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Homologação dos acordos da Convenção de Haia de 1980 – Competência da Justiça Federal?

25 de abril de 2022

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A Advocacia-Geral da União (AGU) busca consolidar na Instituição a prática da conciliação na resolução de conflitos previstos na Convenção de Haia de 1980, envolvendo o sequestro internacional de crianças. Em 2021, 13 casos de sequestro internacional foram resolvidos por meio de conciliação. 

O que pode ser considerado um passo importante para evitar o desgaste de todos os envolvidos nesse cenário conflituoso. Pensando por esse viés, a AGU se abre a um encontro do Direito com a Psicologia. 

Quem se separa é o casal conjugal, o casal parental é para sempre. A busca pela conciliação é uma forma de reestabelecer o comprometimento de ambos os pais na manutenção dos cuidados físicos e psicológicos dos filhos e, a partir disso, encontrar soluções possíveis, que favoreçam o desenvolvimento dos filhos e que mantenham o lugar parental.

A propósito, a Convenção de Haia, da qual o Brasil é signatário, estabelece que os Estados
-membros devem garantir o retorno imediato à residência habitual da criança retida de forma ilícita, como forma de promover e garantir seus melhores interesses.

A celeridade na resolução deve ser uma prática para que se evitem cortes bruscos na vida da criança. Quanto maior a lentidão, mais insegurança para a criança, maior hostilidade entre os pais e mais graves consequências futuras.

Além disso, observa-se que toda criança envolvida em litígio, o que pressupõe uma família disfuncional, deveria ser encaminhada para acompanhamento psicológico com orientação aos pais. O melhor interesse da criança é ter o direito de convivência da forma mais equânime possível com sua mãe e com seu pai. 

No País, cabe à Advocacia-Geral da União atuar com o objetivo de cumprir o tratado internacional ao qual a República Federativa do Brasil aderiu, que impõe uma regra de jurisdição segundo a qual a guarda das crianças deve ser discutida no país de residência habitual.

O fato é que até que isso seja de fato resolvido, a criança é jogada numa espécie de limbo. E a infância não espera a resolução do conflito, ela simplesmente passa.

Diante dessa questão, teria a Justiça Federal competência para homologar acordos apresentados quando seu objeto vai além da questão de restituição ao Estado da residência habitual ou a manutenção da criança no território do Estado requerido? Quais são estes outros objetos que supostamente escapam da alçada da Convenção da Haia? São as questões, por exemplo, que dizem respeito ao tipo de guarda, valor da pensão alimentícia, direito de convivência, possibilidade de viagem de férias escolares com o outro genitor e até a idade com a qual a criança poderá escolher com quem morar. Enfim, poderiam estes assuntos figurarem no acordo a ser homologado pela Justiça Federal em uma ação com base na Convenção de Haia de 1980? Este ponto tem motivado debates e mesmo decisões conflitantes nos tribunais da Justiça Federal.

Discussões como essas, relacionadas ao tipo de guarda, por exemplo, são tratadas pela Justiça Estadual em varas de família. O que se nota é que há a possibilidade de se pensar de forma menos parcial e mais integral quando se trata de assuntos relacionados à vida de uma criança. Em situações que envolvem crianças e família, a complexidade é muito maior, porque a afetividade se mistura aos conflitos inconscientes, às inseguranças e aos jogos de poder de cada uma das partes envolvidas. Esses conflitos precisarão ser expostos para profissionais capacitados em psicologia, não para tratar os conflitos em si, mas para que, com os demais profissionais – diga-se os advogados das partes, o Ministério Público e o próprio magistrado – se construam alternativas positivas para promover a melhor proteção da criança e evitar a cronificação do litígio.

No Brasil, como sabemos, há uma divisão clara das competências da Justiça Federal e da Justiça Estadual. A Justiça Estadual é a competente para as ações envolvendo o Direito de Família. Portanto, quem decide condições da guarda, valor da pensão de alimentos, o regime de convivência é o juiz estadual e não o juiz federal. 

