Edição 291
Governabilidade e emendas impositivas
8 de novembro de 2024
Jorge Rubem Folena de Oliveira Advogado / Membro do IAB
No dia 27 de julho de 1988, o ex-presidente José Sarney dirigiu-se aos constituintes, em cadeia nacional de rádio e televisão, para afirmar que o texto constitucional que estava para ser aprovado deixaria “o país ingovernável”.
Na verdade, José Sarney manifestou na ocasião os interesses da classe dominante brasileira, que entendia que o reconhecimento dos amplos direitos sociais inseridos na Constituição de 1988 teria um grande impacto sobre o orçamento geral da União, controlado para satisfazer apenas os interesses dos muito ricos, deixando os pobres entregues à própria sorte. É importante lembrar, por exemplo, que, antes da Constituição de 1988 não existia o Sistema Único de Saúde (SUS), com atendimento universal para todos os brasileiros.
E o presidente Sarney afirmava que o novo texto constitucional representaria desencorajamento à produção, induziria o país ao “ócio à produtividade” e “o governo não teria dinheiro para pagar os benefícios sociais aprovados pelo Congresso Constituinte”; ou seja, a mesma conversa empregada até hoje para justificar as reformas.
Naquela oportunidade, Luís Inácio Lula da Silva, deputado federal e líder de seu partido na Assembleia Constituinte, assim se manifestou: “aa fala do presidente causou três espantos: 1) ver um presidente assustar a nação com o fantasma da ingovernabilidade usando informações imprecisas; 2) ver um presidente reclamar contra liberalidades da constituinte, quando seus líderes não só não ficaram calados, como votaram a favor dos dispositivos citados; 3) ver um presidente da República, supostamente guardião da independência e da economia do país, ocultar em seu pronunciamento que está forçando a eliminação da propriedade da União sobre o subsolo, a volta concreta do contrato de risco e a preferência à empresa nacional ao Estado”.
Com certeza, ao contrário do que afirmou José Sarney em julho de 1988, o Brasil não se tornou ingovernável em decorrência da implementação dos direitos sociais previstos na redação originária da Constituição de 1988, mas sim pela quebra do equilíbrio das forças políticas e sociais, que, segundo a lógica do pensamento liberal, deveria se manifestar pela harmonia e a separação dos poderes.
Digo isto por causa das recorrentes investidas do Poder Legislativo sobre o controle do orçamento da União, que têm ocorrido nos últimos anos no Brasil. De acordo com a Constituição, aprovada originalmente em 1988, o orçamento deve ser elaborado pelo Poder Executivo e autorizado pelo Parlamento, a cada ano, por meio da lei orçamentária anual. Nesse caso (do orçamento autorizativo), o Poder Executivo poderia deixar de executar as despesas indicadas pelos parlamentares, por ser a administração do orçamento público atribuição exclusiva do governo, num regime presidencialista.
Contudo, diante da fragilidade política a que foram conduzidos alguns governos, como sucedeu no início do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff (que não tinha maioria parlamentar e enfrentava clara ação de desestabilização política contra seu governo desde o final de 2014), o Parlamento aprovou a Emenda Constitucional 86, de 17/03/2015, que tornou impositivas as emendas individuais dos parlamentares ao orçamento. A partir daí, o governo estava obrigado a executar as emendas ao orçamento apresentadas pelos parlamentares; deste modo, foi invadida a esfera de competência direta do Poder Executivo, que tinha sido determinada originalmente no texto constitucional aprovado em 5 de outubro de 1988.
Assim, teve início o processo de controle de parte do orçamento pelos parlamentares, que passaram a direcionar em suas emendas as verbas indicadas sem qualquer critério de transparência, e, em muitos casos, para fomentar seus interesses políticos e até mesmo particulares.
