Incapacidade biopsicossocial no Direito Previdenciário

14 de outubro de 2013

Compartilhe:

FOT_2785Disability biopsychosocial in social welfare law

Resumo:

O artigo analisa o tratamento do requisito da incapacidade laborativa sob a perspectiva social no direito previdenciário. Após a necessária digressão acerca dos benefícios por incapacidade previdenciários, passa-se à análise crítica sobre a chamada incapacidade biopsicossocial.

Abstract:

The article examines the treatment of the condition of labor disability from a social welfare law. We are encouraged to move on to the critical analysis of the so-called biopsychosocial disability.

Palavras-chave: benefícios previdenciários por incapacidade, causas biopsicossociais dos benefícios por incapacidade, doutrina dos benefícios previdenciários por incapacidade, jurisprudência acerca dos benefícios por incapacidade

Keywords: disability claims, biopsychosocial causes of disability benefits, the doctrine of disability claims, case law about disability benefits

Introdução

Nos últimos anos as concessões de aposentadoria por invalidez e demais benefícios por incapacidade de natureza previdenciária e assistencial vêm crescendo, conforme dados do Ministério da Previdência Social. A concessão do benefício tem aumentado no âmbito administrativo e judicial, nas lides entre segurados e o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, notadamente após o advento dos Juizados Especiais Federais pela entrada em vigor da lei 10.259/2001.

O artigo analisa o requisito legal da incapacidade laborativa para fins de aposentação por invalidez no Regime Geral de Previdência Social – RGPS. Para tanto, parte da observação das concessões judiciais em que o requisito da incapacidade laborativa passou a ser considerado mais amplo, pela análise de múltiplos aspectos ligados à individualidade e ao contexto social em que inserido o trabalhador segurado. Essa interpretação multifatorial é que se denomina de incapacidade biopsicossocial.

O aumento na concessão dessa espécie de benefício de caráter contributivo traz à tona reflexões sobre a saúde do trabalhador em seus múltiplos aspectos. Tal fenômeno deve ser abordado de forma multidisciplinar, pois envolve temas como proteção à saúde do trabalhador, políticas públicas de saúde, reformas no sistema previdenciário, precarização das relações de trabalho, mudança na expectativa de vida e evolução da medicina, dentre outros.

Trata-se aqui de benefício que tutela um risco social específico: a invalidez, decorrente de doença comum ou ocupacional, acidente de qualquer natureza ou acidente de trabalho. E esse sinistro coberto pela previdência pode ter como causas mediatas e imediatas as deficiências e problemas nas questões supracitadas. Há, portanto, uma bomba social por trás do aumento das concessões dos benefícios por incapacidade, sejam de natureza previdenciária, sejam de natureza assistencial, em que pese as aposentadorias por idade liderarem o ranking de concessões administrativas em decorrência do envelhecimento da população.

Muito embora a Organização Mundial de Saúde – OMS preveja a necessidade de se analisar as características biológicas, psíquicas e sociais do trabalhador na avaliação da incapacidade funcional, é na mescla dos conceitos médicos, administrativos e no argumento judicial que reside o objeto deste trabalho.

Entenda-se por argumento judicial, para fins deste estudo, a fundamentação para a prolação de sentenças e acórdãos e a convicção técnica da Advocacia-Geral da União para a realização de acordos judiciais nos processos previdenciários, na atuação dos Procuradores Federais oficiantes na matéria.

É justamente essa abordagem diferenciada para fins de aposentação por invalidez que nos remete ao conceito de incapacidade laborativa biopsicossocial no direito previdenciário, a partir do paulatino alargamento do requisito da incapacidade em uma legislação de tipos abertos.

Frisa-se que o conceito de invalidez laboral, como tratado na doutrina jurídica, era majoritariamente da área técnica da medicina, especialmente a do trabalho. A evolução social e científica é que nos traz a necessidade de se rever esse conceito, tratando da invalidez como fenômeno biológico, psicológico e também social.

A reflexão sobre o tema passará pela prematura hipótese de que tais fatores se constituiriam em causas supralegais de concessão de aposentadoria por invalidez.

Posteriormente verifica-se a evolução doutrinária e jurisprudencial do critério biopsicossocial, culminando com a fixação de critérios médicos e jurídicos para definição de incapacidade laborativa e sua integração.

O artigo não se furtará da necessária análise crítica da adoção desse conceito no âmbito administrativo e judicial, e as possíveis consequências do modelo, inclusive em sede de conclusão.

1. Panorama da aposentadoria por invalidez no regime geral de previdência social

Preliminar à abordagem específica do tema é necessário situar o benefício de aposentadoria por invalidez no regime geral dentro do amplo panorama da seguridade social previsto na Constituição Federal.

Nessa linha, imperioso salientar que a previdência social é uma das ações de iniciativa do Estado e da sociedade que compõe o trinômio da seguridade social, abarcando ainda a saúde e a assistência social, nos moldes preconizados pelo art. 194 da Constituição.

Em que pese a natureza jurídica distinta, é comum a confusão entre assistência e previdência. A primeira não é tratada neste artigo. Aqui o foco é um dos requisitos de um benefício de previdência social, ou seja, inserido no típico contrato de seguro representado pelas relações obrigacionais de custeio e prestação. A regra geral do sistema de previdência é que somente pode ser beneficiário e titular de prestação o trabalhador segurado, ou seja, filiado e contribuindo para o sistema, salvo as exceções específicas da lei.

A advertência é necessária porque não raro o sistema de previdência adquire contornos nitidamente assistenciais, como ocorre nos benefícios rurais que não exigem contribuição, e também no tema sob análise. De fato, a adoção de um critério biopsicossocial de incapacidade também reflete uma visão de previdência que vai além da clássica noção de seguro social. É uma acepção moderna, desenvolvida acentuadamente após o advento da nova ordem constitucional, principalmente na jurisprudência brasileira.

Crê-se que o amplo acesso ao Poder Judiciário para tratar das questões previdenciárias em concorrência com os demais fatores sócio-econômicos já citados, com especial relevo para a precarização das relações de trabalho e a carência na assistência à saúde, foram e são fatores determinantes para uma intervenção estatal mais abrangente em relação à previdência social.

Não à toa o aumento da cobertura previdenciária e o advento de normas mais benéficas no plano de benefícios da previdência a partir da Lei 8.213/1991.

Com o advento dos Juizados Especiais Federais em 2001, possibilitando amplo e gratuito acesso ao judiciário, os benefícios por incapacidade como um todo tiveram seus índices de concessão e reativação judiciais maximizados. A esmagadora maioria das ações previdenciárias em trâmite nos juizados atualmente é de concessão ou restabelecimento de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, o que também se reflete na justiça comum nas versões acidentárias destes benefícios. Anote-se que mesmo os benefícios de natureza assistencial devidos ao idoso e ao deficiente de baixa renda por previsão constitucional e regulados em legislação específica não impactam nas estimativas de ações em trâmite no Judiciário como as prestações previdenciárias por incapacidade.

Por esta razão é forçoso reconhecer a atualidade e relevância do tema.

Voltando ao requisito da incapacidade laborativa, verifica-se que a legislação em nenhum momento especifica critérios para definição do que vem a sê-la.

Entende-se que agiu bem o legislador, com o claro objetivo de não extrapolar matéria eminentemente técnica e não se imiscuir em tema que outrora se reputava exclusivamente da área da medicina, especialmente a do trabalho. Com essa base legislativa, ainda regulamentada pelo decreto, os critérios para definição da incapacidade funcional caberiam exclusivamente à área técnica da saúde do trabalhador.

Refletindo sobre o tema em análise, e talvez se possa falar mais nisso na conclusão, instiga-se a pertinência do legislador em estabelecer critérios jurídicos para definição da incapacidade com base em outros elementos afora os médicos.

Adiante a reflexão será aguda, mas por ora cabe trazer a conceituação jurídico-doutrinária de dois autores que tratam o benefício de forma oportuna e pertinente com o conteúdo e as conclusões do presente estudo.