No entanto, de acordo com o Desembargador Federal Guilherme Calmon, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no Seminário: “Proteção da criança no âmbito da subtração internacional: Experiência comparada na América Latina”, na Justiça Federal não se está a falar em decisão em matéria de Direito de Família. Ao contrário, o que se está a fazer na Justiça Federal é tão somente homologar os termos do acordo celebrado pelas partes, pelos genitores e verdadeiros responsáveis pela criança. Um possível acordo representa o consenso dos pais sobre a restituição da criança ao país de sua residência habitual, ou mantê-la onde se encontra. Ao mesmo tempo, decidem os pais acerca da pensão alimentícia, das condições da guarda e das demais questões de natureza do Direito de Família.

Portanto, para o Desembargador Calmon, não há qualquer obstáculo para que no âmbito da Justiça Federal, seja na primeira ou na segunda instância, ocorra a homologação do acordo, nas ações fundadas na Convenção da Haia de 1980, mesmo presentes estas outras disposições alusivas originalmente ao Direito de Família, mas atreladas ao objeto da Convenção de 1980.

À guisa de exemplo, em caso recente fundado na Convenção da Haia de 1980, já no Tribunal Regional Federal, portanto em segunda instância, a União apresentou proposta de acordo, estabelecendo condições de guarda, regime de convivência, contato virtual, alimentos e outras disposições alusivas aos direitos da referida criança, pugnando pela sua homologação judicial.

Os genitores e o Ministério Público Federal aquiesceram com a referida proposta de acordo, sobrevindo, ainda, pedido de desistência dos recursos interpostos caso homologada a proposta de acordo conforme apresentada. 

Dentre os vários argumentos para a realização do acordo, a União enfatiza que o compromisso assumido pelos Estados-partes, nesse tratado multilateral, foi estabelecer um regime internacional de cooperação, envolvendo autoridades judiciais e administrativas, com o objetivo de localizar a criança, avaliar a situação em que se encontra e, só então, restituí-la, se for o caso, ao seu país de origem. Busca-se, portanto, a todas as luzes, apenas e tão-somente atender ao bem-estar e ao interesse superior da criança e do adolescente.

A aplicação desta Convenção, portanto, orienta-se pela necessidade de observar os princípios relativos à proteção da criança em geral. Nossa Constituição Federal, no art. 227, por seu turno, assegura a prevalência do interesse dos menores com absoluta prioridade.

Quando a família consegue compreender que seu papel é o da proteção integral aos filhos, em situações como essas de disputa, as crianças retornam ao centro da atenção, do qual não deveriam ter saído. Acordos como esses são resultados de longo trabalho cuidadoso e artesanal com os pais, e deveriam ser homologados com satisfação. Enquanto se está pendente de julgamento, a criança permanece no limbo. 

Essencial ressaltar, neste ponto, que as normas que compõem o ordenamento jurídico não devem ser interpretadas de maneira isolada, e sim de maneira global, sistêmica. Portanto, as obrigações do Estado brasileiro em relação às garantias dos interesses dos infantes não se limitam àquelas declaradas no texto da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, mas em todos os outros instrumentos normativos atualmente em vigor no plano interno.

Cumpre ainda esclarecer que, conforme destacado pelo Desembargador Federal Guilherme Calmon, em sua palestra já referida, com o pedido de homologação do acordo, não se está a discutir essencialmente o Direito de Família, mas tão somente o reconhecimento da conciliação a que chegaram os legítimos guardiões da criança. Com isto, põe-se em evidência que o interesse maior da criança é o fim perseguido pela Convenção, de ter plena assistência de ambos os pais, como forma de lhe assegurar a proteção e o cuidado que sejam necessários para seu bem-estar. Observa-se aqui a importância da conciliação para haja retorno imediato da criança para seu duplo referencial, pai e mãe, responsáveis pelo seu alicerce emocional.

