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Impossibilidade jurídica de Embargos à Execução inexistente

5 de janeiro de 2004

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Em alentada entrevista sobre “As Reformas do Código de Processo Civil”, o eminente Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira afirmou, com inegável acerto, que um dos pontos relevantes da Lei n° 10.444/2002 refere-se aos artigos 461 e 461-A do C PC, com a extinção do processo autônomo de execução, concernente às obrigações de fazer ou não fazer e de entrega de coisa. (In Revista do Tribunal Regional Federal da 1 a Região n° 7, ano 15, julho/2003, p. 13).

Na visão doutrinária de Eduardo Talamini, Ovídio Baptista, Kazuo Watanabe, Guilherme Marinoni e Rogério Aguiar Munhoz Soares, dentre outros, seguindo as pegadas de Andrea Proto Pisani (5ulla Tutela giurisdizionale differenziata, in Rivista di Diritto Processuale, ano XXXIV, n° 4, p.536), “a distinção entre sentenças condenatárias, mandamentais e executivas requer verifique-se a via pela qual se dará a efetivação da tutela, e essa definição integra o conteúdo do provimento judicial cuja eficácia é realizada. A sentença condenatária conduz ao emprego de mecanismos subrogatários em processo subseqilente; a executiva determina a imediata atuação desses meios subrogatários, independentemente de novo processo; a mandamental dirige ordem ao demandado, sob pena de adoção de medidas coercitivas” (in “Tutelas mandamental e executiva lato sensu e a antecipação de tutela ex vi do art. 461, § 3°, do C PC -Aspectos Polêmicos da Antecipação de Tutela, p. 141; apud “Tutela Jurisdicional Diferenciada -Tutelas de Urgência e Medidas Liminares em Geral” -Malheiros Editores Ltda., São Paulo, 2000, p.192).

No Brasil, o primeiro jurista a tratar da tutela mandamental foi Pontes de Miranda, na afirmação de que “na sentença mandamental, o juiz não constitui: “manda”. Na transição entre o pensamento da sentença condenatória e o ato da execução, há intervalo, que é o da passagem em julgado da sentença de condenação e o da petição da ação judicati. Nas ações executivas de títulos não-judiciais, essa mediatidade desaparece, de modo que o ato prima; ainda que se tenha de levar em conta o elemento condenatório, a ação é executiva. Na ação mandamental, pede-se que o juiz mande, não só que declare (pensamento puro, enunciado de existência), nem que condene (enunciado de fato e valor); tampouco se espera que o juiz por tal maneira fusione o seu pensamento e o seu ato que dessa fusão nasça a eficácia constitutiva. Por isso mesmo, não se pode pedir que dispense o “mandado”. Na ação executiva, quer-se mais: quer-se o ato do juiz, fazendo, não o que devia ser feito pelo juiz como juiz, sim o que a parte deveria ter feito. No mandado, o ato é ato que só o juiz pode praticar, por sua estatalidade. Na execução, há mandados -no correr do processo -; mas a solução final é ato da parte (solver o débito ). Ou o juiz forçando” (F .C. Pontes de Miranda. Tratado das Ações. São Paulo, RT, 1970, v.1, p. 211).

A dimensão da tutela jurisdicional, aqui, prevista, com natureza mandamental, antecipatória ou final, ilumina-se nos ensinamentos de Cândido Rangel Dinamarco, nos enfoques, a seguir transcritos:

“Oriundo do Código de Defesa do Consumidor, deve o art. 461 do Código de Processo Civil ser interpretado em sistema com o art. 83 daquele, segundo o qual (mutatis mutandis) todas as espécies de ação são admissíveis, para a tutela jurisdicional nas obrigações de fazer ou de não fazer. Esse preceito não está escrito no código de Processo Civil, mas resulta claramente do seu sistema e da regra de adequação entre os provimentos jurisdicionais existentes e as situações de direito material a serem providas. Falar em todas as espécies de ações significa incluir as espécies de tutela que se obtêm no processo de conhecimento ( constitutiva, condenatória ou meramente declaratória) e também a tutela executiva e a cautelar. O art. 461 situa-se no Livro do processo de conhecimento e precisamente no capítulo da sentença e da coisa julgada, mas isso não afasta a influência que terá na tutela executiva relacionada às obrigações de fazer ou de não fazer. Para Ada Pellegrini Grinover, o art. 83 do Código de Defesa do Consumidor abre caminho inclusive às ações mandamentais, o que estaria evidenciado de modo especial nos §§ 4° e 5° do art. 461 do Código de Processo Civil.