MOZART VICTOR RUSSOMANO dispôs:

…aposentadoria por invalidez é o benefício decorrente da incapacidade do segurado para o trabalho, sem perspectiva de reabilitação para o exercício de atividade capaz de lhe assegurar subsistência.

WLADIMIR NOVAES MARTINEZ traz a natureza jurídica e crítica prefacial quando trata do benefício:

Aposentadoria por invalidez é benefício substituidor dos salários, de pagamento continuado, provisório ou definitivo, pouco reeditável, devido ao segurado incapaz para o seu trabalho e insuscetível de reabilitação para o exercício de atividade garantidora da subsistência.

A ele faz jus o facultativo, mesmo não trabalhando, e quem ingressa na previdência social incapaz para o trabalho não faz jus, salvo se sucedeu progressão ou agravamento após a filiação.

[…]

Benefício-irmão maior do auxílio-doença, é prestação previdenciária geradora de respeitáveis dissídios administrativos e judiciais pertinentes à definição do evento determinante.

Diante da enorme dificuldade de caracterizar a incapacidade para o labor ou recuperação, é negada para quem não tem condições de trabalho e deferida ao apto, provocando sem-número de discussões quanto à matéria fática, principalmente quando oriunda de acidente de trabalho, doença profissional ou do trabalho.

 

Dos conceitos acima, duas notas são importantes para este artigo: 1) a menção à perspectiva de reabilitação, e 2) a dificuldade de caracterização da incapacidade funcional como fato gerador de litígios administrativos e judiciais.

Aqui é importante salientar que antes da explosão das concessões de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez não tinha tanto relevo a discussão sobre o alcance do conceito de incapacidade laborativa. Não se diga que a controvérsia não existia, mas a importância da reflexão ganhou força com a massificação dos litígios e os reflexos na estatística dos foros e nas finanças previdenciárias. Antes se tratava de casos mais pontuais, e não se pode afirmar que o serviço pericial ignorasse os aspectos biopsicossociais do segurado, mas é evidente que a concorrência de recentes fatores sócio-econômicos tornou o tema mais relevante e estratégico.

Com a melhor estruturação do serviço de perícia médica do INSS a partir de 2002, notadamente com o fim dos médicos particulares credenciados e a exclusividade do ato médico pericial a cargo de peritos oficiais e concursados, ganha relevo a fixação no âmbito administrativo de um conceito de incapacidade que abarque os fatores não exclusivamente médicos.

De fato, já em 2002 a perícia médica oficial do INSS trazia uma conceituação administrativa de incapacidade e invalidez valorando os aspectos biopsicossociais, pois se reportava à impossibilidade de desempenho das funções específicas de uma atividade ou ocupação em consequência de alterações morfopsicofisiológicas provocadas por doença ou acidente.

Desde aquela época já se concebia a ideia de incapacidade geral de ganho, em consequência de doença ou acidente.

Justamente da conceituação oficial do INSS pinçam-se dois elementos a somar com os doutrinários já elencados: 1) a incapacidade como consequência de alterações morfopsicofisiológicas, e 2) a incapacidade de ganho.

A formulação destes conceitos administrativos revela o avanço no trato da questão, mas não espelha o alargamento do conceito de incapacidade que se tem hoje.

Ciente da existência e aplicabilidade na prática do critério biopsicossocial de incapacidade é imperioso e instigante analisar e propor uma base teórica, com pilares firmes no âmbito jurídico para essa forma de interpretação.

 

2. Incapacidade biopsicossocial no direito previdenciário

Conforme mencionado introdutoriamente, houve crescimento na concessão de aposentadorias por invalidez nos últimos anos, notadamente na via judicial. E paralelo a esse crescimento reformas constitucionais e legislativas em matéria previdenciária enrijeceram os requisitos das aposentadorias eminentemente contributivas.

Agrega-se um quadro de diversos problemas sociais, como a precarização das relações de trabalho, a informalidade, a precariedade da assistência à saúde e altos índices de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, as chamadas doenças ocupacionais.

Esse quadro delineou mudança significativa no conceito jurídico e na contingência decorrente da incapacidade laborativa. Interessante observar que o fenômeno abrange e impacta os direitos previdenciário, do trabalho e constitucional, além de também ser norteado pela medicina do trabalho, o direito assistencial e a sociologia.

Por essas razões que surgiram os aspectos controvertidos sobre o que é incapacidade laborativa na sociedade atual e o tratamento jurídico que se deve dar para esse fato social. E aqui a análise parte da observação do argumento médico-administrativo e judicial. Houve mudança sobremodo positiva nas avaliações médico-periciais da autarquia gestora nos últimos cinco anos. É preciso avançar, mas muitos dos fatos e idéias aqui lançados surgiram da prática e da observação trabalhando diretamente com a matéria.

2.1. A hipótese das causas supralegais de concessão de aposentadoria por invalidez e as primeiras reflexões sobre a incapacidade social

Na medida em que se foi evoluindo nos números de concessão, com o acentuado aumento das ações previdenciárias nos juizados federais e se observando a situação de vulnerabilidade social do trabalhador brasileiro – muito em decorrência da precariedade dos serviços de saúde – é que se começou a pensar a idéia de buscar critérios científicos, mais técnicos, para uma nova conceituação de incapacidade laborativa.

Essa concepção deve estar adaptada aos dias atuais e se projetar no futuro, mantendo-se maleável para que reflita a realidade social. Nesse aspecto se espera que o Brasil evolua muito nas condições de trabalho e renda nos próximos anos, com efeito em todos os indicadores.

Iniciando a reflexão sobre o tema, a primeira hipótese levantada com base no que vinha se observando na jurisprudência e cotidianamente na atuação processual traduziu-se no seguinte questionamento: é possível conceituar fatores biopsicossociais como causas supralegais de concessão de aposentadoria por invalidez? Ou o próprio conceito de incapacidade é aberto a concepções sociológicas afora as conclusões médicas de natureza técnico-pericial?

Tal foi o mote para o início do presente artigo. Porém, logo se percebeu que a definição de incapacidade laborativa parte de uma legislação de tipos abertos.

A concessão do benefício por invalidez, portanto, assume nítido caráter social, até mesmo para fins de distribuição de renda, de modo que acaba atuando como substitutivo dos benefícios de natureza contributiva ou assistencial.

Nestes casos a interpretação proposta funciona quando não há suporte fático que permita o enquadramento nos tradicionais benefícios contributivos decorrentes de um histórico de labor, e também quando não há vulnerabilidade social extrema ao ponto de se demandar a atuação do Estado pela assistência pura e simples.

Assim, superou-se a abordagem do critério biopsicossocial como causa supralegal, para a compreensão da problemática como fenômeno hermenêutico e conceitual.

Nessa linha de raciocínio, os fatores socioeconômicos e culturais do indivíduo passam a ser inseridos no conceito de incapacidade, impondo-se que os órgãos administrativos adotem uma visão mais ampla, inclusive a chamada incapacidade social.

Ao relevar aspectos biopsicossociais do indivíduo, a Administração deve considerar que atualmente essa interpretação é causa determinante para o aumento na concessão de aposentadoria por invalidez na via judicial, justamente pela adoção dos critérios flexibilizadores ora analisados.

Trata-se de uma realidade para a qual a Administração não pode fechar os olhos sob pena de não só manter elevados os índices de concessão judicial do benefício como vê-los maximizados.

2.2. Evolução doutrinária e jurisprudencial do critério biopsicossocial de incapacidade

Na caracterização da incapacidade laborativa devem ser considerados conjuntamente os critérios físicos, psíquicos e sociais do segurado, tais como:

a) a idade

b) o tipo de incapacidade

c) o nível de escolaridade

d) a profissão

e) o agravamento que a atividade pode causar para a doença

f) a possibilidade de acesso a tratamento adequado

g) o risco que a permanência na atividade pode ocasionar para si e para terceiros

h) o tempo de permanência em benefício concedido administrativamente

i) fatores outros, considerando que a listagem não é exaustiva e devem sempre ser analisadas criteriosamente as condições pessoais, histórico laboral e características do segurado.

