
“Gosto muito dos filósofos pré-socráticos, especialmente de Heráclito de Éfeso, segundo o qual tudo muda, tudo se transforma, mas permanece o mesmo. Dizia ele que ninguém pode mergulhar duas vezes nas águas de um rio, porque as pessoas mudam e as águas também se transformam. Essa é uma verdade universal, tudo muda, nada permanece o mesmo e, claro, o Direito também muda constantemente.
Sou professor há mais de quatro décadas na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e costumo dizer aos meus alunos que aqueles que imaginam que vão aprender Direito na faculdade enganam-se redondamente. Na verdade, vão adquirir o conhecimento, os instrumentos que permitem compreender a transformação contínua desse nosso objeto de estudo. O Direito sempre se transformou, se desenvolveu, se alterou e mudou, mas nessa época da globalização essa mudança se dá de forma muito mais acelerada.
É claro que poderíamos mergulhar mais profundamente no tempo para examinar esse tormentoso tema, objeto das nossas considerações iniciais na manhã de hoje, mas quero me reportar a um episódio interessante, de grande impacto na história da humanidade, que ocorreu há cerca de 34 anos, que foi exatamente a queda do Muro de Berlim, na primavera de 1989. Naquele momento, é claro que é uma data um pouco arbitrária, mas ocorreram enormes transformações no mundo como um todo e não apenas no mundo ocidental.
A primeira consequência da queda do Muro de Berlim, um momento simbólico, foi justamente o fim da Guerra Fria, em que se encerrou o mundo bipolar dividido entre Estados Unidos e União Soviética, duas grandes potências, aliás, potências nucleares. A União Soviética, como todos lembramos, se desintegrou totalmente e os países aliados, e mesmo as repúblicas que faziam parte da União Soviética, se transformam em Estados soberanos desvinculados do sistema que dominava a União Soviética. (…)
Neste momento inicia-se a hegemonia geopolítica dos Estados Unidos, que passa a dominar o mundo política e economicamente. A partir dos anos 1990, esse é um dado positivo, que permitiu inclusive a hegemonia americana, os economistas assinalam que o comércio internacional mais do que dobra. Predomina uma ideologia que podemos denominar de neoliberalismo, ou ultraliberalismo, simbolizado pelas políticas de Margareth Thatcher, o ‘thatcherismo’, e de Ronald Reagan, a ‘reaganomics’, como isso passou a ser conhecido.
Nesse momento também, a academia, sobretudo a americana, debruçando-se sobre o fenômeno, começa a produzir várias obras, dentre as quais destaca-se o trabalho interessante de Francis Fukuyama, denominado ‘O fim da história’, em que ele diz que deixa de existir o conflito entre classes sociais, entre capital e trabalho, entre capitalismo e socialismo, porque assegura-se o triunfo da economia de mercado e da democracia liberal.
Imagina-se que é o novo mundo que surge sob a hegemonia dos EUA, mas, interessantemente, neste momento também ocorre um fenômeno que nos interessa particularmente. Com a queda do Muro de Berlim, quando a globalização se acelera, temos de forma visível um enfraquecimento do Estado moderno que surgiu a partir do Século XVI, sobretudo em respeito às questões econômicas. Com efeito, o Estado deixa de ter o poder de decidir sobre o que produzir, quanto produzir, como produzir e para quem produzir. As decisões econômicas fundamentais deixam de estar nas mãos do Estado. (…)
É claro que se pensarmos no processo de globalização lato sensu, não podemos deixar de imaginar que esse processo começou desde o momento em que o sapiens abandona as cavernas e começa a desfrutar do seu entorno, ou talvez nas conquistas dos antigos romanos, na expansão do Islã, nas grandes navegações, no colonialismo do Século XIX, no imperialismo do Século XX. A globalização sempre foi uma realidade, mas na atualidade ela se acentua, especialmente porque tivemos extraordinários avanços no campo da comunicação, da informática e dos transportes. A globalização que então se acentuou se caracteriza por uma intensa circulação de bens, capitais e tecnologias através das fronteiras nacionais, criando um enorme mercado global.
Uma das marcas distintivas da globalização é precisamente a descentralização da produção industrial. Os processos produtivos – isso é relevante para a reflexão que vamos fazer sobre a relação entre globalização e Direito – passam a espalhar-se por diversos países e regiões e se instalam onde as restrições ambientais, fiscais ou trabalhistas sejam melhores, evidentemente ao sabor das grandes empresas multinacionais.
