Homenagem a Peçanha Martins

28 de fevereiro de 2011

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(Discurso proferido pela Ministra Eliana Calmon, Corregedora Nacional de Justiça, na Sessão Planária da Corte Especial do STJ, quando da abertura do semestre forense)

Quando, melancolicamente, relembro os amigos que se foram, vem ao meu pensamento belíssimo texto de autor desconhecido intitulado “Amigos”. Dele, retiro um pequeno trecho para expressar o meu sentimento neste momento, quando presente está na lembrança um amigo que se foi. Diz o texto:
“O tempo passa, o verão vai, o outono se aproxima e perdemos algumas das nossas folhas. Algumas nascem no outro verão e outras permanecem por mais estações. Mas o que nos deixa mais felizes são as folhas que caem e continuam perto de nós, aumentando as nossas raízes com alegria, maravilhosas lembranças por terem cruzado o nosso caminho.”
Excelentíssimo senhor ministro Ari Pargendler, excelentíssimos senhores ministros, senhores advogados, senhores funcionários, minhas senhoras e meus senhores.
A folha chamava-se FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, a quem presto, em nome do tribunal, esta última homenagem.
Peçanha Martins cruzou a minha vida quando nos idos de 1979 cheguei à Bahia como juíza federal. Encontrei-o advogado militante, frequentando o fórum federal na defesa dos interesses da Petrobras e dele me aproximei por duas circunstâncias: era filho do ministro Álvaro Peçanha Martins, do Tribunal Federal de Recursos – com quem trabalhei, na oportunidade, como Procuradora da República, atuando na Justiça Federal de segundo grau – e, como o pai, era de uma alegria contagiante, a ponto de dizerem na Bahia: pai e filho são pessoas gostáveis.
A convivência entre profissionais transformou-se em uma amizade duradoura, e o destino fez com que Peçanha, a folha da minha árvore, mais próximo ficasse quando chegou a Brasília, escolhido ministro do Superior Tribunal de Justiça. Aqui já estava eu, juíza do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, torcendo pelo meu amigo.
Um pouco mais e o destino, mais uma vez, colocou-me ainda mais próxima de Peçanha quando, em 1999, tornei-me ministra desta Corte e fui lotada exatamente na turma presidida pela minha folha amiga.
Éramos muito diferentes no pensar, no sentir, no dizer e no fazer. Ele, inteiramente de bem com a vida, era só alegria e bom humor, não se zangava por nada e com ninguém, presidia a Segunda Turma com a verve de um adolescente, enfrentando as questões mais delicadas com madura tranquilidade.
Dele, recebi lições diuturnas de humanidade e, embora tivéssemos duros e acirrados embates intelectuais, saíamos abraçados das sessões como bons amigos, sorrindo das farpas lançadas com os dardos da sinceridade e dos bons propósitos, respeitando as diferenças de ser e de pensar.
Deixa-nos Peçanha a melhor das heranças: a inteligência emocional fê-lo vitorioso em todos os quadrantes da vida. Afinal, nascido de um pai e de uma mãe maravilhosos e bem-sucedidos a quem amava de forma devotada, teve a ventura de os ter por muitos anos. Teve a sorte de se casar com uma mulher equilibrada e também com alegria de viver. Clara é o porto seguro, a embaixatriz dos baianos em Brasília. Dessa simbiose nasceram os filhos Luciana e Álvaro, tranquilos, estudiosos e amigos dos pais e dos amigos, completaram o quadro familiar dando aos pais três lindos netos.
A sorte de Peçanha o fez de servidor público, prestando serviços de secretário da Presidência do Tribunal de Justiça da Bahia a advogado militante. Na OAB, rapidamente angariou a simpatia dos colegas e, inteligentemente, colocou em prática o aprendido na política estudantil, no Centro Acadêmico Rui Barbosa – CARB, onde atuou intensamente como militante de oposição.
A chegada aos quadros da Petrobras foi episódica, mas duradoura. Peçanha tornou-se na empresa exímio articulador na solução alternativa de conflitos, abrindo espaço para uma trajetória iluminada, pontilhada de fieis amigos ajuntados aos advogados tradicionais da Bahia, frequentadores do Clube Inglês, lastro afetivo e suporte à ideia de fazer chegar ao Superior Tribunal de Justiça pelo quinto constitucional, conduzido pelas mãos dignas do professor Josapht Marinho, acadêmico, professor e político que tanto honrou a Bahia.
A trajetória de Peçanha como ministro desta Casa está escrita na sua biografia, registrando a excelência dos seus votos vencidos, tidos como fruto de uma teimosia inarredável, mas festejados muitos deles no decurso do tempo. Quem não se lembra, por exemplo, as questões do Fé Ge Te Esse, pronunciado com o máximo da baianidade?! Quem poderá esquecer a briga de Peçanha colocando-se decididamente contrário à aplicação do artigo 557 do CPC em razão de não admitir julgamentos monocráticos em colegiado?! Que ambientalista ignora ter sido Peçanha o precursor da jurisprudência que deixou sem indenização os proprietários da Serra do Mar ao argumento de ser imprestável economicamente as terras de encosta?! Quem pode esquecer a posição sistemática em favor dos estudantes, aceitando em qualquer circunstância as transferências de alunos para estabelecimentos não congêneres?!
A convicção e a segurança de Peçanha, em favor de suas teses, fê-lo orador intrépido e acirrado, merecedor de aplausos dos abrigados pelas suas opiniões e temporariamente odiado pelos temerosos da contaminação da Corte pelo entusiasmo da sua defesa.
A aposentadoria do ministro Francisco Peçanha Martins há três anos deixou esta Corte menos alegre, mais silenciosa, menos inflamada e em cada colega o sentido de uma perda irreversível de quem deu à Corte dignidade, esperança, alegria e sobretudo Justiça.
Folha de minha árvore, a felicidade dada pela vida você soube aproveitar e com ela fazer felizes as pessoas ao seu redor. Daí ter deixado nesta Casa, nos mais de dez anos de judicatura, muita saudade. Daí a pertinência das poéticas palavras do poeta desconhecido:
“Cada pessoa que passa nas nossas vidas deixa um pouco de si e leva um pouco de nós. Há os que levam muito, outros que deixam quase nada e outros ainda que deixam tudo que são e aí está a responsabilidade maior dos que elegemos como folha e modelo.”
Você vai ficar nesta Casa por tudo que fez de institucional e registrado está nos anais do Tribunal, mas também permanecerá em nossos corações pelo exemplo de lealdade, amizade e ética, qualidades que fizeram de você um homem gostável.
Brasília, 1º de fevereiro de 2011