A Reforma pretendeu armar o juiz de poderes muito intensos, destinados a combater a resistência do obrigado em todos esses casos. Transpondo para o Código de Processo Civil o que consta no de Defesa do Consumidor (art. 84), o legislador dispensou inclusive o processo de execução das sentenças que condenem a uma ação ou abstenção. Mitigou sensivelmente a regra de que a competência se exaure com a publicação da sentença de mérito (art. 463), para incumbir o juiz, no processo de conhecimento mesmo, a desencadear todas as medidas necessárias a induzir o demandado a cumprir. Compete-lhe, com vista a esse objetivo, impor astreintes ainda que não pedidas na demanda inicial (art. 461, § 4°), além de determinar a remoção ou busca e apreensão de pessoas ou coisas, desfazimento de obras, impedimento (até mesmo material e forçado) de atividades nocivas, etc. inclusive o emprego de força policial é expressamente autorizado -sabido que a coerção racional e proporcionada não é incompatível com as garantias liberais do Estado-de-Direito. Enfim, são imensos os poderes que o juiz deve exercer com o objetivo de motivar o obrigado a cumprir a própria obrigação que causara a condenação ou a produzir o resultado equivalente que venha a ser determinado. Bem exercidos, esses poderes serão capazes de produzir resultados melhores que os do processo de execução, e mais rapidamente.

A conversão da obrigação em perdas-e-danos, que em si é portadora de uma meia-justiça, só se admite quando impossível a realização do resultado pretendido ou se o preferir o próprio credor ( art. 461, § 1°). À facilidade com que no passado se convertiam em pecúnia as obrigações específicas vem reagindo a doutrina do passado e do presente, residindo no novo art. 461 uma eficiente resposta a esses anseios. Atende-se também à recomendação de que, “na medida do que praticamente possível, o processo deve propiciar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter” (Chiovenda).

No quadro geral da Reforma e do estado da doutrina que a inspirou, essas novas disposições caracterizam-se como medidas destinadas a afastar óbices relacionados com o quarto dos pontos sensíveis enunciados acima, a saber, com a problemática da utilidade das decisões. Inexiste tutela jurisdicional enquanto o comando enunciado na sentença permanecer só na sentença e não se fizer sentir de modo eficaz na realidade prática da vida dos litigantes. Agora, tudo depende da tomada de consciência dos juízes e da energia com que venham a exercer esses poderes, a bem da efetividade da tutela jurisdicional e da própria respeitabilidade de sua função e dos seus comandos” (C.R. Dinamarco. Tutela jurisdicional. Ensaio (trabalho avulso), inédito. São Paulo. pp. 11/12).

Quando se cuide, assim, do cumprimento de obrigação específica de fazer a correção do saldo de conta vinculada ao FGTS, após a edição da Lei n° 10.444, de 7 de maio de 2002, com eficácia plena desde agosto de 2002, não há possibilidade jurídica de processo autônomo de execução do julgado, na espécie, vale dizer, de execução ex intervalo do julgado, pois a efetivação da tutela mandamental e específica nele contida poderá ser obtida, agora, por ordem judicial, de ofício ou a requerimento da parte interessada, mediante a imposição de multa por tempo de atraso no integral cumprimento dessa ordem judicial, nos termos dos artigos 644, caput e 461, parágrafo 5°, do C PC.

Se não há possibilidade jurídica de processo de execução autônomo, no caso, afigura-se, também, juridicamente impossível o processo de embargos à execução, na espécie, por não existir mesmo juridicamente, tal execução, pela nova sistemática processual em vigor.

Nesse sentido, já decidiu a colenda Sexta Turma do TRF/1a Região, com Acórdão, assim, redigido: “PROCESSUAL CIVIL. CORREÇÃO DO SALDO DE CONTA VINCULADA AO FGTS. OBRIGAÇÃO DE FAZER. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DE PROCESSO AUTÔNOMO DE EXECUÇÃO, POR TITULO JUDICIAL E DE CONSEQUENTE EMBARGOS A EXECUÇÃO JURIDICAMENTE INEXISTENTE. POSSIBILIDADE DE EFETIVAÇÃO DA TUTELA MANDAMENTAL, EX OFFICIO, POR ORDEM JUDICIAL ESPECÍFICA. EXTINÇÃO DOS EMBARGOS SEM JULGAMENTO DO MÉRITO.

I -O cumprimento do julgado que determina a correção monetária do saldo de contas vinculadas ao FGTS encerra uma obrigação de fazer, sob o comando de uma tutela mandamental e específica, na regência dos artigos 644, caput, e 461, §§ 4° e 5°, do C PC, com a redação determinada pela Lei n° 10.444, de 07/05/2002, a dispensar, inclusive, a iniciativa do credor, na espécie.