A globalização levou uma prosperidade sem contrastes, mas em especial para os países desenvolvidos, porque os países menos desenvolvidos sofreram os aspectos perversos desse problema. O principal aspecto negativo desta globalização desenfreada, selvagem e incontrolada é a abertura forçada dos mercados internos, em especial dos mercados financeiros nacionais aos capitais estrangeiros. Isso levou a uma intensa circulação do capital especulativo, de alta volatilidade e completamente descompromissado com as atividades produtivas dos países hospedeiros. Os recursos deste tipo de circulação de capitais são aplicados em papéis de curtíssimo prazo, com fins especulativos, sempre com a mais alta lucratividade, e são resgatados ao menor sinal de crise política ou instabilidade econômica.
Este modelo, que alguns chamam de cassino global, tem permitido a instalação de crises econômicas mundiais que se sucedem em ciclos repetitivos. A mais impactante delas ocorreu em 2008, na chamada crise do subprime dos bancos americanos, que eram hipotecas supervalorizadas que acabaram gerando uma bolha que, quando arrebentou, arrastou todo o sistema econômico global, a começar pela falência do famoso banco Lehman Brothers, nos Estados Unidos.
A partir desse momento o mundo mergulhou numa crise econômica da qual até hoje não se recuperou. Esta crise atingiu sobretudo os países pobres, mas também os países ricos. Ocorre que os países menos desenvolvidos acabaram sofrendo as piores consequências. Nós brasileiros sentimos na pele: os índices de qualidade de vida, saneamento básico, habitação popular, educação e saúde despencaram drasticamente; as taxas de desemprego e a criminalidade, sobretudo a violência urbana, acabaram explodindo.
A globalização perversa e selvagem tal qual acabo de descrever contribui ainda para o agravamento de outros problemas, como, por exemplo, a degradação do meio ambiente, a disseminação de novas doenças endêmicas, a migração em massa, a corrida armamentista, a disseminação de conflitos regionais e lesões massivas aos direitos humanos e aos direitos fundamentais.
Por outro lado, outro fenômeno muito interessante que também merece ser avaliado e que tem reflexos nesta conformação do Direito é exatamente a comunicação instantânea pela Internet, que facilita a absorção de modismos passageiros e também a difusão de fake news, e aí vivemos uma espécie de ‘novo normal’: tudo é novo, tudo é considerado normal, mas tudo muda rapidamente, num piscar de olhos, do dia para a noite.
Não obstante este cenário de globalização acelerada, alguns já estão identificando o fenômeno contrário, que é justamente a ‘desglobalização’. É certo que alguns entendem que estamos passando por uma mera desaceleração econômica mundial, mas o fato é que essa desglobalização é uma realidade com a qual temos que nos defrontar, analisar e viver.
O Fundo Monetário Internacional e também o Banco Mundial trazem algumas estatísticas e análises que de certa maneira demonstram esse declínio econômico mundial. Desde a recessão de 2008, que foi justamente a crise do subprime americano, o Produto Interno Bruto (PIB) global vem decrescendo de forma consistente. Estima-se que em 2023 o PIB global deve se fixar em torno de 2,7% de crescimento, comparando por exemplo com o PIB de 3,2% do ano de 2022. Isso mostra que estamos desacelerando do ponto de vista da economia global.
Alguns sintomas dessa desglobalização parecem evidentes. Um deles é justamente o Brexit, o Reino Unido se afasta da União Europeia. Outros elementos que nos permitem identificar esse fenômeno da desglobalização é a retórica crescentemente isolacionista, nacionalista e armamentista de pequenas e médias potências. É claro que as grandes sempre se caracterizam por esse tipo de retórica, mas hoje vemos pequenas e médias potências exatamente se dirigindo nesta direção e neste rumo. Neste quadro, cada vez mais, distintos países passam a proteger seus produtos e empregos, bloqueando o movimento de estrangeiros e de imigrantes. Aliás, este fenômeno de certa maneira impede que se concretize o acordo do Mercosul com a União Europeia, acordo que nós do Mercosul desejamos.
