Edição 292
Impactos da Reforma do Código Civil Brasileiro no CPC/2015: primeiras impressões
29 de novembro de 2024
Humberto Dalla Desembargador no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro / Professor Titular na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
A mudança de um Código, seja ela integral ou parcial, sempre gera efeitos diretos e indiretos no ordenamento jurídico. Os primeiros se referem à mesma área do conhecimento, no caso, o atual Código Civil e as dezenas de leis extravagantes que serão impactadas, em maior ou menor escala. Os segundos demandam exame mais aprofundado, pois projetam seus efeitos nos demais ramos do direito.
Nesse texto, vamos nos deter nesses efeitos secundários que atingirão o CPC que, no ano de 2025, completa 10 anos.
Antes disso, porém, importante lembrar a íntima e indissociável relação existente entre o direito material e processual. Essa influência repousa, entre outros fatores, no grau e extensão da cognição exercida pelo juiz, na ideia da instrumentalidade do processo e na ressignificação do conceito de jurisdição na contemporaneidade.
José Carlos Barbosa Moreira, em 2002, publicou um interessante texto sobre as implicações do então novo Código Civil sobre o CPC de 1973, chamando a atenção para os temas híbridos, ou seja, os que são tratados concomitantemente nos ordenamentos material e processual, fato esse que se repete agora, sob os influxos de novas tendências, como a desjudicialização, a busca pelo consenso, o protagonismo do direito digital, e a cooperação interinstitucional.
Nesse ensaio, num primeiro momento, faremos um exame topográfico, indicando as menções existentes ao CPC no texto da Reforma.
A seguir, vamos analisar os artigos revogados e, por último, os dispositivos que serão modificados a fim de evitar conflitos concretos ou aparentes de normas.
Numa primeira leitura, o texto faz quatro menções ao CPC, a saber:
Artigo 9o, inciso VI: inclui o registro ou averbação no RCPN da decisão que declara filiação, proferida na forma do art. 503 e parágrafos, do CPC;
Artigo 11, §3o: prevê que a aplicação dos direitos da personalidade deve ser feita à luz das circunstâncias e exigências do caso concreto, aplicando-se a técnica da ponderação de interesses, observado o artigo 489, §2o, do CPC;
Artigo 228, §3o: determina que o depoimento de crianças e adolescentes observe o disposto nos artigos 699 e 699-A do CPC, e na Lei no 13.431/2017; e
Artigo 1.146, §1o: condiciona a corresponsabilização do adquirente do estabelecimento ao fato de o credor observar o procedimento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, regulado nos artigos 133 a 137 do CPC.
Os dispositivos demonstram, claramente, a interação entre as normas substanciais e adjetivas, conferindo maior segurança jurídica e prevenindo eventuais dúvidas que poderiam surgir na atividade hermenêutica.
Dentre as modificações operadas no texto do CPC, chamamos a atenção para as seguintes:
Supressão da figura da separação judicial, tema controverso nos últimos tempos, sobretudo após o advento da Emenda Constitucional no 66/2010, que alterou a redação do §6° do artigo 226 da Carta de 1988. Sobre a questão, o STF já se manifestou de forma definitiva ao examinar o Tema 1.053. Nesse sentido serão alterados os artigos 23, III; 53, I; 189, II e §2°; 693, 731 e 732 do CPC.
Uniformização do termo “convivente” em substituição a “companheiro”, por força da redação que será dada ao novel artigo 1.564-A do Código Civil, que trata do instituto da união estável. Dessa forma, são modificados os artigos 447, §2o, I; 616, e 617, I e II do CPC.
O artigo 374 ganha o parágrafo único, com a seguinte redação. “Ressalvadas as leis especiais, em negócios jurídicos paritários, os fatos especificamente descritos e aceitos pelas partes como verdadeiros, em específica cláusula contratual de negócio jurídico válido e eficaz, não precisam ser provados, salvo se a controvérsia residir exatamente quanto à sua validade ou eficácia”.
O caput do artigo 539, que trata da consignatória, passa a prever a possibilidade do requerimento do cumprimento de obrigação ou de desoneração de responsabilidade sobre a coisa. Fica acrescido, ainda, o §5o. “Tratando-se de prestação de entrega ou devolução de coisa, na recusa do credor, o devedor desonerar-se-á fazendo o respectivo depósito.”
É acrescida mais uma hipótese de alegação cabível na contestação na consignatória. O inciso V do artigo 544 disporá que o réu poderá alegar, ainda, que a coisa não foi devolvida no estado em que havia sido entregue.
O artigo 617 é modificado para prever, com primazia, a figura do testamenteiro na ordem para indicação do inventariante.
As modificações refletem a necessidade de adequar o texto do CPC às inovações trazidas pela Reforma. As alterações são cirúrgicas e buscam preservar, ao máximo, o texto original.
Por fim, o artigo 20, inciso VII do Anteprojeto prevê a revogação dos seguintes dispositivos do CPC:
art. 447, §1o e incisos I, II, III e IV;
art. 610;
art. 639;
art. 733;
art. 734, §§1o, 2o e 3o;
art. 760, incisos I e II e §§1o e 2o.
Os artigos 610 e 733 se tornaram incompatíveis com o novo regramento, sobretudo após a edição da Resolução no 571/24 que alterou a Resolução no 35/07 de forma a expandir as hipóteses de desjudicialização.
O artigo 610 foi claramente impactado pelos artigos 12-A e 12-B da Resolução, este último refletindo posicionamento já adotado pelo STJ desde o ano de 2019, em pioneiro julgamento conduzido sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão. Já o artigo 733 se tornou incompatível com a nova diretriz traçada pelo artigo 34 da Resolução.
A supressão dos dois dispositivos representa claro avanço no sentido da desjudicialização.
Por fim, o artigo 447, §1o já apresentava dificuldades de compatibilização desde que o artigo 228 do Código Civil havia sido modificado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei no 13.146/2015).
Desse modo, os quatro incisos que se referem aos incapazes de depor são revogados. Ademais, é acrescido o §4o que autoriza o magistrado a admitir o depoimento de testemunhas com menos de 18 anos, impedidas ou suspeitas quando necessário.
Esses, em apertadíssima síntese, são os principais impactos da Reforma.
Certamente, o texto será ainda amadurecido e importantes contribuições serão agregadas. De toda forma, é um importantíssimo passo dado no sentido de aperfeiçoar nosso ordenamento jurídico, contribuir para a maior efetividade do direito e selar a harmonização das normas materiais e processuais.
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