Getúlio Vargas por Hélio Fernandes

5 de agosto de 2004

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Getúlio Vargas foi sempre um homem marcado pelos golpes e pelas datas. Nasceu em 1883, pouco antes do primeiro golpe, em 1889, que implantou a República. Morreu em 1954, levando com ele essa mesma República que ajudou a desestruturar, a desequilibrar e a desacreditar.

Teve um início inesperado, de simples deputado sem expressão a Ministro da Fazenda e governador do Rio Grande do Sul, escolhido, prestigiado e garantido pelo presidente Washintong Luiz, que ele mesmo ajudaria a derrubar em 1930. Morreu aos 71 anos, depois de 15 anos de governo ditatorial, cruel e selvagem, mas com um final genial e dramático, como numa tragédia grega.

Tendo ficado 15 anos no Poder (que ele chamaria gozadoramente de “meu curto período de governo”), jamais se entendeu com a democracia, não tinha admiração por ela, nem mesmo o reconhecimento da eleição pelo voto em 1950, a primeira vez que isso acontecia na sua vida. Mas não sabia governar de forma democrática, não sabia antes, desaprendeu o que não sabia, nos longos anos da ditadura, matou-se de forma simples e genial, levando com ele os inimigos de sempre e até os adversários ocasionais.

Só que, enquanto Vargas recebia uma lápide que parecia esculpida pelo Aleijadinho ou projetada por Oscar Niemeyer, os outros eram sepultados como indigentes. E obteve tudo isso apenas com um tiro, não precisou mais do que isso. Atingiu os céus e a grandeza, mas não se reconciliou com a democracia. Pois Vargas foi sempre um ditador convicto.

É evidente que Getúlio Vargas é parte da enorme História brasileira. Ficou 19 anos no Poder, 15 como ditador satisfeito, 4 como presidente contrafeito. Como ditador mandava em tudo, como presidente não sabia de nada. A curiosidade que a História terá que desvendar: por que nos dois regimes Getúlio lutou tanto contra Osvaldo Aranha que o ajudou sempre. Uma das maiores figuras do seu tempo? E por que esse mesmo Vargas, também nos dois regimes, se entregou tanto a Lourival Fontes, talento puro e insuperável, canalha com a mais profunda convicção, só comparável à do padre Olimpio de Mello, que o próprio Vargas nomeou prefeito do então Distrito Federal?

É evidente que Vargas fez muita coisa, é isso que seus admiradores proclamam. Como não fazer em 15 anos de Ditadura, num governo no qual só existia ele e sua vontade inabalável? E quando falo em 15 anos, omito deliberadamente os outros 4, quando Vargas foi presidente apenas nominal, não chegou a empossar ou se apossar do Poder.

Está se completando agora 50 anos de sua morte. Portanto, os que estão atingindo os 60 anos não conheceram Vargas e seus governos, o que sabem dele é de ler ou ouvir, não é de viver, de presenciar, de se estarrecer, de se horrorizar, de se surpreender. Pois durante os governos, compreensível, e antes ou depois deles, incompreensível, teve a maior cobertura dos órgãos de comunicação. Nunca ninguém chamou Vargas de ditador. E até hoje, quando se fala ou se escreve que a ditadura inominável do Estado Novo acabou, não escreve sobre o fim dessa ditadura e sim “sobre a derrubada de Vargas”. As novas gerações só sabem de Vargas alguma coisa de positivo que não podia deixar de fazer. Mas não sabem nada do negativo, que “realizou” por imprudência, incompetência, inconseqüência, incoerência.

Como ditador convicto e assumido, Vargas era admirador de Mussolini e de Hitler. Tido e havido como “ger-manófilo” (palavra muito usada nos idos da Segunda Guerra Mundial), não fosse Osvaldo Aranha e alguns outros mais lúcidos e mais democratas, teríamos perdido a Segunda Guerra Mundial, junto com a Alemanha, a Itália e o Japão.

A partir de 1932 (principalmente com a chegada de Roosevelt ao Poder e a Terrível recessão-depressão dos Estados Unidos), os trabalhadores do mundo inteiro foram conquistando direitos que nunca tiveram. Esper-tíssimo, Vargas se associou a essa onda, fez algumas (muitas) modificações nas relações capital-trabalho. Nada revolucionário, apenas o eventual, circunstancial, ocasional.

Vargas não sabia nada de coisa alguma. Em 1942, foi o primeiro a querer estancar a inflação usando como arma de grande calibre a mudança de moeda. Era o mil-réis, Vargas transformou em cruzeiro, a inflação galopando ainda mais. É verdade que deixou grande saldo em dólares, que o sucessor indicado por ele, seu ministro da Guerra durante todo o Estado Novo, o marechal Dutra, jogou fora impensadamente.

Dutra se “amarrou” aos americanos, jogou fora todas as nossas dívidas, acumuladas por um único motivo: como o mundo inteiro estava em guerra, o Brasil era praticamente o único vendedor. O marechal Dutra se rendeu aos americanos, mestres incontestáveis na arte de vender matéria plástica a preço de ouro e comprar ouro pagando como se fosse matéria plástica.

Logo que ao Poder, a partir de 1931, Getúlio Vargas surgiu com a “idéia genial”: jogar café ao mar ou queimá-lo, para “valorizar os estoques”. Éramos então o maior e talvez único produtor de café do mundo. 96 por cento do café bebido pelo mundo eram plantados, colhidos e exportados pelo Brasil. E 94 por cento eram de São Paulo. (essa uma das “razões secretas” da revolução de 9 de julho de 1932, em São Paulo. Razões sempre esquecidas ou jogadas para debaixo do tapete. Vargas esmagou essa revolução, para se eternizar no Poder.)

Fazia qualquer coisa para continuar no Poder, se aliava tranqüilamente com inimigos, destruía tranqüilamente amigos. Não tinha a menor convicção, enche a História do Brasil com episódios hediondos e poucos que possam ser chamados de soberbos.

A melhor prova do que digo, e eu poderia ir dizendo de forma interminável: manteve Luiz Carlos Prestes preso, torturado e desesperado, de 1936 a 1945. Quando precisou de Prestes para se manter e continuar, soltou-o com a obrigação de apoiar o que foi chamado de “Constituinte com Vargas”. Prestes aceitou, o povo reprovou, nenhum dos dois se agüentou.

PS – Tudo isso que digo não vai destruir ou invalidar a admiração de tantos pelo ditador. Mas é preciso ser dito. Sem ódio, sem ressentimento, sem espírito de vingança. Mesmo porque Getúlio Vargas é um personagem rigorosamente histórico. E a História não se estabelece com verdades, mesmo comprovadas. E que, seja como for, não o atingirão. E o 24 de agosto de 1954 é um episódio inédito no mundo e inesquecível no Brasil.