Gilmar passa em revista os anos lavajatistas e aponta suas contradições

1 de março de 2022

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Ministro Gilmar Mendes, decano do STF, aponta as contradições da ‘lava jato’. Foto: Nelson Jr. / SCO/ STF

“Nós produzimos mais uma singularidade no Brasil, que são os combatentes de corrupção que gostam muito de dinheiro”. Assim, direto ao ponto, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, apontou uma das contradições do modelo lavajatista que tanto sucesso fez em anos recentes, modelo em que procuradores, ao mesmo tempo em que se apresentavam como heróis do combate à corrupção, longe dos olhos do público não abriam mão de uma boa quantidade de benesses.

Em entrevista ao programa “Ziriguidum”, apresentado pelos jornalistas Reinaldo Azevedo e Leandro Demori e transmitido por meio da rede social ClubHouse, Gilmar também apontou uma contradição do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro: depois de muito tempo negando ter qualquer relação com o trabalho dos procuradores da “lava jato”, agora ele se diz chefe da falecida “força tarefa”, de olho nas eleições presidenciais. Em outras palavras, assumiu que comandava as ações da turma de Curitiba.

Além de passar em revista o lavajatismo, na entrevista Gilmar também falou sobre a vocação contramajoritária do STF e sobre sua velha predileção pelo modelo semipresidencialista de governo.

Leia a seguir as declarações do ministro ao programa “Ziriguidum”:

Metodologia da ‘lava jato’
“A ‘lava jato’ logrou galvanizar um apoio da imprensa e da opinião pública. Tanto é que se falava que contrariar a ‘lava jato’ era tão mais herético do que contrariar alguma disposição da Bíblia.

Claro que houve também uma tentativa de amedrontamento geral. Quem ousaria enfrentar a ‘lava jato’ se eles tinham o poder de abrir inquérito contra ministros do STJ?

Era uma forma de totalitarismo judicial, com o vazamento e com a colaboração da mídia. Na gestão do (ex-PGR Rodrigo) Janot havia 12 assessores de imprensa incumbidos de vazar informação. Isso era uma manipulação. Havia esse colaboracionismo. Joga-se depois nos jornalões, no Jornal Nacional e tudo mais. Houve uma manipulação consciente e claro que opressiva. Eu acho que essa seleção de algo para ser vazado tinha esse objetivo: ‘Tenho um fato muito relevante e por isso preciso retirar o sigilo’.

Quem iria enfrentar isso nesse contexto exigia alguma dose de heroísmo e, claro, um enfrentamento da própria opinião pública. Havia um carimbo: ‘Fulano é contra a ‘lava jato”. Esse temor certamente teve um grande efeito.

O medo, obviamente, passa a ser esse elemento de contenção. E, claro, muitos tentaram escamotear esse medo com frases supostamente heroicas, e de amor ao combate à corrupção, quando na verdade o que a Justiça tem de fazer é exercer o seu afazer aplicando bem a lei.

Não vamos esquecer: o Moro trouxe de Curitiba para representá-lo no Coaf um tal de Roberto Leonel, que é um personagem da ‘vaza jato’. Ele cooperava ilegalmente com a ‘lava jato’, passando informações de forma clandestina para o grupo. Pessoas da Receita Federal e também da Polícia Federal integraram esse processo.

Recentemente o Moro disse que ele era o chefe da ‘lava jato’. Eu estou esperando que ele daqui a pouco reivindique salários também na procuradoria. Veja que ato falho: ele se queixa da decisão do Supremo que o declarou suspeito. Não obstante, ele diz que chefiava a ‘lava jato’, o que significa chefiar procuradores. Ele era chefe do Dallagnol, de toda aquela equipe de procuradores, de delegados, policiais e inclusive de gente da Receita Federal, que integrava todo esse grupo.

Esse consórcio com a própria opinião pública levou, como todos sabem, até, em algum momento, a ‘lava jato’ a assumir funções legislativas — que são as Dez Medidas, muitas delas claramente inconstitucionais, e que foram apresentadas a partir desses nossos novos gênios de Curitiba e que trouxeram para o Congresso Nacional. E lá havia, por exemplo, aproveitamento de provas ilícitas. É muito engraçado, agora, eles dizerem que a ‘vaza jato’ não é relevante, ou que tudo está calcado em provas ilícitas, quando eles defendiam o uso de provas ilícitas no pacote das Dez Medidas. Ou mesmo eram contrários à Lei de Abuso de Autoridade. De fato, me parece que havia um projeto bem articulado no sentido de criar esse tipo de constrangimento”.

