A partir da esquerda, o Diretor-Geral da Enfam, Ministro Mauro Campbell Marques, o Ministro
do STF Luís Roberto Barroso, o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luis Felipe Salomão, e a
Juíza Federal do TRF2 Caroline Tauk, no painel que debateu a regulação das redes sociais
Seminário em Londres debate exigências tributárias para o ingresso do Brasil na OCDE, proteção de dados e outros temas quentes na pauta jurídica internacional
Durante quatro dias em outubro, magistrados e especialistas brasileiros e britânicos de diferentes áreas do Direito reuniram-se em Londres para uma série de debates comparativos entre as tradições jurídicas romano-germânica (civil law) e anglo-americana (common law). Foi a terceira edição do Seminário “New Trends in the Common Law” (Novas tendências em Common Law), promovido pela Revista Justiça & Cidadania, com apoio da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Institute of Advanced Legal Studies (IALS) da Universidade de Londres, que sediou o evento.
Direcionado a juízes federais e alunos selecionados de cursos de pós-graduação no Brasil e no Reino Unido, o Seminário visa construir pontes entre os sistemas judiciários de ambos os países e proporcionar aos magistrados brasileiros uma visão panorâmica do Direito inglês.
Com coordenação científica geral do Juiz Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) Marcus Lívio Gomes, pesquisador associado ao programa de pós-doutorado do IALS, a terceira edição abordou temas relevantes para o presente e o futuro do Direito, com foco em tributação internacional, Economia e Direito Digital. As palestras foram ministradas por magistrados e juristas de ambos os países, incluindo professores da UERJ e das mais prestigiadas universidades do Reino Unido – como University of London, University College London, London School of Economics e Queen Mary University.
Atuaram ainda como coordenadores temáticos o professor emérito de Direito da Universidade de Lancaster Sol Picciotto, que coordenou os painéis sobre tributação; o Juiz Federal do TRF2, professor da UERJ e da Universidade Estácio, Aluísio Gonçalves de Castro Mendes, que coordenou os painéis sobre commom law e procedural law; a Juíza Federal do TRF2 Caroline Somesom Tauk, que coordenou os painéis sobre Direito Digital; a Juíza Federal do TRF2 Daniela Pereira Madeira e a mestranda em Direito da UERJ Marília Cavagni, que co-cordenaram os painéis sobre transformação digital e inteligência artificial.
Ética e tecnologia – Um dos temas que gerou maior interesse foi sobre o uso de inteligência artificial (IA) pela Justiça, debate aberto pela participação de Colin Ian Birss, Lord Justice da Corte de Apelação da Inglaterra e Wales. Estudioso da aplicação de novas tecnologias ao Judiciário do Reino Unido – o sistema de Justiça mais tecnológico do mundo – ele falou sobre a relação entre ética, inteligência artificial e propriedade intelectual.
Sobre a tentação de utilizar a inteligência artificial para substituir os juízes, Sir Colin Birss observou que mesmo que sejam superados problemas com os vieses, ainda haverá dilemas: “Você dá à máquina um processo novo e ela prolata a decisão. O problema é não ter como saber porque foi que uma máquina que aprende sozinha decidiu daquela maneira em relação àquele processo. Essas são perguntas que precisamos fazer: O que os juízes fazem? E o que nós queremos que eles façam?”.
Recessão democrática – Outro painel reuniu o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso e o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luis Felipe Salomão, que é membro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e preside o Conselho Editorial da Revista JC.
Na terra de Shakespeare, o Ministro Salomão citou “Hamlet” para ressaltar a importância do debate sobre a regulação das redes sociais: “‘Existe uma providência especial até na queda de um pardal. (…) Estar preparado é tudo’. Não há como escapar da situação atual que vivemos, das comunicações instantâneas, mídias sociais e suas inserções na sociedade, com a transformação das formas com as quais nos comunicamos e resolvemos problemas. A expressão ‘estar preparado é tudo’ se aplica”.
O Ministro Luís Roberto Barroso falou sobre as dificuldades atualmente enfrentadas pela democracia constitucional em diferentes partes do mundo, quadro que tem sido identificado como recessão democrática. O que ocorre, segundo o magistrado, com a “ascensão vertiginosa de um populismo que é anti-institucional, antipluralista e, consequentemente, também autoritário”, que se utiliza das redes sociais para estabelecer comunicação direta com as bases, muitas vezes valendo-se de campanhas de desinformação.