Anote-se que a eficiência administrativa não pode conviver com atendimentos massificados, num viés desorganizado e ultrapassado de serviço público.

Cabe ao administrador, como intérprete primeiro da legislação previdenciária e da Constituição – e membro da comunidade de intérpretes no dizer de Peter Habërle – estar preparado para exercer seu múnus público com segurança e independência, a fim de atingir o fim específico da proteção previdenciária que é a cobertura efetiva da situação de risco social, em respeito ao princípio da seletividade.

Considerando que os fatores descritos acima não estão expressos na legislação previdenciária, é tarefa dos operadores o exercício de interpretação ora proposto.

A pesquisa na busca de elementos fundantes para a aplicação do critério biopsicossocial surpreende pelo ineditismo do tema nas obras da área.

Há um discreto debate doutrinário, jurisprudencial e no âmbito administrativo sobre os benefícios por incapacidade, suas causas e impactos no sentido amplo. Porém, ao que parece os juristas evitam o tema espinhoso com receio de se imiscuir em matéria técnica da medicina.

Essa renitência deve ser superada. O estudo mais aprofundado de direito público torna claro que a incapacidade biopsicossocial encontra fundamentação no moderno direito constitucional e previdenciário.

Nesse sentido, a análise da jurisprudência previdenciária brasileira, muito desenvolvida com o advento dos Juizados Especiais Federais Previdenciários, é pedra de toque para a verificação dos critérios e interpretações ora defendidas, pois tem sido o mote para a concessão de milhares de benefícios, notadamente através da conciliação. E aqui cabe uma observação interessante. A pesquisa jurisprudencial revela que não há fundamentação doutrinária para a adoção do critério biopsicossocial de incapacidade funcional. Observa-se que os julgados aplicam o entendimento, mas não fundamentam em doutrina ou jurisprudência precursora, utilizando-se dos permissivos legais que autorizam a fundamentação concisa quando no rito dos juizados.

Assim, o que se verifica é que há uma linha interpretativa sendo largamente aplicada sem respaldo mais técnico, como se o conceito de incapacidade laborativa biopsicossocial adotado pela Organização Mundial de Saúde – OMS e pela perícia médica do INSS estivesse sendo aplicado por consenso implícito, sem fundamentação jurídica nos processos judiciais.

Já no âmbito administrativo a discussão se circunscreve no setor de perícias médicas da autarquia, sendo necessário um treinamento mais qualificado para os servidores atendentes no sentido de interpretação da Constituição e da legislação.

Portanto, serve o presente para suscitar o debate sobre a matéria, para que se tenha clara uma política de concessão discutida amplamente por toda a sociedade, notadamente os representantes dos poderes.

2.2.1. Pressupostos constitucionais sobre a interpretação da incapacidade laborativa para fins previdenciários

“Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle” DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, art. XXV.1

A tese de admissão de causas sociais e pessoais como aptas para embasar a concessão de um benefício de aposentadoria por invalidez tem fundamento de validade na interpretação constitucional moderna.

Há teorias na sociologia e no direito constitucional a embasar esse proceder.

Adentrando na seara constitucional, o que se vê é que o pós-positivismo de RONALD DWORKIN e HABERMAS traz ínsita a idéia de Estado interpretador e executor dos princípios e fundamentos constitucionais.

Na obra Império do Direito, DWORKIN conclama os juristas a refletir a respeito da interação existente entre o objeto da interpretação e a finalidade com a qual ela é realizada. O autor destaca que o intérprete tenta tornar um objeto o melhor possível e que o direito, como uma prática social, requer uma forma peculiar de interpretação que se assemelha a interpretação artística. A esta interpretação atribui a designação de interpretação criativa. Nesse sentido, afirma que a interpretação centra-se não nas causas, mas nos propósitos do intérprete.

Trazendo a proposta do autor para o caso concreto, reputa-se que a concessão de um benefício previdenciário e a apreciação de qualquer processo demanda interpretação constitucional concreta e individualizada. Assim, ainda que pareça utópico imaginar esse grau de aprofundamento e interpretação da Administração no Brasil, crê-se que a evolução qualitativa na prestação do serviço público certamente permitirá análises muito mais aprofundadas, casuísticas e finalísticas com os objetivos constitucionais.

Aliás, essa parece ser a tônica para a formação da “comunidade aberta de intérpretes da Constituição” como preconiza Peter Habërle.

E especificamente em relação a incapacidade biopsicossocial no direito previdenciário, a pesquisa jurisprudencial evidencia a aplicabilidade da idéia ora defendida, embora se trate de matéria nova e controversa.

Consequentemente, ganha relevo um excelente referencial interpretativo de RONALD DWORKIN, que é a teoria do direito como integridade, na busca da “única resposta possível” para um não aparente hard case. Não aparente porque um dos grandes problemas na implementação dos direitos, seja pela via administrativa ou judicial, é a massificação na análise dos casos, decorrente também da falta de estrutura. Isso prejudica sobejamente a interpretação das normas aplicáveis, levando muitas vezes à tão só subsunção da norma no suporte fático. O que vai de encontro ao que ora se busca, que é a interpretação.

A propósito, justamente a falta de estrutura do Poder Executivo é que levou à judicialização dos processos previdenciários, e é por essa razão que a teoria de DWORKIN é pertinente, já que está calcada também no argumento judicial.

Como se disse, está-se diante de um hard case não aparente, mas ainda que não o fosse, cabe salientar que não é apenas nos casos difíceis que o juiz interpreta as normas. Qualificar um caso como fácil ou difícil, ou uma norma como clara ou obscura, já é uma atividade de interpretação.

DWORKIN aborda a semelhança do direito com a literatura quando apresenta a parábola do romance em cadeia, em que se afirma que decidir casos controversos é semelhante ao ato de escrever um romance. Neste exercício literário um grupo de escritores é contratado para escrever um romance, sendo que cada capítulo tem um autor diferente. Para que o livro conserve a coerência, a partir do segundo capítulo cada romancista deve interpretar o texto já escrito para produzir a melhor continuação possível.

Há inequívoca semelhança com o processo interpretativo operado na jurisprudência. Cada operador do direito se depara com um sistema pré-constituído por normas e por interpretações jurisprudenciais, os paradigmas, tidos como consensos condicionadores do debate e da interpretação.

A jurisprudência consolidada em diferentes momentos e proveniente de diferentes juízos e tribunais incorpora-se ao sistema jurídico, produzindo na comunidade a expectativa de que, em casos semelhantes, a decisão será guiada pelas mesmas razões de decidir.

Assim, refutar os paradigmas jurídicos consensuais provoca fortes suspeitas sobre a adequação da interpretação e o proponente corre o risco de ser considerado arbitrário, alternativista ou ignorante, ao menos que a divergência seja apontada e adequadamente fundamentada.

Hoje, como se verá doravante na análise de julgados, o critério biopsicossocial de incapacidade é amplamente adotado na jurisprudência brasileira e em muitos casos no processo administrativo.

Sem dúvida essa interpretação se disseminou entre a população, gerando fundada expectativa de que a administração previdenciária adote postura uniforme. Tal não ocorre, como bem salientou MARTINEZ na transcrição de sua obra disposta no primeiro capítulo deste artigo; o que se vê cotidianamente é a concessão de aposentadoria por invalidez para segurados tidos como aptos pela sociedade em geral e o indeferimento para segurados funcionalmente inválidos no seu meio.

A manutenção dessas distorções provoca revolta no segurado administrado e reflexo direto no questionamento quanto à conduta ética da Administração.

Como se vê, a hermenêutica constitucional é fundamento necessário para a análise do conteúdo jurídico da invalidez, a fim de retirar-lhe o elemento da indeterminação.

2.2.2. Aspectos doutrinários sobre invalidez e condições pessoais do segurado

Fundamentos hermenêuticos e principiológicos autorizam a utilização do critério biopsicossocial de incapacidade.