Lavajatistas abastados
“Nesses episódios que têm sido revelados — agora o emprego do ex-juiz na Alvarez & Marsal e tudo mais —, nós produzimos mais uma singularidade no Brasil, que são os combatentes de corrupção que gostam muito de dinheiro. Nós vimos esse episódio do Deltan Dallagnol, que estava criando uma portentosa fundação e hoje ninguém tem dúvida, era uma fundação para fins políticos.

O próprio núcleo da ‘lava jato’ era de procuradores que eram requisitados de outros locais e que ganhavam diárias. Portanto duplicavam o seu salário, e ninguém podia falar nada, porque obviamente todos estavam operando para salvar o país. Nós tivemos casamentos de advogados com grupos de delatores que podem ter sido forçados à prisão que se estendia.

O próprio fato de o ex-juiz deixar funções, virar ministro da Justiça e depois prestar serviço a uma empresa americana que ganha dinheiro com a recuperação judicial das empresas que quebram… É tudo muito nebuloso, precisa ser estudado. Certamente o combate à corrupção precisa ser aprimorado e precisa ser continuado, mas esse modelo deixou muito a desejar”.

Judicialização da política
“Sem dúvida nenhuma, o próprio controle de constitucionalidade das leis já envolve, em certa medida, uma possível judicialização pelo menos do processo decisório político, porque ao fim e ao cabo se traz para o Judiciário, para uma Corte Suprema, uma corte constitucional, como é o caso do Supremo Tribunal Federal, o papel de dizer se uma decisão política, uma lei, vale ou não vale. Então isso já leva a essa chamada judicialização da política, que no Brasil é muito ampla, se nós considerarmos que qualquer partido político com um representante no Congresso Nacional pode impugnar uma lei que tenha sido decidida.

O outro aspecto é a partidarização, ou mesmo a politização da Justiça. Nós temos alguns exemplos de interferência no processo político através, muitas vezes, até mesmo do processo criminal. Algumas ações que se tomam às vésperas das eleições, por exemplo. O juiz que decide esse processo e que condena esse candidato, depois aceita um convite para ser ministro do candidato vitorioso que era possível adversário daquele que foi preso.

O próprio CNMP tem se debruçado sobre isso, promotores ou às vezes juízes que usam, especialmente, o processo criminal, mas não só, para atingir determinados desideratos políticos”.

Prisões e solturas
“Há um discurso muito forte no sentido de que nós prendemos pouco e que é preciso, portanto, repudiar a ideia do trânsito em julgado ou introduzir a ideia da segunda instância. Mas o Brasil está em terceiro lugar entre os países que mais aprisionam pessoas. Cerca de um milhão de pessoas estão presas neste momento no Brasil, e 400 mil presos, talvez a metade, 40%, de presos provisórios. Veja, portanto, a distorção.

Nós estamos falando de pelo menos 800 mil, 900 mil presos para 400 mil vagas formais. Portanto, já é uma decretação de superlotação. No meu período de presidente do Supremo e do CNJ, 2008 a 2010, nós lançamos a ideia do mutirão carcerário, e à época libertamos pelo menos 22 mil pessoas que estavam nesses calabouços e alguns, presos provisoriamente por quatro, cinco, seis, sete, oito, nove anos. Nós encontramos alguém preso em Fortaleza provisoriamente havia 11 anos. Nós encontramos alguém em Vitória, no Espírito Santo, preso havia 14 anos provisoriamente”.

Vocação contramajoritária do Supremo
“A vocação contramajoritária faz parte também desse conceito de Constituição. A Constituição estabelece molduras, paradigmas, limites e exige que alguém faça essa interpretação de forma autorizada, e que eventualmente declare a inconstitucionalidade de leis ou atos que são praticados por alguém que tenha legitimação. O presidente, muitas vezes, tem, no nosso caso, a legitimidade de milhões de votos. O Congresso Nacional, às vezes, se nós somarmos as maiorias que aprovam um projeto, também. Não obstante, essas decisões são colocadas em xeque perante um tribunal, que decide — e às vezes, no nosso caso, por 6 a 5 — que uma dada lei é inconstitucional e isso vale.

E é assim, em geral, no mundo civilizado, essa ideia de que o tribunal faz esse controle, portanto, seria uma instituição com uma função contramajoritária. Faz prevalecer os direitos assegurados na Constituição contra maiorias expressivas, ou que se traduzem em maiorias expressivas a partir da votação que obtiveram. Por outro lado, muitas vezes o juiz, um só juiz, tem de tomar uma decisão sobre uma prisão arbitrária ou uma prisão absurda. Aqui podemos ter, dependendo inclusive dos meios de comunicação, a população inteira aplaudindo, como nós vimos no Brasil há pouco tempo. Uma dada prisão e alguém tem de dizer: assim não pode, isso não vale, essas regras não podem ocorrer.