Para o Conselho da Justiça Federal, um acordo, para garantir o convívio com ambos os genitores, representa a finalidade maior da Convenção da Haia de 1980. Portanto, recomenda-se a utilização da conciliação ou da mediação nos processos com esse objeto da Convenção da Haia, visto que desta maneira resultará em maior efetividade das soluções obtidas por consenso.

A insegurança e as incertezas que permeiam um processo, atrapalham o desenvolvimento emocional dos menores, porque eles ficam no meio do fogo cruzado. É preciso estimular a composição de acordos, principalmente ao se tratar de litígios que envolvem crianças. A criança incapaz de se defender é quem sofrerá as maiores consequências de uma separação conjugal mal sucedida, e do tempo que se leva para a resolução judicial.

Em processo judicial no qual existe conflito familiar não é possível abordar apenas o “conteúdo manifesto”, isto é, aquilo que está sendo mostrado; é preciso ter outro olhar e outra escuta. É no conteúdo latente, naquilo que não é observado por um leigo por ser inconsciente, que poderão ser encontradas alternativas possíveis para o caso. Isto é, é necessário compreender a personalidade, o funcionamento mental e a dinâmica emocional, atividades de competência do psicólogo e do psicanalista. Por isso, tem sido cada vez mais comum para o deslinde de um processo o trabalho com equipe multidisciplinar, com o objetivo de esclarecer e encontrar novas alternativas ao sofrimento experimentado pelos envolvidos no processo.

É importante destacar que a Justiça Federal foi criada para processar e julgar qualquer processo em que a União seja parte ou interessada. Assim, havendo interesse da União na homologação do acordo, certo é que cabe à Justiça Federal analisar o caso, sob pena de violação expressa ao art. 109 da Constituição Federal. 

Ademais, como a homologação do acordo é condição para o encerramento do pedido de auxílio direto passivo enviado pelo Estado de residência habitual, é indene de dúvidas que caberá à Justiça Federal analisá-lo e julgá-lo, sob pena de ofensa ao art. 34 do Código de Processo Civil.

Com os argumentos acima, podemos perceber que a Justiça Federal é competente para homologar acordos, nas ações fundadas na Convenção da Haia de 1980, embora presentes disposições alusivas do Direito de Família, estando estas sempre vinculadas ao objeto da Convenção.

Quanto ao tema, recentemente a AGU promoveu uma atuação inovadora no procedimento de resolução de casos de Haia. A Advocacia-Geral da União intermediou, de forma inédita, um acordo antes mesmo que ele fosse parar na Justiça. A homologação do acordo, feita pela Justiça Federal em Minas Gerais, aconteceu em tempo recorde de 12 dias. Para que isso ocorresse, a AGU estabeleceu diálogos com o Ministério Público Federal, com os advogados das partes e com a Justiça Federal na busca de consenso. Em conclusão, nos casos com base na Convenção da Haia de 1980, os benefícios proporcionados por uma cultura de conciliação vão além da proteção dos interesses da criança. Também é preservada a reputação do Estado brasileiro, notadamente na confiabilidade em dar cumprimento a seus compromissos internacionais.

Notas__________________________

1 Seminário: “Proteção da criança no âmbito da subtração internacional: Experiência comparada na América Latina”; Transmitido ao vivo em 17/2/2022; https://www.youtube.com/user/emagtrf3; consulta feita em 16/3/2022.

2Resolução 257/2018, Conselho Nacional de Justiça:
“…para cumprimento dos objetivos da Convenção, o juiz deverá zelar pela rápida solução do litígio, em atenção ao interesse superior da criança e do adolescente.

3 Manual de Aplicação da Convenção de Haia de 1980 da Justiça Federal, de outubro de 2015, no que tange a conciliação, páginas 23 e 24.

4 Auxílio direto passivo: pedido de assistência de Estado alienígena diretamente ao Estado rogado, para que este preste as informações solicitadas ou provoque a Justiça Federal para julgar a providência requerida, conforme o caso concreto.