio Ambiente, o projeto para despoluição do Rio Tietê e a meta de universalização dos serviços de saneamento nos 645 municípios paulistas.
“A sustentabilidade está no topo das prioridades do nosso governo, para que São Paulo avance para o futuro. Nossa missão é trabalhar por um estado cada vez mais verde nas regiões metropolitanas, no interior e no litoral. Estamos fazendo um plano de adaptação climática, apoiando os municípios e trabalhando junto com as prefeituras para que nossas cidades sejam mais resistentes e resilientes a mudanças climáticas e ambientais. E também temos um Plano Estadual de Meio Ambiente”, disse o governador.
Já Adriano Ribeiro trouxe ao debate uma visão empresarial sobre o Regulamento Europeu para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR, na sigla em inglês), aprovado pelo Parlamento Europeu em abril deste ano, com previsão de entrada em vigor em 30 de dezembro de 2024. Ele apresentou várias críticas à nova lei. A primeira delas quanto à questão da soberania da legislação nacional: “Não contribui para esse processo a UE, através do seu regulamento, se sobrepor à legislação brasileira. (…) Nosso Código Florestal é um dos mais avançados do mundo, inclusive muito mais avançado do que diversas legislações europeias. Ele tem que ser respeitado, não adianta o Regulamento querer se impor à legislação nacional, é preciso criar um mecanismo para que convivam em harmonia”.
O diretor jurídico criticou ainda a calibragem da análise de risco proposta pelo EUDR, bem como seu caráter punitivo. “Simplesmente se afastar do problema bloqueando o sustento de famílias e pequenos produtores não nos parece adequado. Como contraponto, temos o projeto Escritórios Verdes, da JBS, que foi vencedor do Prêmio ESG da Exame. Temos uma série de compromissos com o Ministério Público de não comprar gado de áreas desmatadas, mas muitos pecuaristas não tinham condições de se adaptar. Por isso, nos últimos dois anos, apoiamos a regularização de seis mil produtores rurais. Poderíamos ter tomado a atitude de simplesmente bloqueá-los e deixá-los à margem do processo, mas decidimos dar assessoria técnica gratuita e acesso a linhas financeiras para que possam se adequar às exigências do MP. Isso é um processo inclusivo, que efetivamente faz com que sejamos parte da solução”, disse ele, que acrescentou: “O mais importante é encontrarmos uma visão colaborativa e não excludente”.
“Esse painel me deu muita alegria porque passamos ao largo do debate conceitual. Já temos ciência, informação, dados, tecnologia, recursos, legislação, Constituição e todas as ferramentas que precisamos para avançar nos temas climático, energético e socioeconômico. Nesse painel pudemos abordar ações concretas, que vão contribuir de forma real para transformar a realidade em relação ao meio ambiente”, comentou no encerramento do debate o Desembargador Elton Leme.
Recuperação judicial – Outro painel mediado pelo Ministro Luis Felipe Salomão foi sobre “Recuperação de empresas – A eficácia do modelo brasileiro”, que contou com a participação, dentre outros, da Conselheira Federal da OAB Juliana Bumachar e do professor de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Flavio Galdino, dois dos maiores especialistas em recuperação judicial no Brasil.
Na abertura do debate, o Ministro Salomão comentou o grande aumento do número de recuperações judiciais que ocorreu tanto no Brasil quanto na Europa nos últimos anos. Segundo ele, a média de sucesso das recuperações judiciais no conjunto da América Latina gira em torno de 30%. Já no Brasil essa média está na casa dos 18%, o que, segundo o magistrado, gera déficit de crédito e insegurança para novos investimentos, apesar dos avanços recentes, sobretudo a partir da reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falências, Lei no 11.101/2005, promovida com a aprovação da Lei no 14.112/2020.
Em sua participação, Juliana Bumachar falou sobre as dificuldades de utilização dos mecanismos de recuperação judicial pelas pequenas e médias empresas no Brasil, seja pela falta de documentação contábil, seja pelo alto valor das custas iniciais (acima de R$ 40 mil) e da remuneração dos administradores judiciais. “Por mais que elas formem a maioria das empresas em recuperação hoje, a LRJ não é eficaz para esse tipo societário”, comentou a advogada. Para superar estas dificuldades, ela apontou como alternativa a aprovação do projeto de lei complementar no 33/2020, que objetiva instituir o Marco Legal do Reempreendedorismo, para estabelecer a renegociação extrajudicial, a renegociação especial judicial e a liquidação especial sumária de micro e pequenas empresas.