Em 2019 foi aprovada a Emenda Constitucional 100, de 26/06/2019, que ampliou o orçamento impositivo para tornar obrigatória a execução da programação orçamentária de bancadas parlamentares. Coroou-se, deste modo, o avanço do parlamento sobre o orçamento público, enfraquecendo ainda mais o Poder Executivo em relação ao Legislativo. Não satisfeitos, os parlamentares prosseguiram com sua ação sobre o controle do orçamento, aprovando a Emenda Constitucional 105, de 12/12/2021, que instituiu as transferências especiais denominadas como “emendas Pix”.
Foi durante este período que a sociedade se deparou com as ações clandestinas, imorais e obscuras, praticadas por parlamentares por meio do denominado “orçamento secreto”, com a finalidade de se apropriarem ainda mais do orçamento público e desviá-lo para interesses políticos, os mais escusos.
Em 19/12/2022, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de voto condutor da ministra Rosa Weber, no julgamento das Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental no 850, 851, 854 e 1.014, afirmou ser “o orçamento secreto incompatível com a democracia”, uma vez que o uso de emendas de relator para incluir novas despesas no projeto de lei orçamentária da União, sem identificação do proponente, viola os princípios da transparência, impessoalidade, moralidade e publicidade.
Naquela oportunidade, os líderes do Parlamento se comprometeram com o STF a dar publicidade às emendas do relator (RP-9), que eram destinadas a um grupo restrito de parlamentares e sem a identificação do respectivo destino. Ou seja, de modo totalmente obscuro quanto ao beneficiário ou à destinação daquela parcela do orçamento impositivo controlado pelo Legislativo.
Porém, da parte do Parlamento, nada mudou uma vez que segue livremente o abuso na aplicação do orçamento impositivo de iniciativa dos parlamentares, por meio de emendas de bancada por estado e de comissão, sem quaisquer esclarecimentos.
Quando o ministro Flávio Dino tomou a decisão de suspender as “emendas Pix” por total falta de transparência e porque o Parlamento não regulamentou até hoje o controle sobre o destino destas verbas orçamentárias, um mundo de ameaças recaiu sobre o STF e o governo federal.
Imediatamente, as lideranças da Câmara dos Deputados colocaram para discussão a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que limita o poder dos ministros do STF de conceder medidas liminares isoladamente (já aprovada pelo Senado), estabelecendo nítido confronto entre os poderes.
Foi então realizada reunião no STF com os três poderes, para tentar buscar equilíbrio entre eles, mas sabia-se de antemão que não se chegaria a nenhum lugar porque os parlamentares estão cientes de sua força no controle do orçamento e também de sua capacidade de fazer por conta própria qualquer alteração constitucional por dentro da ordem, inclusive para enfraquecer os demais poderes, como oficializar o semi-presidencialismo e tentar limitar os poderes dos ministros do STF, o que sem dúvida será inconstitucional por violar a cláusula pétrea da separação de poderes.
Entretanto, esse mesmo questionamento deveria ter sido apresentado em relação às emendas constitucionais 86, 100 e 105, que impuseram o orçamento impositivo e enfraqueceram o Poder Executivo, que também violam a cláusula pétrea da separação de poderes e deveriam ser declaradas inconstitucionais.
A meu juízo, estamos diante da maior crise de governabilidade desde a promulgação da Constituição de 1988, pois o Parlamento tem conhecimento das inconstitucionalidades que pratica e não tem nenhum interesse em dar transparência ao destino das verbas orçamentárias, pois isto lhe permite imenso controle político.
Portanto, não sei dizer se, quando o ex-presidente Sarney manifestou, naquele julho de 1988, que o Brasil viveria um estado de “ingovernabilidade”, se ele teria imaginado que isto poderia de fato acontecer e que alguma vez o Poder Legislativo teria tamanha força para ameaçar o governo federal e o Poder Judiciário, como ocorre na atualidade.
E é por isso que o STF, em sua função precípua de guardião da Constituição, tenta restabelecer o equilíbrio das forças políticas e sociais, tão desgastado na atualidade, para devolver à normalidade a democracia e a ordem constitucional.
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