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Gratuidade no transporte coletivo do estado do Rio de Janeiro

31 de agosto de 2007

Cláudio Fonteles Procurador Geral da República

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Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade com pedido de medida cautelar proposta pelaGovernadora do Estado do Rio de Janeiro em face do §2º do art. 112 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.

1– Eis o teor do dispositivo normativo impugnado:

Art. 112 (…)

(…)

§2º – Não será objeto de deliberação proposta que vise conceder gratuidade em serviço público prestado de forma indireta sem a correspondente indicação de fonte de custeio.

2 – Sustenta a requerente que o referido dispositivo viola os seguintes princípios constitucionais:

a) o princípio federativo (arts. 1º, 18 e 25, da CRFB/ 88), pois a Constituição Federal, no art. 175, parágrafo único, inciso III, já estabelece reserva de lei em matéria de política tarifária de serviços públicos, não podendo o Constituinte estadual distanciar-se desse modelo. Afirma, portanto, que a norma impugnada viola o princípio federativo porque exclui do âmbito de incidência da lei a previsão de gratuidade nos serviços públicos objeto de delegação a particulares retirando do legislador estadual a competência para dispor sobre política tarifária, e acarretando uma quebra na simetria entre os entes da federação.

b) o princípio da separação de poderes (arts. 2º e 61, §1º, “b”, da CRFB/88), pois a norma impugnada, por ser norma constitucional estadual originária de processo legislativo com participação exclusiva do Poder Legislativo, na qualidade de Poder Constituinte derivado. Assim, a norma atacada ofende o princípio da separação de poderes “na medida que interfere nas atribuições administrativas do Chefe do Poder Executivo, que tem iniciativa exclusiva em matéria de serviços públicos”.

c) o princípio da dignidade da pessoa humana e seu corolários (arts.1º, III, § 2º da CRFB/88), “pois retira do legislador estadual a possibilidade de implementar políticas necessárias a reduzir desigualdades sociais e favorecer camadas menos abastadas da população, permitindo-lhes acesso gratuito a serviços públicos prestados em âmbito estadual”.

3 – Informa a requerente, ainda, que o dispositivo impugnado tem sido invocado em ações ajuizadas por empresas concessionárias de serviços públicos perante o Tribunal de Justiçado Estado do Rio de Janeiro, como fundamento para a declaração de inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 3.339/99, que assegura gratuidade nos transportes coletivos urbanos intermunicipais para maiores de sessenta e cinco anos, deficientes físicos e alunos do ensino público de primeiro e segundo grau e da Lei Estadual nº 3.650/2001, que estabelece a gratuidade do transporte intermunicipal para portadores de deficiência e de doenças crônicas de natureza física, mental ou psiquiátrica.

4 – Afirma que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já declarou a inconstitucionalidade das referidas leis estaduais, com fundamento na ausência de previsão da fonte de custeio.

5 – Por fim, pode a concessão de medida cautelar com eficácia ex nunc, citando vários precedentes dessa Corte Suprema.

6 – A Assembléia Legislativa prestou informações a fls, 146-151, defendendo a improcedência da ação.

7 – O Advogado-Geral da União manifestou-se pela constitucionalidade do art. 112, § 2º da Constituição do Estado do Rio de Janeiro (fls. 153-165).

8 – Vieram os autos a esta Procuradoria-Geral da República para manifestação.

9 – A solução da controvérsia constitucional debatida nos presentes autos encontra resposta diante da análise das limitações impostas ao poder constituinte decorrente. Como se demonstrara, o legislador constituinte do Estado do Rio de Janeiro não ultrapassou os limites de suas competências conferidas pela Constituição Federal.

10 – Destarte, os artigos 18 e 25 da Constituição Federal, ao mesmo tempo que impõem aos Estados-membros a adoção de modelos simétricos aqueles estabelecidos pela Constituição, conferem a estes Estados poderes de auto-organização e autolegislação para adotar regras próprias, desde que conforme os princípios nela esculpidos. Portanto, o poder constituinte dos Estados-membros possui certa autonomia para criar regras constitucionais de organização e gestão, sempre em respeito aos princípios fiados pela Constituição Federal.