“A Internet democratizou imensamente o acesso à informação, ao conhecimento e ao espaço público, mudou o curso da história para melhor, mas é preciso ter em conta os perigos que ela oferece para os direitos fundamentais e para a democracia. Precisamos regulá-la para combater os discursos de ódio, os comportamentos inautênticos, as teorias conspiratórias e as mentiras deliberadas, que fazem mal às pessoas, mas essa regulação precisa ser proporcional e ter os procedimentos adequados. Essa é a melhor e talvez a única forma de transformarmos todos os avanços tecnológicos em algo que seja verdadeiramente construtivo e faça o mundo ser melhor”, sintetizou o Ministro Barroso.
Olho no olho – Em sua participação, o Diretor-Geral da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), o Ministro do STJ Mauro Campbell Marques, comentou que apesar do valor dos recentes avanços tecnológicos incorporados aos sistemas de Justiça, há lugares em que magistrados e demais operadores do Direito ainda encontram grandes dificuldades para atuar de forma não presencial.
“Sobre o olho no olho (…) no interior do Estado do Amazonas a realidade sempre foi essa. Com a presença do juiz, do promotor de justiça, do defensor público e dos advogados, os índices de criminalidade vão a zero, a autoridade do prefeito ‘coronel’ vai a zero, e efetivamente a população dá crédito ainda maior à presença da Justiça”, comentou o ministro, em painel presidido pelo conselheiro da OABSP Juliano Marques.
Com a vivência de quem foi promotor de justiça no interior do Amazonas antes de tornar-se magistrado, o Ministro Campbell por fim ilustrou: “Eu e o juiz passamos a levar as audiências para as comunidades, lá no meio da mata. Fazíamos questão de ir de toga e beca, naquele ‘frio amazonense’, sem umidade alguma. Ficávamos lá derretendo, para que o caboclo meu conterrâneo não tivesse temor reverencial, para que ele soubesse cobrar do promotor e do juiz da comarca. Isso, infelizmente, nessa quadra que atravessamos agora com a pandemia, tem sido um desafio extraordinário. Rogo a Deus para que na Corregedoria Nacional de Justiça o Ministro Salomão consiga repor (o contingente em comarcas remotas)”.
Regulação da inteligência artificial – Designado para presidir a comissão de juristas que auxilia o Senado Federal na redação do substitutivo a três projetos de lei, aprovados pela Câmara dos Deputados, que têm por objetivo regular o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil, o Ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva falou sobre as linhas gerais do anteprojeto, que será entregue até dezembro.
“Já fizemos quatro dias de audiências públicas, divididas em grupos temáticos, sobre o conceito e o escopo da regulação, as questões da responsabilidade civil, governança e incentivos à inovação. As audiências trouxeram contribuições importantes, sobretudo porque é fundamental num campo como esse, que envolve o nosso cotidiano, os depoimentos concretos de grupos minoritários que são adversamente afetados pelos vieses cognitivos embutidos nos algoritmos. Ouvimos todo tipo de minorias que se possa imaginar e até mesmo coisas que não se poderia imaginar”, comentou o ministro.
No mesmo painel, a advogada, árbitra e Vice-Presidente da OABRJ, Ana Tereza Basilio, apresentou um panorama da aplicação da tecnologia na resolução de conflitos no Brasil, como por exemplo com o uso, desde 2020, do “Juízo 100% Digital”, política judiciária instituída pela Resolução CNJ nº 345/2020, que permite ao jurisdicionado o uso da tecnologia para acessar a Justiça sem a necessidade de comparecimento aos tribunais.
“O grande desafio para o futuro do processo eletrônico será a padronização dos sistemas utilizados pelos tribunais”, apontou a jurista, ao lembrar que, como já foi constatado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), as falhas na formulação e acompanhamento das estratégias de informatização do processo judicial têm resultado em sistemas de baixa qualidade, que prejudicam o acesso à Justiça e impactam negativamente a economia.
