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Gratuidades, há direito? Se há, quem paga o seu custeio?

5 de julho de 2003

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Instigada pelo noticiário dos jornais, o tema “gratuidades no serviço público de transporte de passageiros” tem despertado nos últimos  dias grande interesse no seio da sociedade, com  opiniões divididas, não necessariamente em partes iguais, a respeito da decisão proferida pelo Órgão Especial  do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que, no dia 1º de julho deste ano, declarou, por  maioria absoluta dos votos dos seus membros, a inconstitucionalidade da Lei estadual nº 3.339/99 (17 votos a favor e 1 contra).

Como se sabe, através desse diploma legal, assegurou-se gratuidade aos  maiores de sessenta e cinco anos; às pessoas portadoras de deficiência e aos alunos de 1º e 2º graus, uniformizados da rede pública municipal, estadual e federal, e aos portadores de identidade estudantil, prevendo-se, como fonte de custeio, 10 % do lucro obtido com  a comercialização  do Vale-Transporte.

Em face dessa decisão, sequer publicada,   noticiada por diversos veículos de comunicação,  criou-se para as pessoas, principalmente os beneficiários dessas gratuidades, a nítida impressão de que questionou o  direito dessas pessoas ao benefício e não a ausência da fonte  de custeio, como de fato ocorreu.

Chega-se a ponto, tal a repercussão da decisão, de incluir seu debate em novela de grande audiência na televisão, num capítulo em que dois personagens maiores de sessenta e cinco anos, maltratados pela  neta, sofrem no ponto de ônibus, ao serem ignorados por motoristas que não os deixam viajar gratuitamente.

Conforme quase sempre  acontece  nos casos   em que há  clamor público, há uma forte carga  emocional sobre esse debate, olvidando-se, contudo, a razão, ou seja, é preciso antes de tudo  conhecer-se em  sua inteireza a decisão proferida, com seus fundamentos jurídicos.

No entanto, como  está  previsto  para o mês de agosto vindouro a publicação da decisão, parece-nos oportuno tecerem-se breves considerações  sobre o tema, partindo-se da inicial do  controle concentrado, em abstrato, de inconstitucionalidade da referida lei e concluindo-se no seu julgamento.

O primeiro ponto que precisa ser esclarecido diz respeito ao fato de que, na representação de inconstitucionalidade, não se questionou, conforme se afirmou,  o direito à gratuidade conferido a cada uma das pessoas desses grupos, porém  a indicação, in fraude legis, de fonte de custeio, no valor de 10 % do lucro do Vale-Transporte (art. 4º da lei impugnada).

Com efeito, com essa estipulação, houve apenas observância meramente “formal” do ditame constitucional contido no art. 112, § 2º da Constituição  do Estado do Rio de Janeiro (exigência de indicação de fonte  de custeio em serviço público  prestado de forma indireta) e, concomitantemente, violação substancial, intrínseca, do seu espírito, sendo esse o mecanismo da fraude.

Como a lei deve entender-se não pelo seu teor literal, mas no seu conteúdo espiritual, porque o preceito constitucional quer realizar um fim e não a forma em que se manifestou, vê-se que, racionalmente interpretada, o art. 4º choca-se como art. 112, § 2º, da Constituição Estadual, porque, afinal, se colocou sobre os ombros de um único setor o custeio das gratuidades.

O segundo ponto, igualmente elucidativo, tem a ver com o julgamento da representação, que foi suspenso em razão do pedido de vista de dois Desembargadores, após terem sido proferidos diversos votos, (15 favoráveis à declaração de inconstitucionalidade e 1 voto no sentido da inconstitucionalidade parcial).

No preclaro voto parcial, reconheceu-se, apenas, a ausência de fonte de custeio em relação à gratuidade para os estudantes (pois no concernente às demais gratuidades asseguradas pela lei impugnada – pessoas maiores de sessenta e cinco anos e pessoas portadoras de deficiência física – haveria previsão para essas gratuidades na Carta Estadual (art. 245 e art. 14, respectivamente) e seria incogitável a fonte de custeio).

Pelo que se pôde notar dos debates em plenário, duas dúvidas teriam ficado no espírito de S.Exas. que precisariam, ainda, ser esclarecidas  (e foram através de memoriais e documentos) sintetizadas nas seguintes indagações:

1ª) Se os usuários pagantes já suportariam o custeio das passagens dos não-pagantes, por que então outra fonte de custeio ?

2ª) O Vale-Transporte daria lucro, com eventuais aplicações financeiras, a ponto de poder suportar o custo dessas gratuidades ?

Quanto a primeira, esclareceu-se que poderia supor-se que a tarifa, hoje praticada nos serviços de transporte coletivo intermunicipal de passageiros, seria o resultado perfeito da repartição aritmética da totalidade do custo fixo e variável dos serviços entre os seus usuários, inclusive com a previsão de custo  para as gratuidades.