II -Com vistas na eficácia plena do julgado, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, fixar multa compatível com a efetivação da tutela mandamental (C PC, art. 461, §§ 4° e 5°), afigurando-se improcedente o recurso de agravo tendente a desconstituir essa ordem judicial específica.

III – Não há possibilidade jurídica de processo autônomo de execução por título judicial, na espécie, e de consequente embargos à execução, que deverão ser extintos sem julgamento do mérito, em casos que tais, arcando a embargante com os ônus da sucumbência. IV -Agravo desprovido” (AGRAVO DE

INSTRUMENTO N° 2003.01.00.004745-4/MG -Rei. Desembargador Federal SOUZA PRUDENTE -Sexta Turma -unânime -julgado em 08/08/2003).

Não há como invocar-se, aqui, a malsinada redação do art. 29-D acrescentado, indevidamente, ao texto normativo da Lei n° 8.036, de 11/05/90, pela infeliz Medida Provisória n° 2.164-41, de 24 de agosto de 2001, nestas letras: “Art. 29-D. A penhora em dinheiro, na execução fundada em título judicial em que se determine crédito complementar de saldo de conta vinculada do FGTS, será feita mediante depósito de recursos do Fundo em conta vinculada em nome do exequente, à disposição do juízo.”

Além de manifestar-se como atestado grosseiro de aberração jurídico-processual, por transformar uma tutela específica de obrigação de fazer, essencialmente mandamental, numa extravagante execução por quantia certa contra devedor solvente, às custas de garantia de penhora com dinheiro do próprio credor, mediante depósito judicial de recursos do FGTS em conta vinculada do exequente, sem qualquer comprometimento patrimonial da empresa devedora, na espécie, o texto normativo em referência não tem amparo constitucional, posto que o instituto da Medida Provisória afigura-se imprestável para disciplinar normas de Direito Processual, como no caso, sob pena de ferir-se a competência privativa da União, por intermédio do Congresso Nacional (CF, artigos 22, ” e 48, caput), posto que o devido processo legal (CF, art. 5°, LlV) constitui-se como direito individual, protegido por cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4°, IV), sem possibilidade de delegação congressual (CF, art. 68, § 1°, II). Essa inteligência, inclusive, restou consagrada na Emenda Constitucional n° 32, publicada no Diário Oficial da União do dia 12/09/2001, que alterou o art. 62 da Constituição, vedando, expressamente, a edição de Medidas Provisórias sobre direito penal, processual penal e processual civil (art. 62, § 1°, b).

A propósito desse tema, o colendo Superior Tribunal de Justiça, assim já se pronunciou: “PROCESSUAL CIVIL. FGTS. CORREÇÃO DOS DEPÓSITOS. VERBA HONORÁRIA. LEI 8036/90, ART. 29-C INTRODUZIDO PELA MP 2164-40. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA. EC 32/2001, ART. 2° . CF, ART. 62, § 1°, INC. I, “B”. C PC, ART. 20. Analisando-se o art. 29-C acrescentado à Lei 8036/90 pela MP 2164-40 conclui-se por sua vinculação aos dispositivos anteriores da mesma lei, relativos ao descumprimento das obrigações do empregador concernentes ao FGTS, a ser dirimido no âmbito da Justiça do Trabalho. As causas onde se discute a inclusão dos expurgos inflacionários na correção dos depósitos do FGTS não podem ser consideradas como dissídios trabalhistas. O art. 62, § 1°, inc. ” alínea “b”, da CF veda, expressamente, a edição de medidas provisórias sobre matéria processual civil, como é o caso da condenação dos honorários advocatícios prevista no art. 20 do C PC. Recurso especial improvido.” (RESP 453901/RS -Rei. Min. Francisco Peçanha Martins -Segunda Turma – Unânime- OJU de 18/11/2002) -grifei.

A todo modo, ainda que juridicamente válido fosse o indigitado art. 29-0 da lei n° 8.036/90, acrescentado pela Medida Provisória n° 2.164-41, de 24/08/2001, tal dispositivo já fora revogado pelos arts. 644 e 461, § 5°, do C PC, com a redação determinada pela lei n° 10.444, de 7 de maio de 2002, por ser totalmente incompatível com os comandos legais que lhe são posteriores e em pleno vigor, como assim determina o art. 2°, § 1° da lei de Introdução ao Código Civil (Oecreto-lei n° 4.657, de 4 de setembro de 1942), in verbis: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.”

Como se vê, inexiste possibilidade jurídica de embargos à execução juridicamente inexistente, pela nova sistemática processual em vigor.