Vejam vocês o exemplo que nós tivemos da ‘lava jato’. Nós tivemos quantos casos de condução coercitiva? 200, 300 só na ‘lava jato’. Nesses casos todos nós tínhamos uma verdadeira prisão para averiguação, com a imprensa avisada. E o Supremo Tribunal Federal, por 6 a 5, decidiu que as conduções coercitivas de réus ou investigados eram ilegais e inconstitucionais. Certamente é uma decisão contramajoritária em relação à população como um todo, que entendia, talvez, que aquilo fosse correto e que talvez fosse até legal, no sentido vulgar do tema”.

Competência do STF
“Em princípio, nós devemos levar em conta que temos uma Constituição que criou um modelo de jurisdição constitucional forte. É uma quase livre provocação do STF, pelo menos pelas entidades políticas ou representativas políticas. Por outro lado, nós temos também um texto constitucional bastante detalhado, bastante analítico e isso se explica porque, ao sairmos da ditadura e irmos para um processo constituinte, nós buscamos tomar uma vacina contra aquilo que tinha ocorrido durante o regime autoritário. Então se colocou no texto constitucional um sem número de normas e limitações, e isso depois se traduz em desafios de aplicação. O ideal é que muitas das questões fossem arbitradas em outros níveis e não precisassem chegar ao STF.

Nós temos um amplo dissenso político e a sociedade hoje traduz um pouco isso. Busca-se proteção ou a participação do STF. Eu tenho expectativa, espero que justa, de que no futuro próximo nós venhamos a construir um consenso básico em que as divergências vão continuar a existir, fazem parte da democracia, mas certamente não precisamos chegar a esses detalhes.

Um plano nacional de imunização foi exigido pelo STF, para que estados e municípios seguissem a orientação da OMS e pudessem enfrentar a União, que queria liberar as atividades de maneira geral e repudiar o isolamento social. Não é fácil se sair bem nesses casos, porque são muitas perguntas que exigem respostas muito prontas e acho que o tribunal contribuiu. Eu tenho a impressão de que, não fosse a ação do STF, talvez nós tivéssemos ultrapassado um milhão de mortos. O tribunal foi bastante incisivo e, eu diria, decisivo no que concerne à proteção ao direito à saúde”.

Escolhas políticas para a corte
“Certamente todo sistema é passível de aperfeiçoamento. Agora, não nos esqueçamos que também nas indicações que se fazem no âmbito dos demais tribunais ocorre algum tipo de escolha política. Nós temos até casos em que, na eleição mesmo da chapa para a OAB, já se discutem os nomes que serão indicados nas eventuais vagas que surgirem no chamado quinto constitucional. Portanto, a mim me parece que devemos ter muito cuidado se nós quisermos banir todo esse processo, que entendo que faz parte da democracia.

A mim me parece que qualquer modelo que venhamos a escolher pode depois apresentar problemas. Se deixássemos só com os tribunais, certamente também teríamos o elemento político no âmbito dos tribunais”.

Mandato para ministros do STF
“Normalmente as cortes constitucionais hoje têm mandatos longos: oito, nove, dez, 15 anos. E são raros os casos, mesmo não havendo um limite de tempo, de pessoas que ficam além de um dado prazo como esse. Normalmente as pessoas já são indicadas com uma certa idade e acabam saindo dentro de um dado prazo.

O problema do mandato é que nós vamos ter uma renovação muitas vezes coincidente da corte, com problemas para a própria jurisprudência. Quem é que vai fazer também essa escolha, como é que vai se dar? Quem vai fazer as indicações? Será ainda o presidente da República ou devem ser também Câmara e Senado?

Eu tenho a impressão de que é preciso também respeitar um pouco a tradição. A ideia do limite temporal, do limite de idade, parece razoável, consonante com a tradição que nós desenvolvemos ao longo de toda a República”.

Fim da doação de empresas a campanhas
“Eu tenho a impressão que de fato não se melhorou. Tanto é que nós estamos vivendo esse quadro de problemas, no que diz respeito, por exemplo, às emendas. Veja que, naquele momento mais fraco do governo Dilma, ela tem de conviver com as chamadas emendas orçamentárias impositivas e isso não é suficiente. Agora vêm as emendas de relator, que são apenas uma metáfora, uma metonímia para emendas que são destinadas a pessoas da base de apoio do governo.

Nós sabemos também que há um certo caciquismo com esse chamado financiamento público das campanhas. Os partidos fazem grandes bancadas e depois distribuem recursos que permitem a renovação do mandato. É um novo experimento, mas certamente nós não eliminamos o fenômeno de desvios ou de corrupção. E recentemente se permitiu, inclusive, eventos de arrecadação de campanha, a ideia do showmício. Portanto, é um retorno a um tipo de iniciativa de financiamento de campanha.