Para não alargar o âmbito de análise doutrinária deste artigo, se reputa importante abordar especificamente o requisito legal da invalidez com pressuposto nas condições pessoais do segurado.

Ínsita à idéia de adoção do critério em estudo está a noção de contingência, para os quais a doutrina fornece subsídios importantes.

WLADIMIR NOVAES MARTINEZ, ao tratar da finalidade da previdência social, não hesita em concebê-la como “técnica de proteção social propiciadora dos meios indispensáveis à manutenção do indivíduo quanto este não pode obtê-los ou não é socialmente desejável auferi-los pessoalmente mediante o trabalho” (grifo nosso). Lembra o doutrinador, ainda, que a previdência visa à manutenção dos meios, e não a mera subsistência, que é objeto da assistência social.

FEIJÓ COIMBRA, ao tratar dos fundamentos da relação jurídica assistencial, especialmente o risco e o sinistro, assinala:

Risco é o evento futuro e incerto, cuja verificação independe da vontade do segurado.

[…]

O leque de atividades de amparo do Estado tornou-se mais amplo e abrangeu, em breve, certos eventos de que o seguro privado não cogitara, convencionando-se denominar seu conjunto de riscos sociais. Até mesmo alguns acontecimentos que, por sua índole, dificilmente poderiam ser assim qualificados, tais como o casamento, o nascimento de filhos e outros, foram incluídos no elenco desses riscos, tendo em vista as consequências que determinam na economia frágil do trabalhador. Desse modo, no conjunto dos riscos visados pelas medidas protetoras do Estado, passaram a integrar-se: os riscos derivados do meio físico, os oriundos de deficiências orgânicas do segurado e os decorrentes da flutuação da economia. […] Há ainda aí, por extensão, a incapacidade de ganho: a incapacidade de ganhar, pelo trabalho, o bastante para o sustento do núcleo familiar.

Como se vê, o aspecto socioeconômico sempre esteve presente como contingência. Advirta-se, contudo, que no ordenamento jurídico brasileiro a Constituição não separa ou superdimensiona as contingências imprevisíveis das programáveis, o que permite concluir que não há priorização por espécie, mesmo porque se trata de fator mutável.

O certo é que a sociedade, por seus agentes políticos, deve eleger as contingências sociais que entenda necessário proteger em determinado momento histórico.

Tendo como pressuposto que a invalidez é um conceito jurídico indeterminado, cabe aos intérpretes preencher esse espaço. A esse respeito, inicialmente deve-se salientar a discordância com a afirmação de alguns autores, como FÁBIO ZAMBITTE IBRAHIM, quando afirma equivocada a formulação usualmente utilizada de “invalidez permanente ou temporária”, pois a temporária seria verdadeira contradição, enquanto a permanente uma expressão redundante.

A literalidade do conceito de invalidez não traz ínsito o critério da permanência ou da totalidade da incapacidade, mas sim uma moldura, um “estado da pessoa”, que deve ser interpretado de acordo com múltiplos fatores políticos e socioeconômicos. Afinal, como afirma ARAGONÉS, a idéia da superação de um estado de necessidade por meio do esforço coletivo foi o que impulsionou os primeiros esquemas de proteção social.”

A consequência dessa zona gris no conceito de invalidez é que os requisitos da incapacidade laboral e insuscetibilidade de recuperação são genéricos, difusos e subjetivos, demandando a depuração dos seus elementos constitutivos.

Nesse raciocínio depuraram-se quatro elementos a partir da doutrina e do regulamento administrativo que agora ganham relevo:

1) perspectiva de reabilitação do segurado;

2) dificuldade de caracterização da incapacidade funcional como fato gerador de litígios administrativos e judiciais;

3) incapacidade como consequência de alterações morfopsicofisiológicas, e;

4) incapacidade de ganho.

A incapacidade biopsicossocial perpassa cada um desses elementos, e a doutrina deixa clara essa conclusão. Veja-se.

MIGUEL HORVATH JÚNIOR enfrenta bem o tormentoso tema da amplitude da incapacidade:

Para a imensa maioria das situações, a Previdência trabalha apenas com a definição apresentada, entendendo ‘impossibilidade’ como incapacidade para atingir a média de rendimento alcançada em condições normais pelos trabalhadores da categoria da pessoa examinada. Na avaliação da incapacidade laborativa, é necessário ter sempre em mente que o ponto de referência e a base de comparação devem ser as condições daquele próprio examinado enquanto trabalhava, e nunca os da média da coletividade operária. A razão essencial para se conceder qualquer benefício é o beneficiário estar em estado de necessidade social […] Problema tormentoso é o estabelecimento do nível de perda da capacidade laboral que acarreta a concessão de aposentadoria por invalidez.

Em seguida, ao tratar especificamente do conceito de invalidez previdenciária, o autor conclui que para o pronunciamento médico-pericial é imprescindível considerar, dentre outros elementos, o tipo de atividade ou profissão e suas exigências; o grau de deficiência ou disfunção; a indicação ou necessidade de proteção do segurado doente, por exemplo, contra re-exposições ocupacionais; a idade e escolaridade do segurado; a suscetibilidade ou potencial de reabilitação; o mercado de trabalho e outros fatores exógenos. O mesmo estudioso ainda destaca:

Não se deve entender o evento gerador da aposentadoria por invalidez, a incapacidade absoluta, total e completa do segurado. O sistema não exige o estado vegetativo laboral para a concessão deste benefício. […] se a lei não exige, é possível que ele possa exercitar a capacidade residual, de forma a obter uma complementação de seu sustento. Lembremo-nos que o sistema previdenciário é básico de cobertura e que a instalação da incapacidade reduz drasticamente o nível de vida do segurado que percebia remuneração superior ao teto máximo de pagamento.

Como se vê, o autor admite inclusive a coexistência da invalidez técnica com a capacidade residual, numa visão realista dos fatos. Afinal, como afirma FEIJÓ COIMBRA ao tratar do elemento material da regra jurídica de proteção, está embutido no conceito de capacidade laborativa, também, a aptidão moral que permita realizar o trabalho”, como forma de erigir a proteção estatal contra o estado de subemprego.

Não é crível esperar que o trabalhador vá observar inerte a queda brusca no padrão de vida do núcleo familiar, razão pela qual não raro se vê obrigado a trabalhar para complementar os rendimentos mesmo estando aposentado por invalidez. Trata-se de problema social ligado à renda e não especificamente à previdência.

Nesse sentido ARAGONÉS aborda a necessária individualização na análise da incapacidade:

A aferição da incapacidade deve ser apurada em cada caso concreto, jamais em relação ao “segurado médio”. O benefício não exige a incapacidade total absoluta, mas aquela que impede a continuidade do trabalho realizado pelo segurado em exame.

Com essa interpretação se vê que a incapacidade para a profissão desempenhada ou correlata autoriza a concessão do benefício, sendo irrelevante se posteriormente o segurado venha a exercer, por necessidade, atividade informal ou subemprego. Mesmo nessa situação os fatores que determinaram a caracterização da incapacidade para fins de benefício se mantêm, ou seja, ainda há necessidade de proteção estatal.

DANIEL MACHADO DA ROCHA e JOSÉ PAULO BALTAZAR JUNIOR abordam o tema:

As condições pessoais do segurado reclamam uma análise cuidadosa que não deve descuidar-se de sua idade, aptidões, grau de instrução, limitações físicas que irão acompanhá-lo dali para frente, bem como a diminuição do nível de renda que a nova profissão poderá acarretar. 

MARINA VASQUES DUARTE acompanha os autores, fazendo remissão à jurisprudência do TRF da 4ª região, no sentido de que não é óbice ao deferimento do benefício o exercício de subemprego pelo segurado enquanto aguarda definição da autarquia acerca da prestação, pois não seria razoável exigir-se outra conduta daquele que vê sua única fonte de sustento suprimida.

Mas adiante, ao tratar da submissão do segurado aos exames de revisão bienal, a autora enfoca a análise judicial:

Aqui também deve ser avaliado pelo juízo as condições pessoais do beneficiário. Se ele esteve em gozo desta aposentadoria por longo tempo e já possui idade avançada, seu retorno ao mercado de trabalho torna-se impossível, razão por que deve ser mantido o benefício. 