Preço do ingresso na OCDE – Outro destaque foi o debate das tendências tributárias internacionais, como foco nas propostas para conformar o sistema tributário brasileiro às regras recomendadas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que perpassou diferentes painéis nos quatro dias de seminário. Um desses painéis, coordenado pelo doutor em Direito Comercial Comparado da Universidade La Sapienza, de Roma, Andrea Marighetto, contou com a participação do Secretário Especial da Receita Federal do Brasil Julio Cesar Vieira Gomes, do ex-chefe da Unidade de Preços de Transferência da OCDE, o consultor Tomas Balco, da Coordenadora-Geral de Tributação da Receita Federal do Brasil Cláudia Pimentel, e do consultor Chris Brolly, que trabalhou por mais de 30 anos para Her Majesty’s Revenue and Customs (HMRC), a agência governamental de receita e alfândega do Reino Unido.
“A grande discussão é como os standards internacionais em matéria de transfer price (preços de transferência) podem ser tratados no Brasil, tópico que o País já vem discutindo há anos. A adequação às propostas de standards internacionais claramente comporta várias consequências, não apenas para o mundo administrativo e institucional, mas também para o mundo privado, pela importância estratégica desse tema tanto para as empresas multinacionais com interesse no Brasil, quanto para as multinacionais brasileiras que têm interesse no mundo inteiro”, contextualizou o professor Andrea Marighetto.
O Secretário Especial Vieira Gomes explicou que, desde maio de 2019, quando foi feito o pedido formal de ingresso do País na OCDE, o Governo Federal formou um comitê com a participação de vários ministérios para fazer convergir as normas tributárias brasileiras aos padrões internacionais. O memorando desse comitê, entregue à OCDE no início de outubro, procura demonstrar o encaminhamento de mais de 30 exigências para o ingresso na Organização, dentre elas a controvertida questão tributária dos preços de transferência.
O consultor Tomas Balco atualmente orienta os países candidatos ao ingresso sobre como implementar os padrões e recomendações da OCDE em suas estruturas legais e administrativas, mas já liderou o projeto conjunto da OCDE com a Receita Federal do Brasil para elaborar uma análise comparativa detalhada entre o sistema tributário brasileiro e os padrões adotados nos demais países do mundo. Para ele, embora o sistema brasileiro de preços de transferência, definido pela Lei nº 9.430/1996, seja considerado pelas Nações Unidas como um exemplo de abordagem positiva sobre o tema, o modelo não foi seguido por nenhum outro país, o que levou a jurisdição do Brasil a uma posição de isolamento.
Outras perspectivas – “Seria interessante adotar padrões internacionais, da OCDE ou das Nações Unidas, que tenham a finalidade de mudar a forma de tributação na fonte?”, questionou num dos painéis sobre as tendências da tributação o coordenador científico do evento, o Juiz Federal Marcus Lívio. Segundo ele, estudo divulgado pela Oxfam em julho demonstra não haver vantagens significativas para o Brasil em abandonar seu sistema e incorporar as recomendações da OCDE, porque o País “já tem uma tributação na fonte extremamente bem organizada” e porque a política fiscal doméstica, “ainda que criticada, tem protegido nossa base tributária nos últimos anos”.
“Com a adesão à OCDE, vocês terão uma situação complicada, uma mudança de paradigma. Fui negociadora por Portugal em alguns grupos de trabalho da OCDE. A partir do momento em que somos países membros da Organização, não podemos negociar nada diferente. Há a possibilidade de manifestarmos reservas, mas só quando a OCDE permite a inclusão das reservas nos comentários é que conseguimos alguma adaptação. Perante uma doutrina brasileira tão forte, na minha perspectiva acadêmica, uma solução seria firmar acordos ou arranjos regionais para defender os interesses do Brasil”, comentou em sua participação a professora de Direito Fiscal Internacional da Universidade de Lisboa Ana Paula Dourado.
Para a catedrática, o estabelecimento de “clubes regionais”, como, por exemplo, do Brasil com a Colômbia, que ingressou na OCDE em 2020, poderia ajudar os países a romper com a “perspectiva monocromática” da Organização.
Direito Comparado – O seminário New Trends in Common Law faz parte do ciclo de Estudos Internacionais em Direito Comparado promovido pela Revista Justiça & Cidadania, com eventos semelhantes realizados regularmente no Brasil e em importantes capitais estrangeiras, como Madrid, Paris e Washington. Saiba mais em nosso site (editorajc.com.br).