Edição 76
Inadimplemento contumaz do Poder Público e suas conseqüências para as distribuidoras de energia elétrica
30 de novembro de 2006
Fábio Amorim da Rocha Superintendente Jurídico da Light
As questões a serem analisadas neste artigo assumem particular importância, haja vista que empreendedores privados foram atraídos com o início do programa de privatização ocorrido em 1996 a investirem em distribuição de energia elétrica, e passados dez anos ainda se observa o considerável impacto econômico no fluxo de caixa destas concessionárias em razão do inadimplemento contumaz de seus clientes, em especial aqueles pertencentes aos órgãos públicos federais, estaduais e municipais.
Ressalta-se que, infelizmente, tem-se mostrado cada vez mais comum, a inadimplência contumaz dos usuários, respaldados na irresponsável tese de impossibilidade da suspensão do serviço, inclusive, daqueles que prestam serviços públicos.
É visível, assim, a preocupação com os reflexos socioeconômicos que resultariam no impedimento da concessionária em suspender o fornecimento de energia aos consumidores em mora, em especial aqueles pertencentes ao poder público, foco principal deste artigo. A inadimplência generalizada repercutiria de tal modo no resultado financeiro das concessionárias que inviabilizaria a prestação do serviço.
E após a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (lei nº 8.078/90), os questionamentos sobre a possibilidade de ser suspensa a prestação de serviço público ao usuário inadimplente cresceram consideravelmente.
Os que alegam a impossibilidade de ser suspensa a prestação de serviço público por falta do pagamento respectivo, invocam as disposições contidas na referida lei, em especial o artigo 22.
A inadimplência recalcitrante, habitual e generalizada das unidades consumidoras pertencentes ao poder público federal, estadual e municipal é um problema de suma gravidade, pois, além do prejuízo para os cofres públicos, do agravamento de ônus tributários para a sociedade e da desmoralização das instituições públicas, gera intranqüilidade para as distribuidoras que fornecem o serviço e não recebem a contraprestação devida.
Segundo dados da Associação dos Distribuidores de Energia Elétrica – Abradee datados de 2004, o Rio de Janeiro é estado do Brasil com o maior índice de inadimplência, principalmente entre os consumidores que fazem parte da classe poder público, o que retrata o descaso destes em honrar seus compromissos.
A moralidade administrativa é um princípio essencial, previsto no artigo 37 da Constituição Federal, que pode levar até a anulação do ato (artigo 5º, LXXIII).
Os agentes, responsáveis pelo desvio de verbas para pagamento das faturas de energia (prevista na cotação orçamentária), causam danos ao erário, ainda que intimamente possam imaginar que o beneficiam. São maus administradores e devem ser responsabilizados regressivamente pelos prejuízos que causam efetivamente ao Estado, pois inegavelmente assumiram esse resultado.
Ante os aspectos de moralidade envolvidos, o inadimplemento público é uma imoralidade administrativa a ser combatida; em parte confundindo-se, no caso, o interesse privado patrimonial, de qualquer co-contratante lesado, com o próprio interesse público de que se exerça o controle, administrativo ou judiciário, sobre esse abuso de tão disseminadas e funestas conseqüências.
O administrador público deve pautar-se, também, pelo princípio da honestidade, já que ser exemplo para a comunidade que administra, e não parece correto e lícito o ato de quem celebra uma confissão de dívida decorrente do fornecimento de energia elétrica para suas unidades, estabelece a forma de pagamento dessa dívida, convenciona a possibilidade de suspensão do serviço em caso de inadimplência, e depois, além de não cumprir o contrato, recorre ao Judiciário buscando guarida em sua pretensão imoral.
Deve-se ressaltar que as unidades consumidoras pertencentes ao poder público não possuem privilégio algum em comparação aos demais consumidores de energia elétrica, podendo, em caso de inadimplência e cumpridas as disposições contidas no artigo 6°, §3°1 da lei nº 8.987/95 e artigo 172 da lei nº 9.427/86, sofrer as mesmas sanções aplicáveis a todo e qualquer consumidor de energia elétrica, ou seja, a suspensão do fornecimento do serviço às unidades consumidoras, onde a falta de energia não comprometa os serviços públicos essenciais e imediatos.
Ademais, se o serviço é mantido através da tarifa paga pelo usuário, a falta desse pagamento compromete, seriamente a própria continuidade do serviço, além de configurar verdadeiro locuplemento ilícito do faltoso, em desfavor dos demais usuários. A característica da continuidade deve ser entendida como a possibilidade do fornecedor de fazer cessar, por ato unilateral e arbitrário, a prestação de serviço.
Não se pode admitir que o consumidor de energia elétrica, ainda que seja o mesmo o próprio Poder Público, venha a obter um enriquecimento ilícito, usufruindo um serviço, através de um contrato oneroso, sem prover o prestador com sua devida contraprestação, qual seja: o pagamento.
Insta ressaltar que o procedimento que leva à suspensão do serviço não é conduzido de forma arbitrária, pelo contrário, possibilita ao ente público ou particular prestador de serviço público, ampla oportunidade de adotar as providências cabíveis para evitar qualquer prejuízo, uma vez que a lei concede o prazo de 15 (quinze) dias de antecedência para o envio de notificação de prévio aviso.
A primeira seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ, no v. acórdão publicado em 01/03/2004, uniformizou a jurisprudência daquele Superior Tribunal, ao julgar o REsp n° 363.943, decidindo que “a distribuição de energia é feita, em sua grande maioria, por empresas privadas que não estão obrigadas a fazer benemerência em favor de pessoas desempregadas. A circunstância de elas prestarem serviços de primeira necessidade não as obriga ao fornecimento gratuito…O corte é doloroso, mas não acarreta vexame. Vergonha maior é o desemprego e a miséria que ele acarreta…é lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica mantém inadimplência no pagamento da respectiva conta”.
Portanto, a prescrição contida no artigo 223 do CDC não implica derrogação das disposições legais anteriormente referidas, não podendo ser tratada a exigência da continuidade do serviço como absoluta e incondicional.
A continuidade do serviço deve ser entendida como uma garantia para coletividade de que jamais os serviços qualificados como essenciais deixarão de ser ofertados à comunidade administrada.
Logo, a legalidade da suspensão do fornecimento de energia elétrica, além de estar prevista em toda a legislação ora abordada, também já foi pacificada pela jurisprudência, e não é vedada pelo Código de Defesa do Consumidor.
Resta demonstrado de forma cristalina que não é detentor de direito líquido e certo a receber continuadamente o serviço de energia elétrica, o consumidor, que deliberadamente, deixa de pagar a fatura de energia elétrica correspondente, transgredindo assim, a norma que disciplina a prestação de serviço.
Portanto, inexiste razão para o Judiciário conceder liminares ou antecipações de tutela no sentido de que concessionárias se abstenham de suspender o fornecimento de energia elétrica ou se assim já fizeram, de religar a unidade consumidora do cliente inadimplente.
A concessionária de energia elétrica, encontra-se amparada pela legislação e jurisprudência pacífica do STJ quanto a seu inafastável direito de receber a contraprestação pelos serviços que presta (a energia elétrica fornecida), e nenhuma condição outra lhe é imposta, além das normas regulamentares especiais a que está sujeita e que emanam do poder concedente, no sentido de fornecer energia elétrica gratuitamente a quem quer que seja.
Eram estas as considerações que julgávamos pertinentes sobre o tema ora analisado.
NOTAS _____________________________
1 Art. 6º- Toda a concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. §3º. Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando: II – por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade.
2 “A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que preste serviço essencial à população cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo estadual.”
3 “Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”.