Essa observação acerca da revisão administrativa por que passam os benefícios por incapacidade é oportuna e a análise crítica abordará o tema. É que a retomada legislativa de um limite etário para as revisões da aposentadoria por invalidez parece pertinente ao se admitir a adoção da incapacidade biopsicossocial. A reabilitação do beneficiário idoso raramente é factível, razão pela qual se questiona sujeitá-lo às eternas revisões administrativas.

Não se poderia concluir a análise doutrinária deste estudo sem mencionar um dos poucos livros a tratar do tema, que é A aposentadoria por invalidez no direito positivo brasileiro, de DANIEL PULINO.

A obra analisa a hipótese de incidência da norma jurídica geral e abstrata da aposentadoria em estudo, fixando o conceito técnico de invalidez a partir da definição da substancial incapacidade.

O autor reconhece que conceituar a invalidez não é apenas o ponto crucial do benefício em exame, mas uma das questões mais complexas de todo o direito previdenciário. Mesmo assim, não se furta de depurar os dois elementos que formam o núcleo do conceito jurídico de invalidez; a substancialidade e a permanência da incapacidade.

A substancial incapacidade revela a impossibilidade de ganho que nos termos da lei garanta a subsistência do trabalhador, no sentido de que a perda ou diminuição de rendas que abata, substancialmente, o orçamento familiar pode e deve ser considerada necessidade social apta a permitir a outorga de aposentadoria por invalidez.

A evolução do tema na visão do autor deve começar pela característica da contributividade do sistema. Desse modo, se o segurado sempre trabalhou e contribuiu com base no teto de contribuição, é inviável exigir-se que passe a trabalhar em atividade que lhe permita contribuição tão somente no valor mínimo.

Da análise do texto pode se verificar indiretamente a incidência do princípio da proibição do retrocesso social, em voga numa série de questões recentemente analisadas pelo Supremo Tribunal Federal. É inequívoca a aplicação do postulado no tema ora defendido.

Oportuno ressaltar as conclusões da obra sobre as condições pessoais do segurado como fatores aptos a compor o juízo complexo sobre a constatação da incapacidade laborativa caracterizável como invalidez previdenciária:

A aferição da invalidez não se resume, portanto, numa comprovação de ordem exclusivamente médica – embora esta seja uma condição necessária para a edição do ato de concessão do benefício –, compreendendo um juízo complexo, em que se deve avaliar a concreta possibilidade de o segurado conseguir retirar do próprio trabalho renda suficiente para manter sua subsistência em patamares, senão iguais, ao menos compatíveis com aqueles que apresentavam antes de sua incapacitação, e que foram objetivamente levados em consideração no momento de quantificação das suas contribuições para o sistema – dentro, sempre, dos limites de cobertura do regime geral de previdência social.

Como se vê, o ato médico-pericial deve se amparar não somente na avaliação clínica, mas também na repercussão do estado clínico – físico e psicológico – do segurado sobre a sua capacidade de trabalho em atividade que lhe possibilite determinado nível de subsistência, o que tecnicamente se denomina capacidade de ganho.

Portanto não há como deixar de se levar em conta aspectos relativos à escolaridade, formação profissional (aqui compreendidas a específica e as experiências de trabalho que possam ser aproveitadas para nova atividade), idade, perspectiva de reabilitação, e até certo ponto, as dificuldades que serão encontradas no mercado de trabalho.

Por fim, não há como negar as consequências da adoção da incapacidade biopsicossocial em relação à população atingida, ou seja, de acordo com o princípio da seletividade, pois a partir desta abordagem a definição de incapacidade se dará pela maior probabilidade de ocorrer a contingência social invalidez em determinados grupos. O perfil dos segurados será determinante para maior gerenciamento das políticas públicas na medida em que se puder mensurar quando e porquê determinada camada da população foi atingida precocemente pela incapacidade de ganho.

Como se vê, em que pese a tímida contribuição doutrinária, a incapacidade biopsicossocial tem base teórica robusta, passível de maior aprofundamento, reconheça-se.

2.2.3. Análise jurisprudencial qualitativa

A adoção do critério biopsicossocial de incapacidade é uma realidade na jurisprudência brasileira nos tribunais regionais federais, tribunais de justiça e nas turmas recursais dos juizados especiais federais de todos os estados.

Assim, optou-se por analisar arestos das duas cortes mais importantes atualmente em matéria de direito previdenciário, que são o Superior Tribunal de Justiça – STJ e a Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais – TNU, representativos das idéias e conceitos ora trabalhados.

A evolução jurisprudencial da matéria é muito peculiar.

Inicialmente a incapacidade biopsicossocial era abordada e considerada quase que exclusivamente na matéria acidentária, portanto em julgados esparsos da justiça estadual. Não havia jurisprudência que se pudesse dizer dominante ou representativa. Até mesmo em razão das espécies de prestação por incapacidade não alcançarem em passado recente os índices de concessão atuais.

Consequentemente era muito incipiente o debate no foro federal porque, como já se disse, não havia a atual enxurrada de ações ajuizadas nos JEFs.

De fato, o STJ e a TNU recentemente passaram a adotar a tese em análise. A questão não está pacificada no STJ, mas na TNU o posicionamento é reiterado.

O efeito processual é que muitos pedidos de uniformização de jurisprudência interpostos na TNU com base em divergência com o STJ não estão sendo mais conhecidos, porque a matéria não é mais pacífica na corte superior.

Deve se salientar que a TNU é um órgão colegiado de composição variável, integrado por dez juízes federais, sendo dois de cada região judiciária, com mandato de dois anos, vedada a recondução. Nesse formato é possível imprimir maior dinâmica na jurisprudência, um fator interessante e diferenciado no panorama das cortes brasileiras.

Lembra-se mais uma vez que dado ao ineditismo da matéria na doutrina, não se encontrou na pesquisa fundamentação específica sobre a adoção do critério em estudo. Como se vê nos trechos de acórdãos a seguir, a incapacidade biopsicossocial é um consenso fundado nos princípios constitucionais explícitos e implícitos e em legislação aplicada por analogia.

O primeiro julgado da TNU encontrado na pesquisa, de 2008, já apontava o uso desse método analógico de resolução de conflitos. Naquela ocasião o colegiado fundamentou o acórdão em legislação específica para pessoas com impedimentos, apoiando o exercício de analogia no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Anote-se que o tratamento dado à legislação é tido como aplicável à incapacidade em geral, sem distinguir a invalidez funcional da deficiência.

Mais recentemente a TNU assim se posicionou:

APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. LAUDO MÉDICO QUE INDICA CAPACIDADE TEMPORÁRIA. CARACTERES SOCIOCULTURAIS DO SEGURADO QUE CONDUZEM À CONCLUSÃO PELA INCAPACIDADE PERMANENTE. PARADIGMAS JUNTADOS. SIMILITUDE FÁTICA. CONHECIMENTO DO INCIDENTE, NESSA PARTE. CASO DOS AUTOS. AVALIAÇÃO JUDICIAL QUE DESCONSIDEROU FATORES SOCIAIS E PESSOAIS RELATIVOS À IDADE AVANÇADA. DIVERGÊNCIA INSTAURADA. PRECEDENTES DESTA TNUJEF’’s. PROVIMENTO.

[…]

II. Afirmando os acórdãos paradigmas que, na aferição da incapacidade laboral para fins de concessão de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, é permitido ao julgador levar em consideração aspectos sócio-culturais do segurado, estes normalmente associados à sua idade avançada, e, havendo o aresto recorrido, no caso específico, desconsiderado tal circunstância, é de rigor o reconhecimento de similitude fática.

III. Em sendo o entendimento desta TNUJEF’s no sentido de autorizar ao julgador, no processo de formação da sua convicção quanto à incapacidade laboral do segurado, somar às razões médicas considerações sobre as condições pessoais e sociais do segurado e, havendo a questão sido pontualmente enfrentada pelo aresto recorrido, há de ser provido o recurso, nesse ponto.