O professor Flavio Galdino comentou ter sido extremamente bem sucedida a reforma legislativa do modelo brasileiro de recuperação judicial, realizada em 2020, em um processo que segundo ele contou com abertura para intensa participação da sociedade e a incorporação de diferentes precedentes do STJ. Do ponto de vista dos avanços na legislação, ele ressaltou ainda a inclusão do Fisco na recuperação judicial e a criação de mecanismos para possibilitar a insolvência internacional.
No campo da regulação, Galdino também elogiou o trabalho desenvolvido pelo CNJ, que criou um grupo de trabalho para orientar os processos de recuperação judicial em todo o País. “Quando pensamos apenas em Rio de Janeiro e São Paulo, talvez essas normas fossem desnecessárias. Em última análise, os juízes do Rio e de São Paulo lidam com causas muito grandes, são amparados por opiniões de advogados dos mais qualificados, mas há recuperações no interior do Mato Grosso, no Amazonas e em outras localidades do interior que não estão preparadas para processá-las, pois não têm treinamento adequado para o trabalho concepcional que a Justiça tem feito.”
“Hoje, o Brasil é referência, inclusive para a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (Uncitral). É um dos sistemas mais eficazes do mundo graças à sinergia entre jurisprudência, regulação e legislação”, concluiu o professor.
Conclusões – A sessão de conclusões finais do XI Fórum Jurídico de Lisboa contou com a participação do Ministro Gilmar Mendes, do professor Carlos Blanco de Morais, do Ministro Luis Felipe Salomão e do Presidente do Congresso Nacional brasileiro, Senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Antes das falas das autoridades, foi realizada uma homenagem póstuma ao Ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino – um dos mais destacados magistrados da história recente do Poder Judiciário brasileiro, que também compunha o Conselho Editorial da Revista JC – e ao Diretor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa Danilo Doneda, pioneiro das discussões sobre a proteção de dados no Brasil.
“É muito importante, seja aqui em Portugal, seja no Brasil, que a desinformação, o achismo, a pouca ciência e a pouca base empírica deem lugar a debates que sejam verdadeiramente ricos, empíricos, científicos, pois as soluções do Brasil, de Portugal e do mundo de modo geral devem se dar a partir desse debate, dessa discussão qualificada que aponta diagnósticos, que aponta caminhos, no ambiente de uma universidade, com diversas personalidades, dos mais diversos poderes, das mais diversas instituições, buscando debater profundamente para dar solução a diversos problemas contemporâneos”, comentou o Senador Rodrigo Pacheco em sua participação.
Celebração da democracia – O encerramento do XI Fórum Jurídico de Lisboa contou com a participação do Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e do Vice-Presidente do Brasil, Geraldo Alckmin. Segundo este último, a democracia brasileira saiu fortalecida apesar do “momento triste” vivido pelo País nos atos golpistas de 8 de janeiro: “A democracia se consolidou, tivemos eleições livres, com urna eletrônica que é um exemplo para o mundo, com a Justiça Eleitoral atenta e vigorosa”, disse.
“A governança digital pode e deve permitir as liberdades de imprensa e expressão, mas, ao mesmo tempo, evitar fake news, desinformação, injúria, e estabelecer as regras para esse novo momento que o mundo vai viver”, acrescentou o Vice-Presidente a respeito do tema central do Fórum.
Marcelo Rebelo de Sousa concordou com a importância de regulamentar as redes sociais e controlar o poder das big techs para preservar os valores democráticos: “Esse caminho significa salvaguardar esses valores o mais rápido e amplamente possível, tentando controlar os poderes fáticos dos donos do digital. Os novos poderes digitais são transnacionais e exigem respostas transnacionais, não sendo possível pequenas respostas nacionais ou continentais.” O presidente de Portugal defendeu ainda que o acordo entre o Mercosul e a União Europeia seja celebrado “o mais rápido possível”, de preferência até o final deste ano: “É importante para o mundo que o Brasil lidera. É importante para a União Europeia”.