No entanto, não é bem assim.

Além de inexistir na planilha tarifária utilizada pelo Poder Concedente estadual previsão de custeio dessas gratuidades, do contrato de permissão acostado ao memorial, o valor da tarifa técnica (apurada levando em consideração a elevação dos insumos: óleo diesel, mão-de-obra etc.) não eqüivale à tarifa praticada, cujo valor pecuniário tem sido sempre inferior àquela, tratando-se, portanto, de tarifa social.

Tradicionalmente, esse fato tem ocorrido, pois costuma-se vincular a tarifa à circunstâncias subjetivas patrimoniais dos usuários, abstraindo-se dados objetivos (a conduzir ao inevitável sucateamento dos veículos e a conseqüente queda da qualidade dos serviços prestados, como aconteceu com os trens e barcas, em passado recente).

Para comprovar esse fato, basta que se examine o desfecho da instrução do processo de reajustamento das tarifas intermunicipais de 15 %, vigorante a partir de 11 de dezembro de 2000.

Naquela oportunidade, propunham os órgãos técnicos do DETRO (processo administrativo nº E-10/ 132.788/00) que os reajustamentos das tarifas para os serviços denominados de “S/A” fosse de 28,87 % e de 34,72 % para os serviços chamados de “A”.

Note-se que, naquela ocasião, as tarifas tinham o seu valor defasado, pois o último reajustamento ocorrera em agosto de 1999, portanto há mais de quinze meses, embora somente o óleo diesel houvesse tido um aumento de 27,7 % (vinte e sete inteiros e sete décimos por cento).

Destacou o então Secretário de Estado de Transportes do Governo Antony Garotinho, que a queda no número de passageiros devia-se, também, a existência (já naquela época) dos abusos praticados nas chamadas gratuidades, reguladas por legislação imperfeita e incapaz de coibir a fraude.

Apesar disso, foi autorizado o reajustamento das tarifas de somente 15 %.

Pois bem. A própria defasagem do valor da tarifa (política ou social, quase sempre), apesar da notória variação do valor monetário dos insumos, demonstra, inequivocamente, que ao usuário pagante não é sequer repassada a totalidade dos custos (fixos e variáveis), quanto mais o subsídio para os usuários não-pagantes (as gratuidades).

Mas não é só isso.

Além dessa manifesta compressão do valor da tarifa, como por exemplo ocorreu entre agosto de 1999 a dezembro de 2000, outra nota identificadora da inexistência de repasse do custo das gratuidades reside no fato de que seu valor real ou técnico, em descompasso com a tarifa social praticada nos serviços, não indica haja esse custeio.

A conclusão é a de que são as transportadoras que suportam as gratuidades legítimas e ilegítimas, graças à fraude que hoje campeia, mercê de leis imperfeitas e incapazes de coibi-la, como reconheceu o então e referido Secretário de Estado de Transportes do Rio de Janeiro.

Assim e respondendo-se a primeira indagação, não são os usuários pagantes que suportam as gratuidades, porém as transportadoras. Como não se pode colocar sobre os ombros de um único setor esse custeio, não é lícito considerá-lo como fonte de custeio conforme se preconiza na  Lei nº 3.339/99, à luz do art. 112, § 2º, da Carta Estadual, devendo-se transferi-lo para a sociedade, mediante rateio.

Daí a sua inconstitucionalidade.

Com relação a segunda pergunta, em que se indaga se o Vale-Transporte daria lucro, há de se tecerem breves considerações sobre esse benefício social, para entender-lhe a natureza e o mecanismo.

Por força da Lei n° 7.418, de 16 de dezembro de 1985, alterada pelas Leis n° 7.619, de 30 de setembro de 1987 e n° 7.855, de 24 de outubro de 1987, foi instituído o Vale-Transporte, que o empregador antecipa ao empregado para as suas despesas, com o transporte de sua residência para o trabalho e vice-versa.

A primeira observação é a de que se trata de um dos reflexos da relação de emprego, pois o Vale, basicamente, se destina a circular entre essas duas pessoas e as transportadoras, que cumprem o fim a que ele se destina, ou seja, transportarem empregados.

A segunda, é no sentido de que o Vale representa uma passagem nos ônibus, em que deseja o empregado utilizar no seu deslocamento casa-local de trabalho e vice-versa. Tem o valor pecuniário de face idêntico ao da tarifa praticada nas linha intermunicipal desejada, sem qualquer acréscimo.

A terceira observação, conseqüência da segunda, é a de que os custos da sua emissão, comercialização e distribuição não podem ser repassados para a tarifa praticada nos serviços (art. 5º, caput, última parte, da Lei nº 7.418/85).