IV. Pedido de uniformização conhecido, em parte, e provido, nessa parte.

No acórdão deste julgado se verifica a divergência e se extrai a referência ao posicionamento mais recente do STJ sobre a matéria. De fato, o Tribunal adotava posição legalista e fechada, com interpretação literal acerca do requisito da incapacidade laborativa pela egrégia 3ª Seção, composta pela 5ª e pela 6ª Turmas.

Ocorre que não há mais jurisprudência dominante sobre essa questão de direito material. Nesse sentido, a 5ª Turma do STJ evoluiu, passando a entender que, ainda que sob o ponto de vista médico a incapacidade seja parcial, há direito à concessão de aposentadoria por invalidez se as condições pessoais forem desfavoráveis, conforme o acórdão do REsp nº 965.597/PE. Neste Recurso Especial o relator observa que em matéria previdenciária deve haver uma flexibilização na aplicação das leis, pelo que entendo ser necessário, para a concessão de aposentadoria por invalidez, considerar outros aspectos relevantes, além dos elencados no art. 42 da Lei 8.213/91, tais como, a condição sócio-econômica, profissional e cultural do segurado.

Voltando ao âmbito da TNU, mais um acórdão demonstra a necessidade de tratamento individualizado para a questão da invalidez funcional, ao afirmar que “a incapacidade para o desempenho de uma atividade profissional deve ser avaliada sob os pontos de vista médico e social, mediante análise das condições socioeconômicas do segurado.”

Como se observa, a incapacidade biopsicossocial está se firmando no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e já soa como matéria pacificada na Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais.

É interessante observar as nuances regionais, considerando as desigualdades entre cada parte do país. Ressalte-se que já na década de 80 havia julgados precursores na justiça estadual em matéria acidentária adotando o critério de incapacidade biopsicossocial. Todavia, a análise qualitativa que se propõe pretende ser atual, na medida em que somente nos últimos anos a questão ganhou relevo nos foros federais e no âmbito administrativo.

A partir da constatação de que a incapacidade biopsicossocial vem sendo reiteradamente reconhecida como critério jurídico apto para a concessão de aposentadoria por invalidez, abre-se espaço para reflexão e estudo dessa postura, lembrando que a instigação e a proposição de debate mais aprofundado também é uma meta deste artigo.

3. Análise crítica

O que se viu até agora é que a adoção do critério biopsicossocial é realidade na conduta administrativa e sobejamente na jurisprudência brasileira.

Mas esse proceder não está imune a críticas, certo que ostenta aspectos positivos, negativos e indagações.

Isso porque o principal fundamento no plano social para a mudança paradigmática na interpretação sobre invalidez reside em fatos como a precarização e a falta de segurança nas relações de trabalho, o aumento das doenças ocupacionais, a má qualidade do serviço de saúde pública e, por consequência, o aumento na concessão de benefícios por incapacidade. Concorrendo com esses fatores tem-se um aumento da expectativa de vida da população.

Também é possível verificar outras causas, como a oferta de trabalho, a qualificação, a idade, a função anteriormente exercida, bem como qualquer característica peculiar do segurado, seja médica ou circunstância pessoal, que autorize classificar o indivíduo como inapto para o labor, e, consequentemente fundamentar a concessão do benefício, tido aqui com um viés mais social.

É consenso que se pode correlacionar as causas sociais e a progressão na concessão dos benefícios por incapacidade em detrimento das espécies contributivas, tratando especificamente das aposentadorias.

O que importa verificar é se realmente é correta a utilização de um benefício de risco em substituição aos benefícios contributivos para resolução de problemas sociais. Questão essa, a propósito, também debatida nos benefícios rurais não contributivos.

Também é pertinente questionar qual o impacto que essa política de concessão terá no equilíbrio atuarial da previdência, quando tenta harmonizar os rígidos requisitos legais do benefício de invalidez com a realidade da população, em relação à saúde e trabalho.

A análise crítica dessas indagações pende para ambos os lados. Considerando que a aposentadoria por invalidez é benefício que tutela um risco social específico, no caso uma contingência incerta ligada à doença, parece evidente que a prestação não se coaduna com a cobertura de eventos relacionados à idade, grau de instrução, perspectiva de reinserção no mercado de trabalho, etc. Afinal, é justamente por causa do risco imprevisível e da presença do elemento sinistro que a espécie tem carência reduzida de 12 contribuições, não se a exigindo nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa, ou ainda se o segurado é portador de doenças específicas.

É questionável a quebra da base de custeio se o cidadão filia-se já em idade avançada e assolado por todas as demais contingências sociais que se analisou. Então, ao contribuir minimamente, fará jus ao longo benefício de aposentação.

O fato é que hoje a lei permite essa situação, mas desde que respeitada a vedação da preexistência da incapacidade. Todavia, adotando-se a interpretação flexibilizadora, mesmo com diagnóstico clínico desfavorável à concessão, poderia ser concedido o benefício com base na incapacidade biopsicossocial.

Lembra-se que é comum o segurado em idade avançada receber alta médica porque tecnicamente não é incapaz para o labor. Afora esse aspecto, o segurado que permaneceu durante quase toda a vida laboral fora do regime geral pode se filiar tardiamente, e embora não tenha perspectiva de atingir a carência da aposentadoria por idade ou tempo de contribuição, facilmente preencherá os requisitos para a aposentadoria por invalidez.

Se toda a população de trabalhadores informais deixar para contribuir tardiamente e o fizer sob o limite máximo do salário-de-contribuição não há dúvidas de que haverá déficit. Ainda que o sistema seja solidário e equitativo na forma de participação no custeio, não significa que não deva ser superavitário, em atenção ao princípio específico do equilíbrio financeiro e atuarial.

Como sempre, vai se utilizar do critério da ponderação de interesses, ou melhor, dos princípios constitucionais da seguridade e da previdência, já que a seletividade impõe ao Estado eleger as maiores carências sociais.

Assim, se é certo que a pluralidade de fatores descritos acima está inequivocamente dificultando a implementação dos requisitos para as aposentadorias por idade e tempo de serviço/contribuição, e a própria manutenção dos trabalhadores no rol de segurados, deve se levar em conta o processo de resgate da cidadania, alcançando uma prestação mínima e universalizando a cobertura para quem necessita.

Por essas razões o fator positivo do critério biopsicossocial de invalidez é a inclusão social. Relevar as condições sociais do segurado é uma forma de flexibilizar a concessão do benefício e mitigar os efeitos nefastos dos problemas já citados, que estão dificultando o cidadão de se manter contribuindo para a Previdência Social de forma contínua e duradoura.

O negativo é a possibilidade de quebra da base de custeio e a estimulação de um movimento de massa tendente a não contribuir para a previdência até que advenha a contingência social, o que frustra a idéia de seguro.

Por outro lado, no âmbito judicial o grande problema é a atual massificação dos litígios, em que a facilidade de acesso à justiça paradoxalmente prejudica o jurisdicionado realmente incapaz. O fato é que hoje é banal ajuizar ação nos juizados especiais federais requerendo o restabelecimento de auxílio-doença ou concessão de aposentadoria por invalidez.

O volume de ações previdenciárias por incapacidade não representa atualmente um indicador de erro no ato administrativo médico-pericial. É possível afirmar sem medo que na maioria dos litígios de restabelecimento de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez a causa de pedir não é embasada em erro médico, mas sim no inconformismo com o mérito administrativo, consubstanciado na conclusão sobre a incapacidade laborativa. A atuação do Poder Judiciário nos casos de lide exclusiva sobre o requisito da incapacidade muitas vezes não é correção de ato administrativo, mas mera instância revisora da perícia.

Ainda não se elaborou estudo específico de impacto sobre a concessão judicial de auxílio-doença. Mas fica autorizada a crítica de que a atuação do Poder Judiciário nos benefícios por incapacidade pode caracterizar invasão de esfera de competência do Poder Executivo.