11 – Não indica a Constituição, no entanto, quais seriam esses princípios. Alguns podem ser descobertos com facilidade, como os chamados princípios sensíveis enumerados no art. 34, inciso VII, quais sejam: a) a forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública; e) aplicação do mínimo exigido da receita de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. José Afonso da Silva fala ainda em princípios constitucionais estabelecidos, que são os que limitam a autonomia organizatória dos Estados. São regras que revelam previamente a matéria de sua organização e as normas constitucionais de caráter vedatório, bem como os princípios de organização política, social e econômica, que determinam o retraimento de autonomia estadual e cuja identificação reclama pesquisa no texto da Constituição.

12 – Dessa forma, José Afonso da Silva, em análise do texto constitucional, nota que alguns princípios geram limitações expressas, outros limitações implícitas e outros decorrentes do sistema constitucional adotado.

13 – Para a análise aqui expendida, é importante frisar que o poder constituinte decorrente está limitado implicitamente pelo princípio da divisão dos Poderes, que é princípio fundamental da ordem constitucional brasileira (art. 2º). Com efeito, na organização do Estado, o poder constituinte decorrente não pode ignorar a separação e a harmonia recíproca entre os Poderes, devendo respeitar as funções inerentes a cada um, adotando os mecanismos de freios e contrapesos, assim como assegurando a participação de cada qual no jogo democrático, a exemplo do sistema esculpido na Constituição Federal.

14 – Nesse sentido, o cumprimento do postulado constitucional da divisão e da harmonia entre os poderes implica a observância do processo legislativo adotado pela Constituição Federal, em todos os seus aspectos, de forma a que sejam observadas as regras de competência preestabelecidas constitucionalmente para cada Poder. Assim, são limites ao poder constituinte decorrente os princípios constitucionais relativos ao processo de formação das leis, como as regras de iniciativa das leis, de votação nas casas legislativas sobre sanção e veto, assim como as matérias que podem ser objeto de deliberação e, acima de tudo, a participação harmônica dos Poderes nesse processo legislativo.

15 – Com base nessas premissas, chega-se à conclusão de que o § 2º do art. 112 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro não padece de qualquer vício de inconstitucionalidade em relação ao princípio federativo e à separação de poderes, como afirma o requerente.

16 – Quanto ao princípio federativo, há um esforço da requerente em tentar demonstrar que o legislador constituinte estadual retirou a competência do Poder Legislativo para dispor sobre a política tarifária, o que distanciaria o Estado do Rio de Janeiro da sistemática estabelecida pela Constituição Federal sobre a matéria, causando uma quebra na simetria entre os entes da Federação.

17 – Ocorre que, ao se observar com atenção a letra do dispositivo impugnado, constata-se que existe apenas uma autolimitação do legislador estadual para o tratamento do tema. O estado do Rio de Janeiro não está adotando novas regras de processo legislativo em desacordo com núcleo substancial de regras básicas fixado pela Constituição Federal. Apenas condiciona a deliberação de propostas que visem conceder gratuidade de serviços públicos prestados de forma indireta à indicação prévia da fonte de custeio. Nesse caso, é difícil imaginar qualquer contrariedade em relação ao art. 175, parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal, pois o tratamento de matéria continua reservado à lei. Não está sendo retirada do legislador estadual parcela da competência para dispor sobre o tema.

18 – Com relação ao princípio da separação dos poderes, também não procedem os argumentos levantados pela requerente. O fato de o legislador constituinte estabelecer uma condição, direcionada unicamente ao poder legislativo, para a deliberação de projetos de lei que visem conceder gratuidade em serviços públicos, não afronta a divisão e a harmonia entre os poderes. Trata-se de uma regra de processo legislativo que não influi nas competências fixadas pela Constituição para dar poder. Não há modificação no quadro normativo que rege as competências para iniciativa de leis, nem alteração da reserva legal para tratamento da matéria. Nesse sentido, não há relação direta entre a norma impugnada e os arts. 61, § 1º, II, “b” e art. 175, parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal.

19 – Cumpre ressaltar ainda que, conforme a jurisprudência desse Supremo tribunal Federal, o art.61, § 1º, alínea “b”, da Constituição Federal, somente se aplica aos Territórios, não sendo observância pelos Estados-membros (ADIMC nº 2304/RS, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 15.12.00, ADIMC nº 724/RS, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 24.04.01, ADIMC nº 2464/AP, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJ 28.06.2002).