É claro que a questão é muito mais profunda, nós temos de fazer reformas políticas que reduzam o número de partidos e tudo o mais, mas certamente não houve a depuração do sistema com o banimento das doações das empresas privadas”.

Eleição sindicalista para lista tríplice da PGR
“De fato isso deu errado e nós precisamos rediscutir esse modelo. Nós tivemos grandes procuradores-gerais: Moreira Alves, Sepúlveda Pertence… Portanto, é possível encontrar nomes na comunidade jurídica. Certamente isso precisa ser discutido, para que se faça uma reforma, porque esse modelo criou um sistema de uma flagrante irresponsabilidade em todos os sentidos — no sentido jurídico e no sentido vulgar do termo”.

Lei de Abuso de Autoridade
“Eu sempre defendi a lei. Ela tem um aspecto cultural e, claro, depende de iniciativas. São ações penais públicas, dependem de iniciativas do Ministério Público. Mas ela tem também uma função didático-pedagógica. Ver o Moro agora seu defensor é um dado importante. Isso prova aquela fórmula velha do Machado de Assis: ‘A melhor forma de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo nas mãos’. Às vezes o chicote muda de mãos, então… Eu acho que ter aprovado a Lei de Abuso de Autoridade já foi um passo importante, mas a gente tem de continuar a valorar”.

Liberdade de expressão
“O STF já teve várias oportunidades de dizer que a liberdade de expressão é um valor importante. A gente até diz que é um direito relevante do ponto de vista da própria funcionalidade da democracia, junto com a liberdade da manifestação de pensamento, com a liberdade de reunião, especialmente reunião a céu aberto. Mas isso se faz dentro de limites. E o texto constitucional é claro em relação a isso quando, por exemplo, estabeleceu que o racismo seria crime. Portanto, a Constituição tenta fazer e busca fazer esse balanceamento. É preciso que se assegure a liberdade de expressão, observados limites, como o da dignidade da pessoa humana, do direito à privacidade, à intimidade.

Acho que a Constituição precisa ter esse caráter de um elemento de proteção ativo. Não só de coibir, mas de repúdio a determinadas práticas. Se alguém decide em nome da liberdade de expressão defender publicamente a pedofilia, vamos dizer não. Tudo tem limite, isso é crime.

E muitas vezes pessoas usam essa liberdade de expressão para atingir minorias, falar contra negros, falar contra migrantes, contra determinadas comunidades”.

Semipresidencialismo 
“Nós discutimos essa questão durante o processo constituinte. Em algum momento até se diz que a Constituição tinha um viés parlamentarista. De fato o poder do Congresso Nacional se revela de maneira muito pronunciada. Em alguns momentos, nós temos passado também por esse tipo de situação, em que o Executivo talvez seja menos efetivo, mais claudicante e sobretudo os presidentes de Câmara e Senado exercem um papel supletivo. Então esse quadro de alguma forma já existe.

O que eu tenho dito é que talvez valesse a pena nos encaminharmos para um modelo, talvez, de uma gestão colegiada, portanto, um modelo semipresidencialista. Claro que nós temos de fazer reformas e reduzir o número de partidos, ter uma certa representação. Mas o presidente teria determinadas funções, seria eleito em eleições diretas, poderia ter responsabilidade sobre negócios estrangeiros, eventualmente designar a pasta das Relações Exteriores ou o comando das Forças Armadas, teria funções até de dissolver a Câmara ou o Congresso em momentos de crise. Mas ele não teria a responsabilidade pela gestão. A gestão seria de um ministro-coordenador. Chamemos, então, de um primeiro-ministro, que seria eleito pelo Congresso Nacional.

Em suma, na medida em que nós chegamos a um modelo como esse, certamente vamos dedicar mais atenção para as eleições parlamentares. Nós temos um certo parlamentarismo sem uma específica responsabilidade. O modelo semipresidencialista faria com que a maioria do Congresso assumisse a responsabilidade de governar. Portanto, tomaria decisões, fixaria decisões de políticas públicas, as executaria com responsabilidade.

É claro que não sou simplista ao ponto de imaginar que isso é possível de se fazer com 20 e tantos partidos representados no Congresso Nacional. Sei que há pressupostos para caminhar para isso. Mas eu espero que nós caminhemos para isso.

O presidente da República não precisa ser esse super-homem, na verdade. Nós não precisamos nutrir esse tipo de expectativa e passamos a ter esse ideário de um governo colegiado, que é o que o mundo todo civilizado, com exceção talvez dos Estados Unidos, pratica.

Eu tenho a impressão de que uma emenda constitucional — pelo menos acho que é um consenso entre importantes constitucionalistas — poderia dissolver bem o problema”.

Publicação original: Conjur