É questionável na evoluída concepção que se tem hoje de Administração Pública que o resultado do exame-médico pericial possa ser substituído por outro produzido judicialmente, seja por um perito também servidor público (o que não ocorre na Justiça Federal, em que toda a perícia é terceirizada), seja por um médico da confiança do juízo, que ao final será o verdadeiro “juiz” do processo. A invasão da esfera de competência de um poder por outro é nítida se considerarmos o resultado positivo ou negativo do exame da incapacidade como se mérito administrativo fosse.

Em ambos os casos as distorções: se a Justiça possui departamento médico-pericial, o que só ocorre no ramo estadual, a perícia revisora fica a cargo de perito remunerado pela Fazenda Pública, que tende a convergir com o resultado da perícia administrativa. Por outro lado, na Justiça Federal a perícia é toda realizada por peritos credenciados pelo juízo, o que acarreta graves distorções.

É fato que a realização do ato médico-pericial depende de profissional treinado especificamente para esse mister, e nesse aspecto o serviço médico-pericial do INSS está muito evoluído. Afora esse aspecto, não se olvide que a medicina do trabalho tecnicamente está apta para emitir juízo sobre capacidade laborativa em qualquer área de especialidade, sendo falacioso afirmar que somente o médico especialista na doença do segurado tem aptidão para diagnosticar invalidez. É importante salientar que qualquer médico treinado tecnicamente de acordo com os parâmetros da Organização Mundial de Saúde tem aptidão para a análise pericial da incapacidade, mormente no caso da biopsicossocial, em que os critérios médicos serão agregados às demais condições pessoais do segurado.

Portanto, a qualidade do ato médico pericial é problema grave na avaliação da incapacidade biopsicossocial no âmbito judicial.

Em passado recente, o Judiciário corrigia os erros do processo concessório, na maioria das vezes em processos de averbação de tempo rural e outras controvérsias relativas ao reconhecimento ou contagem de tempo de serviço. Era uma espécie de controle externo da administração.

Atualmente, o risco é que o Judiciário acabe excedendo suas atribuições, ao invés de exercer o necessário papel de correção de erro administrativo nos benefícios por incapacidade, quando presente a ilegalidade. É ingênuo pensar que cada benefício indeferido por perícia contrária, e judicializado, corresponda a erro do ato médico pericial.

O que se formou, notadamente nos Juizados Especiais Federais, é um sistema paralelo de concessão de benefícios por incapacidade.

E não se trata aqui de crítica ao Poder Judiciário, pois o próprio juiz acaba refém do processo e do laudo pericial, que muitas vezes acaba sendo o único fator determinante na concessão.

Daí a proposição do articulista, fundada na evolução do trato dessas questões no Brasil, no sentido de que no futuro o Judiciário só analise questões de direito nos benefícios por incapacidade, como a qualidade de segurado, carência, preexistência da incapacidade e renda familiar, sob pena de transmudar-se em mero órgão concessor de benefício.

Importante fixar a premissa de que a proposta está fundada na eficiência do Estado e no ceticismo em relação à redução de demandas em benefício por incapacidade, já que tanto o ajuizamento como o recurso são gratuitos e não dependem de assistência de advogado. Assim, a atual intervenção do Poder Judiciário nos benefícios por incapacidade pode ser desvirtuada facilmente para uma aventura judicial em que a tentativa é livre, pois não há ônus.

A única ação administrativa tendente a diminuir a litigiosidade nessas espécies de prestações é o acompanhamento das perícias judiciais por assistente técnico da autarquia, ou seja, a própria perícia administrativa, ao acompanhar as perícias judiciais, faz um exercício de autotutela, em controle interno capaz de uniformizar procedimentos e entendimentos médico-periciais.

O efeito a médio e longo prazo é a redução de ações, na medida em que o INSS começa a vencer a maioria das causas, reprimindo o ajuizamento de demandas aventureiras.

É o que se observa no enfrentamento e trato cotidiano dessa questão assessorando administrativa e judicialmente o Instituto Nacional do Seguro Social.

Mesmo esse trabalho de atuação conjunta da autarquia e representantes judiciais nos processos não inibe um segundo problema na adoção do critério biopsicossocial pelo Judiciário: a subjetividade, quando abre caminho para o erro e o abuso de decisões judiciais.

Ao se ampliar o plexo de incidência fática do conceito jurídico de invalidez, tido como indeterminado, se permite ao juiz toda a série de interpretações, muitas vezes distorcidas.

A fragilidade nesses casos se revela pela indução do juízo em erro, pouca experiência do magistrado, pressão da comunidade, parcialidade, influência política no ato decisório e até mesmo a ausência de percepção dos impactos que uma interpretação jurídica pode causar na comunidade.

No afã de fazer caridade ou de ser um agente transformador na comunidade em que está inserido, o juiz pode entrar no caminho perigoso da banalização na concessão de benefícios, tornando-se facilmente manipulável pela comunidade jurídica. O in dubio pro misero, nesse caso, se transforma em arbítrio.

Não à toa, MARCELO LEONARDO TAVARES assinala:

Quanto à perícia, a presunção in dubio pro misero pode convencer o juiz, por exemplo, da continuidade de uma incapacidade, em caso em que o INSS tenha concedido benefício por algumas vezes, pelo mesmo motivo, de maneira intercalada, se o perito judicial, ao responder aos quesitos formulados, afirmar não poder informar, clinicamente, que tenha ocorrido a recuperação do segurado nos períodos de alta.

O que deve ser evitado, sob pena de se utilizar a presunção indevidamente, é fazer alusão a ela como uma forma fácil para não se adotar postura judicial compromissada com a solução justa da lide previdenciária a partir do exame detalhado das provas e da busca da verdade real. O Direito Processual Previdenciário deve proporcionar, com os dois princípios analisados, subsídios para a prolação de uma decisão que pacifique a questão relativa à fruição de um direito social fundamental e que tenha compromisso com o seguro, a fim de proteger adequadamente os beneficiários, sem onerar o grupo e a sociedade de forma indevida.

No mesmo sentido, vale destacar a opinião de MACHADO DA ROCHA e BALTAZAR JUNIOR:

Na ação judicial, não raro divergem o perito do Juízo e o assistente técnico da autarquia. Nesse caso, em princípio, deve prevalecer a conclusão do perito judicial, que está em posição equidistante do interesse das partes, ressalvada a hipótese de estarem as conclusões do assistente técnico melhor fundamentadas ou escudadas em outros elementos de prova, tais como exames laboratoriais.

Como se vê, a questão envolve dois âmbitos de atuação. O primeiro é administrativo, no sentido de melhorar a qualidade do ato concessório de benefício por incapacidade, com atendimento mais qualificado e humanizado, adotando-se o critério biopsicossocial com base em dados concretos coligidos no ato médico pericial e no bojo do processo administrativo.

O segundo passo é o rígido acompanhamento e controle das ações judiciais, para evitar o desvirtuamento da interpretação ora defendida, e buscando a padronização das interpretações administrativa e jurisprudencial.

A redução de demandas em benefícios por incapacidade vai ser consequência dessas ações.

Superados esses óbices, e tratando de equilíbrio atuarial, é necessário averiguar ainda se a adoção do critério biopsicossocial retira a característica não programável do benefício de aposentadoria por invalidez. Ora, na medida em que o benefício passa a ser substitutivo da aposentadoria por idade, por exemplo, a concessão passa a ser previsível, deixando de ser vinculada a um sinistro causador de incapacidade – doença ou acidente – para se tornar consequência da idade e dos fatores exógenos já relatados.

É um risco que está diretamente ligado à necessidade de ampliação da cobertura previdenciária e consequentemente da base de contribuintes.

Também é passível de reflexão a necessidade de revisão administrativa por que passam os benefícios por incapacidade. Nesse sentido, a retomada legislativa de um limite etário para as revisões da aposentadoria por invalidez parece pertinente ao se admitir a adoção da incapacidade biopsicossocial.