Entendido que se encarta esse instituto na categoria jurídica de um dos efeitos do contrato de trabalho e o que ele representa é a vedação de repasse de custos, deve-se aduzir que essa mesma lei, que o instituiu, prevê que as empresas transportadoras, por meio de contrato particular, podem delegar a comercialização e distribuição do Vale-Transporte (art. 5º, §§ 1º e 2º, da Lei nº 7.418/85).

E assim foi feito pela quase totalidade das empresas operadoras de transportes coletivos no Estado do Rio de Janeiro, que delegaram essas atividades à FETRANSPOR, que, no ápice da pirâmide sindical no plano estadual, passou a representá-las na consecução dessas atividades.

Portanto, não há dúvida de que nessas atividades de emissão do Vale (em papel de segurança, contra fraudes ou contrafação) e na sua comercialização e distribuição pelo UNIBANCO há notoriamente um custo, que é suportado pelas transportadoras.

Desde a aquisição do papel, a impressão, a distribuição, a informatização, a utilização dos espaços físicos  e outras despesas são reembolsadas pelas transportadoras delegantes.

Desse modo, o Vale em si não dá lucro, porque representa o valor de uma passagem. Se lucro existe, resulta da própria prestação de serviços e não do Vale.

Não obstante haja um custo com a administração do vale-transporte (que deve ser suportado pelas transportadoras), verifica-se que o legislador estadual partiu de uma premissa absolutamente falsa ao indicar como fonte de custeio para as gratuidades instituidas pela Lei 3.339/99 10% do suposto lucro advindo com a comercialização do vale.

Portanto, e respondendo-se a segunda indagação, o Vale-Transporte não dá lucro, não passando de fraude à lei a indicação como fonte de custeio para as gratuidades 10 % do seu lucro, violando-se substancialmente o espírito da disposição contida no art. 112 § 2° da Constituição deste Estado.

Patente, pois,  também nessa dimensão, a inconstitucionalidade da Lei 3.339/99.

Há de se acrescentar, a propósito, que, mesmo houvesse lucro com o Vale-Transporte, admitido tal fato somente para efeito do debate, ainda assim é evidente que não se pode colocar sobre os ombros de  um único setor o custeio das gratuidades.

Aqui, reside a questão nuclear a ser deslindada, igualmente sintetizada numa terceira pergunta:

Pode ser instituída gratuidade de uso de serviço público prestado de forma indireta, impondo-se unicamente o seu custo às prestadoras desse serviço ?

A resposta a essa indagação, que é negativa, está  no  preceito do mesmo § 2º, do art. 112, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, em cuja leitura podem ser visualizados, através dos métodos de hermenêutica (sistemático e teleológico), princípio e norma.

Numa perspectiva, identifica-se o princípio da solidariedade social, imbricado com o de justiça distributiva, posto que o custo decorrente dessas gratuidades na utilização de serviços públicos (sim, porque não há  serviço público ontologicamente gratuito) há de ser rateado por toda sociedade e não apenas suportado apenas por um segmento  social, como, in casu, ocorre.

Em outra, extrai-se, do contexto constitucional, norma, a garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos titulados pelas empresas (art. 37, inc. XXI, da Constituição da República), dele exsurgindo o direito subjetivo à manutenção da equação contratual, cuja expressão material é a tarifa.

Acolhidos tais fundamentos jurídicos, foi julgada procedente a representação, por 17 votos a favor e 1 contra, sendo este de um dos Desembargadores que havia pedido vista, enquanto o Desembargador, que havia proferido voto parcial, decidiu revê-lo, votando também a favor da procedência.

Conclui-se, assim, que a lei, instituidora do direito à gratuidade, há de observar, na sua elaboração, o devido processo legislativo preconizado no § 2º, do art. 112, da Constituição  deste Estado, sob pena de torna-se inválida por não se conformar com  a Carta Estadual.

O controle de constitucionalidade das leis está intimamente relacionado como princípio da hierarquia normativa, da supremacia da Constituição, sendo que o seu processo, de característica marcadamente objetiva, de controle abstrato de normas, mais do que um processo judicial, é concebido como mecanismo processual destinado especificamente à defesa da ordem  constitucional.

Nesse sentido e para encerrar, já afirmara o eminente Ministro Moreira Alves, na Rp. 1.016 (julgada em 20.09.1979), ao explicitar as linhas fundamentais do controle abstrato de normas  no Direito brasileiro:  “A representação de inconstitucionalidade, por  sua própria natureza, se destina tão-somente à  defesa da Constituição vigente quando de sua propositura. Ela não é uma simples ação declaratória de nulidade, como qualquer outra, mas, ao contrário, um instrumento especialíssimo de defesa da ordem jurídica vigente estruturada com base no respeito aos princípios  constitucionais vigentes.