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Inconstitucionalidade da aleatoridade de datas para pagamento de salários

20 de julho de 2016

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Jessé TorresRepresentação por inconstitucionalidade no 0018812-32.2016.8.19.0000

Representante: Flavio Nantes Bolsonaro

Representado: Exmo Sr. Governador do Estado do Rio de Janeiro

Relator: Des. Jessé Torres

 

ACÓRDÃO

Representação por inconstitucionalidade Liminar

Decreto estadual no 45.628, de 12 de abril de 2016, que disciplina “o pagamento dos benefícios previdenciários dos servidores inativos e pensionistas do Estado do Rio de Janeiro referente ao mês de competência março de 2016”. Relevante fundamento jurídico do pedido, na medida em que, em juízo de cognição sumária, referido Decreto, ao postergar o pagamento dos servidores inativos, relativo à competência de março/2016, para a data de 12 de maio de 2016, ofendeu o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF/88, art. 1o, III). Presentes também os requisitos do perigo da demora e da inexistência de risco invertido contra o interesse público. Urgência da suspensão da eficácia da lei (REGITJRJ, art. 105, § 2o). Deferimento da liminar, por maioria.

Visto, relatado e discutido o pleito liminar deduzido na Representação por Inconstitucionalidade no 0018812-32.2016.8.19.0000, sendo Representante, Flavio Nantes Bolsonaro, e Representado, o Exmo Sr. Governador do Estado do Rio de Janeiro, os Desembargadores que compõem o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ACORDAM, por maioria, conceder a liminar.

A presente representação argui a inconstitucionalidade do Decreto estadual no 45.628, de 12 de abril de 2016, que dispõe sobre “o pagamento dos benefícios previdenciários dos servidores inativos e pensionistas do Estado do Rio de Janeiro referente ao mês de competência março de 2016”.

O Deputado estadual Flavio Nantes Bolsonaro pede, liminarmente, a suspensão da eficácia da norma, por considerar presentes os requisitos autorizadores da fumaça do direito, consistente na plausibilidade da tese jurídica, na possibilidade de prejuízo e na irreparabilidade de danos, uma vez que se trata de verba previdenciária e alimentar.

Tendo por presente a relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, postula a apreciação do pleito liminar, em atenção ao art. 105, § 2o, do Regimento Interno deste Tribunal.

É o relatório.

O Decreto estadual no 45.628, de 12 de abril de 2016, estará apto a produzir efeitos a partir de medidas que a Secretaria de Estado de Fazenda e a Secretaria de Planejamento e Gestão venham a adotar, a teor do que dispõem os seus arts. 2o e 3o (pasta 03, do anexo 1), daí tratar-se de controle concentrado de inconstitucionalidade de ato administrativo que não porta eficácia imediata.

Eis a norma impugnada, verbis:

DECRETO No 45.628 DE 12 DE ABRIL DE 2016

DISPÕE SOBRE O PAGAMENTO DOS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS DOS SERVIDORES INATIVOS E PENSIONISTAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO REFERENTE AO MÊS DE COMPETÊNCIA MARÇO 2016.

O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, em exercício, no uso das atribuições constitucionais e legais,

CONSIDERANDO o déficit do Fundo de Previdência do Estado do Rio de Janeiro e a necessidade do Tesouro Estadual,

DECRETA:

Art. 1o – O pagamento referente à competência março 2016, dos servidores inativos da Administração Estadual Direta e Indireta e dos pensionistas previdenciários do Estado do Rio de Janeiro que recebam benefícios previdenciários superiores a R$ 2.000,00 (dois mil reais) líquidos, será creditado até 12 de maio de 2016.

Art. 2o – A Secretaria de Estado de Fazenda e a Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão adotarão as medidas pertinentes ao cumprimento do disposto neste Decreto.

Art. 3o – Este Decreto entrará em vigor na data da sua publicação.

Rio de Janeiro, 12 de abril de 2016.