A situação do beneficiário idoso, por exemplo, dificilmente é reversível, sendo questionável a recuperação da capacidade nos termos do art. 47 da lei 8.213/91, para suspender aposentadoria por invalidez de beneficiário em idade incompatível com a reinserção no mercado de trabalho.

Mais uma vez MARTINEZ é lúcido ao tratar do retorno ao trabalho nessas condições:

O mais correto, porém, é o apreciador da situação louvar-se no bom senso e verificar se a remuneração auferida é ou não expressiva, a idade do segurado, suas condições de saúde se a volta se deu na mesma atividade ou função e o quanto os salários representam comparados com a prestação mensal.

Por outro lado, em relação aos segurados mais jovens o dado crítico é a possibilidade de deturpação do benefício para a função de seguro-desemprego, problema já enfrentado em comunidades com variação sazonal de oferta de trabalho.

Como se vê, não é tarefa fácil equacionar as questões previdenciárias, mas não há alternativa. O futuro da previdência reside justamente na capacidade de mutação do sistema para que se adapte à realidade.

Por isso é importante deixar claro que a adoção do critério biopsicossocial de incapacidade é dinâmica. A interpretação tem que ser maleável, adaptando-se à realidade socioeconômica e a evolução dos indicadores relacionados à saúde do trabalhador, níveis de desemprego, acesso ao Sistema Único de Saúde – SUS, dentre outros.

Conclusão

O presente artigo é um sucinto estudo sobre o requisito legal da incapacidade laborativa para fins de aposentadoria por invalidez no regime geral, com ênfase no critério biopsicossocial.

Buscou-se estabelecer métodos para definição de incapacidade funcional, sem adentrar na conceituação e análise médica da questão, que se deixa reservada para a ciência da medicina, especialmente o ramo do trabalho.

Aqui o que se perseguiu foi a definição de invalidez que, partindo dos conceitos médicos, agregasse critérios jurídicos, numa integração de institutos de direito previdenciário, trabalhista e constitucional.

Os dados analisados na pesquisa indicam uma relação entre o aumento das concessões de aposentadoria por invalidez, as mudanças legislativas em matéria previdenciária, e os problemas sociais que afetam a população, principalmente a de baixa renda composta por maioria de trabalhadores braçais.

Por essa razão se tornou importante traçar um panorama sobre o conceito e a interpretação da incapacidade laborativa que abarque já no âmbito administrativo o reconhecimento do critério biopsicossocial, sua aplicabilidade na prática, e os reflexos que poderá ocasionar.

O estudo revelou prematura a idéia de que fatores socioeconômicos e culturais se constituiriam em causas supralegais de aposentadoria, tendo a invalidez como fato gerador. De fato, não há que se falar em causas supralegais de concessão, mas sim reconhecer que o conceito moderno de incapacidade laborativa não se dissocia da realidade das relações de trabalho no Brasil, e deverá evoluir juntamente com essa realidade.

Não se pode formar operadores com o pensamento restrito à legalidade e ao direito posto, mas sim fomentar a crítica, o pensamento interdisciplinar, e a observação das transformações sociais. E nesse caso é preciso admitir que se está partindo de um problema social-previdenciário, sempre com um olho nas contas, relevando a necessidade de plena integração com os órgãos gestores do orçamento público e os estudos de impacto financeiro.

O sistema, além de superavitário, deve ser lastreado para o futuro, considerando a dinâmica das relações sociais e a lei positivada.

Toda e qualquer mudança no tratamento administrativo e judicial dessa questão deveria e deve ser precedida de estudo das implicações que essa prática poderá ocasionar no sistema previdenciário.

Todavia, independente do quanto se evolua nessa questão, o fato é que a aplicação do critério biopsicossocial de incapacidade laborativa para autorizar a concessão dos benefícios é uma realidade que poderá se modificar de acordo com o desenvolvimento socioeconômico do país.

O intérprete da legislação previdenciária deve sempre buscar formas de harmonizar a lei e as praxes administrativas no enfrentamento das questões sociais que envolvem a exclusão total ou parcial do trabalhador do sistema previdenciário tradicional de aposentação, que é o contributivo. Por isso entende-se plenamente justificado um estudo mais aprofundado sobre esse fenômeno social, em razão dos reflexos futuros.

Afinal, a previdência social brasileira foi e é o melhor instrumento de distribuição de renda do país e um dos mais eficientes do mundo. A avaliação da incapacidade laborativa na prática está vinculada com a possibilidade de reinserção do segurado no mercado de trabalho, o que se não for possível deverá acarretar a proteção estatal através do benefício.

Se o segurado já se encontra numa situação de vulnerabilidade social, notadamente pela idade, torna-se irrelevante o fato de ostentar uma incapacidade parcial ou temporária no aspecto clínico.

A possibilidade de reintegração desse indivíduo à vida laboral é muito difícil, e em alguns casos impossível, tudo a depender de uma análise individualizada da situação médica e social.

Afora esses dados não se pode esquecer que a concessão da prestação tem como beneficiário direto o segurado, mas indiretamente atinge toda a família desse cidadão, muitas vezes tirando-o de uma situação de extrema pobreza ou miséria para alçá-lo a patamar mais digno de cidadania.

Não raro significa tirar da rua e da criminalidade as crianças desse grupo. O núcleo familiar, dessa forma, pode obter maior proteção social com o benefício e demais programas assistenciais.

Somente com ações macro na área da saúde, assistência, educação e previdência se poderá reverter o quadro de exclusão que ainda prevalece no país.

Estudar ou defender a idéia ora posta representa justamente o rompimento desse paradigma de legalidade administrativa, para compatibilizá-lo com os princípios maiores de nossa constituição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, Hermes Arrais. Benefícios Previdenciários. São Paulo: Leud, 2009.

Anuário Estatístico da Previdência Social 2011, disponível em: http://www.mpas.gov.br/arquivos/office/1_121023-162858-947.pdf

BALERA, Wagner. Direito previdenciário. 9ª Ed. Método: São Paulo, 2012.

CARVALHO NETTO, Menelick de. “A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito”. In: Notícia do direito brasileiro. Nova série, nº 6. Brasília: Ed. UnB, 2º semestre de 1998.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. de Jefferson Luiz Camargo, São Paulo: Martins Fontes, 1999.

__________________ Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000

DUARTE, Marina Vasques. Direito Previdenciário. 7ª. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011.

FEIJÓ COIMBRA, J. R., Direito Previdenciário Brasileiro, 11ª edição, rev. e aum., Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 2001.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – entre facticidade e validade (I e II). Trad. de Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário. 4ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

IBRAHIM, Fábio Zambitte, Curso de Direito Previdenciário, Niterói/RJ, Ed. Impetus, 9ª ed. rev. e atual.

LAZZARI, João Batista; PEREIRA DE CASTRO, Carlos Alberto. Manual de Direito Previdenciário. São Paulo : Forense, 2013.

MARTINEZ, Wladimir Novaes. Comentários à lei básica da previdência social. Tomo II – Plano de Benefícios – Lei 8.213/91, São Paulo: LTr, 7ª ed., 2010.

__________________________ Curso de Direito Previdenciário, Tomo II, Previdência Social. 4ª Ed. São Paulo, LTR, 2011.

MARTINS, Sérgio Pinto. Fundamentos do direito da seguridade social. 14ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

PULINO, Daniel. A aposentadoria por invalidez no direito positivo brasileiro. São Paulo: LTr, 2001.

ROCHA, Daniel Machado da, BALTAZAR JUNIOR, JOSÉ P. Comentários à lei de benefícios da previdência social. 10ª. ed. rev. e atual., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011

ROCHA, Daniel Machado, Resolvendo questões difíceis que envolvem o exame da qualidade de segurado e da carência, Revista da AJUFERGS, 2005.

RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis da Previdência Social. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.

TAVARES, Marcelo Leonardo, Direito Previdenciário, 14ª ed. rev. e atual., Niterói/RJ: Impetus, 2012.

VIANNA, João Ernesto Aragonés. Curso de Direito Previdenciário. São Paulo: LTr, 2011.