Neste contexto tem surgido governos autoritários, de cunho populista, que se alimentam de divisões internas e aumentam a repressão. Estes governos esgrimem fantasmas reais ou imaginários do desemprego, da criminalidade, do terrorismo, do estrangeiro e outros males, estimulando a xenofobia e o racismo.
Neste mundo caótico e mesmo distópico que vivemos, é claro que o Direito se transforma aceleradamente e em certa maneira reage a este fenômeno. Os analistas observam que o Direito já não pode mais ser visto como uma unidade, um sistema lógico e hierarquicamente organizado, que tem como fonte os Estados nacionais, o Estado moderno surgido no Século XVI da nossa era. Hoje o pluralismo jurídico, ou seja, esta pluralidade de fontes do Direito, é uma realidade inafastável.
Há um jurista alemão importante (…), que transita por várias universidades alemãs, que constata que agora o Direito estatal deve conviver com o Direito não-estatal em pelo menos quatro áreas, e agora vamos ver a relação entre a globalização e o Direito. Klaus Peter Berger diz que o Direito estatal não é mais monopolístico, tem que conviver com o Direito não-estatal, que emana de várias outras fontes, e aí os operadores do Direito, especialmente nós que trabalhamos na área internacional, temos que estar muito atentos.
Em primeiro lugar – penso que é utópico, mas nos interessa diretamente, sobretudo àqueles que trabalham com a arbitragem – diz o professor Klaus Peter que uma das áreas é justamente a lex mercatoria, um tipo de lei que já foi utilizada pelos fenícios ao longo de toda a antiguidade e que depois teve uma expansão muito grande na poliarquia medieval, pelos comerciantes da Idade Média, que é um Direito no qual impera a vontade das partes, o respeito aos contratos – do brocardo pacta sunt servanda – e os usos e costumes.
Neste Direito da lex mercatoria – que ressurge agora com toda a ênfase e impacto, sobretudo no que diz respeito à regência e disciplina dos grandes negócios – escolhe-se o foro e as normas aplicáveis a cada caso sem a interferência do Estado juiz. É aí que impera a arbitragem. Nós que vivemos uma vida inteira praticamente como representantes do Estado juiz, verificamos que os grandes negócios e operações mais e mais escapam da nossa interferência e disciplina. Os grandes litígios não são mais solucionados pelo Estado juiz.
Em segundo lugar, de acordo com Klaus Peter, surge um outro tipo de Direito que também foge à disciplina do Estado moderno, que é justamente a lex sportiva, que disciplina os esportes, que é também um campo que escapa aos controles estatais, como as Olimpíadas, os campeonatos de futebol, de tênis e hipismo, que são organizados segundo normas próprias e sobre os quais o Estado não tem a menor interferência. (…)
O terceiro tipo de Direito segundo Klaus Peter é a lex digitalis, que é o conjunto de regras que regula o uso da Internet. Neste aspecto, destaca-se a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN), que é quem define os endereços e nomes daqueles que utilizam a Internet – não é o Estado, mas uma entidade supranacional, que opera no mundo virtual e também à margem das autoridades estatais.
Finalmente, segundo Klaus Peter, temos um quarto tipo de Direito que ele chama de lex humana, que é promovida a partir da mundialização da semântica das normas de proteção dos direitos fundamentais. A lex humana se mostra cada vez mais imprescindível tendo em conta esse mundo caótico, que se caracteriza, infelizmente, pela lesão massiva aos direitos fundamentais, considerados nas várias gerações ou dimensões que o compõem hoje, inclusive e sobretudo no direito ao meio ambiente hígido, sadio e protegido.
Eu termino, senhoras e senhores, (…) dizendo em resumo que o Direito nesta nossa era de globalização escapa à disciplina do Direito estatal, até porque o Estado é incapaz de regular os fenômenos que transcendem as fronteiras nacionais, especialmente as fake news. Nós que trabalhamos nas últimas eleições brasileiras tivemos enorme dificuldade para controlar as fake news, que impactaram diretamente a formação da vontade soberana do eleitor. Então, nós operadores do Direito estamos nos defrontando com um ‘admirável mundo novo’ ou, quiçá, com um ‘abominável mundo novo’ que temos que aprender a dominar.
Muito obrigado pela atenção!”
____________________________
*Transcrição da aula magna proferida na abertura do II Seminário França-Brasil. Saiba mais na página 14.