Poder-se-ia conjecturar, no pórtico da demanda, que o decreto impugnado – como todo decreto, ato administrativo de competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo (CF/88, art. 84, IV) – traduziria regular exercício da discricionariedade de que é provida toda autoridade estatal para o desempenho da gestão pública, por isto que a providência adotada pelo decreto não configuraria o abuso de poder ou o desvio de finalidade que autorizam o remédio da tutela cautelar.

Tal ponderação estaria conceitualmente correta em tese e desde que sob a perspectiva estrita da lógica da gestão.

A lógica do controle judicial é outra, porém. O juiz não dispõe de discricionariedade para gerir a coisa pública ou o processo conforme as razões de conveniência e oportunidade que demarcam o ato administrativo discricionário. Ao juiz cumpre controlar os atos administrativos em face das balizas da ordem jurídica. Em outras palavras: se o ato administrativo discricionário satisfaz, de um lado, conveniência e oportunidade, pode, por outro, ao fazê-lo, afastar-se da ordem jurídica.

A função do controle judicial da administração pública, no estado democrático de direito, concentra-se na análise desse possível e eventual afastamento, com o fim de coibi-lo. Daí ser equivocado supor que o juiz também conte com poderes discricionários para decidir conforme conveniência e oportunidade. O que a ordem jurídica comete ao juiz é verificar se estão, ou não, em cada caso, presentes três requisitos, quando houver de examinar pleitos liminares deduzidos contra atos administrativos inquinados de abusivos: o relevante fundamento jurídico, o perigo da demora em precatar-se o direito ameaçado ou lesado, e a ausência de risco invertido contra o interesse público.

Se presentes tais requisitos cumulativos, incumbe ao juiz o dever jurídico de deferir a postulação liminar, ainda que a ele, juiz, pareça inconveniente ou inoportuna. Se ausente qualquer desses requisitos, o juiz tem o dever jurídico de indeferi-la, independentemente de ser conveniente ou oportuna do ponto de vista da gestão, posto que ao juiz não cabe proceder a avaliações próprias das finanças do Estado, para discriminar as despesas que possam ser ou não contingenciadas. Se tais despesas são contingenciadas pela autoridade estatal, a esta também cabe conceber as soluções que evitem que desse contingenciamento resultem lesões a direitos líquidos e certos.

É assim que se mantêm em equilíbrio e se harmonizam os poderes constituídos, pelo manejo da consagrada teoria dos freios e contrapesos, nos termos e limites da Constituição, que também privilegia hígido sistema de controle das atividades administrativas (CR/8, art. 74) e quer efetivos e eficazes os princípios a que explicita e implicitamente deve obediência a administração pública (CR/88, art. 37, caput). Por isto que não impressiona o argumento, expresso pelo ilustre voto vencido, de que, em 2002, o STF declarou inconstitucional o art. 82, § 3o, da Constituição Fluminense de 1989, que mandava o Estado pagar os seus servidores até o décimo dia útil do mês seguinte ao vencido.

Aplicada a técnica do distinguishing, de tradição anglo saxônica e acolhida pelo art. 489, § 1o, V, do CPC/2015, fica claro que a esse precedente não se acomoda o caso de que se ocupa esta Representação: afirmar inconstitucional norma fixadora de prazo certo para pagamento não é o mesmo que supor inconstitucional norma que permita o Estado escolher, ao seu talante, datas aleatórias para o pagamento, variáveis segundo critérios que a mesma norma oculta, em contravenção a outro paradigma essencial da gestão pública no estado democrático de direito, que é o da motivação obrigatória dos atos administrativos.

O pleito liminar merece agasalho, presentes que estão os respectivos requisitos: o relevante fundamento jurídico, o perigo da demora e a inexistência de risco invertido contra o interesse público.

O art. 6o da Constituição Federal baliza o exame do caso em testilha ao dispor sobre os direitos sociais, dentre eles a saúde, a alimentação e a moradia, que devem ser atendidos em presença dos rendimentos mensais do trabalhador ou do aposentado (art. 7o), verbis:

(a) Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição;

(b) Art. 7o São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

XXIV – aposentadoria.