20 – Quando dignidade da pessoa humana, basta afirmar que, se por um lado, esse princípio serve como elemento de proteção dos direitos fundamentais contra restrições, por outro, ele serve também como justificativa para a imposição dessas restrições acabando, nesse sentido, por atuar como elemento limitador. A dignidade da pessoa humana, portanto, também atua como limitadora de direitos fundamentais. Tudo se resolve dessa forma por meio da ponderação dos bens constitucionais em jogo.

21 – Como se sabe, os direitos fundamentais sociais dependem, para sua plena concretização, da ação prestacional do Poder Público, sempre depende dos recursos financeiros postos à disposição do Estado. Esses direitos sociais são chamados de direitos sujeitos à reserva do possível.

23 – Assim, a concessão de benefícios sociais a certos segmentos desfavorecidos da população, como o transporte gratuito aos idosos, aos deficientes físicos e aos estudantes de escolas públicas, dependem das disponibilidades financeiras do Estado.

24 – Fato notório é que os recursos econômicos do Estado são escassos, o que exige do legislador o sopeso de todas as necessidades básicas da população para proceder a uma distribuição das receitas de forma equânime. Assim, estará a cargo do legislador o exercício da alocação das verbas públicas para cada setor da economia, o que exigirá uma necessária ponderação entre os bens a serem prestigiados, em detrimento de outros.

25 – Nesse sentido, fácil é constatar que a realização dos direitos fundamentais sociais depende da distribuição dos recursos econômicos, o que cobra regras claras de política orçamentária e fiscal. Portanto, constata-se, necessariamente, que o dispêndio de verbas para certo tipo de benefício social não pode ser feito de modo que se inviabilize a realização de outros benefícios. Por isso, existem regras que vinculam o legislador na escolha dos bens a serem privilegiados e na fixação das despesas como a necessidade de se indicar a fonte de custeio total dos serviços a serem prestados.

26 – A Constituição de 1988 não se afasta desses parâmetros quando prescreve que “nenhum benéfico ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total” (art.195, § 5º).

27 – A escassez de recursos econômicos, nesse sentido, torna-se motivo suficiente para que a responsabilidade fiscal e a rígida programação orçamentária sejam erigidas a requisitos indispensáveis para a plena realização dos direitos fundamentais.

28 – Assim, se o legislador constituinte do Estado do Rio de Janeiro estabelece uma regra que privilegia o controle de gastos públicos, exigindo que se indique previamente a fonte de custeio para a concessão a certas camadas da população do benefício de gratuidade em serviços públicos prestados de forma indireta, não há como identificar violação à dignidade da pessoa humana. Há, isso sim, clara intenção de realização desse princípio por meio de controle de gastos que determinam, ao fim e ao cabo, a existência de recursos suficientes para atender às mais diversas necessidades da população, e não só à prestação do serviço de transportes públicos em regime de gratuidade.

29 – A norma impugnada, assim não retira do legislador estadual a “possibilidade de implementar políticas necessárias a reduzir desigualdades sociais e favorecer camadas menos abastadas da população, permitindo-lhes acesso gratuito aos serviços públicos prestados em âmbito estadual”. Apenas condiciona a deliberação legislativa a esse respeito à prévia indicação da fonte de custeio.

30 – A plena concretização de todos os direitos fundamentais sociais, como realização da dignidade da pessoa humana como um todo, exige que o Estado mantenha rígidos critérios de distribuição de receitas. O § 2º do art. 112 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro vai ao encontro dessa tendência.

31 – Ante o exposto, o parecer é pela improcedência do pedido, para declarar a constitucionalidade do § 2º do art. 112 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.

 

NOTAS ___________________________

1 – SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constiucional Positivo. 19ª Ed. São Paulo: Ed. Malheiros. 2001. p. 597.

2 – Cfr.: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001. p.119.

3 – Cfr.: HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass. The Cost of Rights. Why liberty depends on taxes. New York: W.W.Norton & Compay. 1999.

4 – Cfr.: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica. 2002, p. 146. SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001, p. 265.