 O indigitado decreto no 45.628/16, ao postergar o pagamento devido aos servidores inativos e pensionistas, da competência de março/2016, para a data de 12 de maio de 2016, desafia o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF/88, art. 1o, III), que engloba os direitos à saúde, alimentação, moradia, segurança, dentre outros (artigos 5o a 7o da CF/88), norte igualmente adotado pela Carta Estadual, verbis:

Art. 8o – Todos têm o direito de viver com dignidade.

Parágrafo único – É dever do Estado garantir a todos uma qualidade de vida compatível com a dignidade da pessoa humana, assegurando a educação, os serviços de saúde, a alimentação, a habitação, o transporte, o saneamento básico, o suprimento energético, a drenagem, o trabalho remunerado, o lazer e as atividades econômicas, devendo as dotações orçamentárias contemplar preferencialmente tais atividades, segundo planos e programas de governo.

 Entenda-se por dignidade da pessoa humana “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano, que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que protejam a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável (Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988. 5a Ed. Por Alegre: Livraria do Advogado, 2008. P. 62)” (apud Revista Síntese – Responsabilidade Pública, ano VI – no 31 – fev-mar/2016, “Orçamento Público, ajuste fiscal e administração consensual”, pág. 09-25).

Por derradeiro, inexiste risco invertido contra o interesse público. Isto porque, dentre as inúmeras atribuições da Administração Pública, está a de manter a organização de seu quadro funcional e a de suas contas – dentre elas as relativas aos proventos dos servidores inativos. Sequer o déficit orçamentário constitui causa impeditiva ao deferimento liminar. O Estado tem o dever de tornar efetivo e de preservar o direito de seus funcionários inativos, a afastar a possibilidade de frustrar o creditamento de seus proventos, que se destinam à sobrevivência do aposentado e de sua família, satisfazendo-lhes as necessidades básicas para aquisição de alimentos, remédios, assistência médica e demais despesas ordinárias do cotidiano de todo ser humano, sobrevivência essa que há de merecer consideração prioritária em face de encargos materiais de outra natureza, que não a de alimentos impenhoráveis, a serem supridos na gestão da administração estadual.

A expressão interesse público compreende, no estado democrático de direito, a satisfação dos direitos fundamentais e o respeito às garantias individuais e à ordem jurídica, sendo abrangente, destarte, tanto de maiorias quanto de minorias sociais. A ordem constitucional vigente não inclui, entre as providências que estatui para conjurar o eventual excesso de despesas de pessoal, restrições aos proventos e benefícios incorporados ao patimônio jurídico de servidores aposentados e seus pensionistas. Ao tratar especificamente desse excesso, em seu art. 169, integrante do capítulo das finanças públicas, a Carta Magna proíbe, como norma geral, que a despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios ultrapasse os limites estabelecidos em lei complementar. Se tal excesso sobrevier, a Carta impõe aos entes federativos, nos termos dos §§ 3o a 7o daquele preceptivo, a adoção de providências limitadoras do pessoal ativo, nada dispondo sobre os inativos, a saber, sucessivamente: (i) redução de pelo menos 20% (vinte por centos) das despesas com cargos em comissão e função de confiança; (ii) exoneração de servidores não estáveis; (iii) extinção de cargos ocupados por servidores estáveis, aos quais o estado indenizará pela perda do cargo extinto. Logo, qualquer medida restritiva dos proventos e benefícios definitivamente devidos aos inativos não encontra apoio no Texto Fundamental, nem, por conseguinte, se insere no conceito intangível de interesse público, daí não se divisar, também por este ângulo, que haja risco invertido contra o interesse público a impedir a concessão da liminar postulada neste writ.

Eis os motivos de votar por que se conceda a liminar, com o fim de suspender a eficácia do Decreto estadual no 45.628, de 12 de abril de 2016, até o julgamento final da presente representação, na forma do art. 105, § 2o, do Regimento Interno deste TJRJ.

 

Rio de Janeiro, 25 de abril de 2016

Desembargador JESSÉ TORRES

Relator