Inconstitucionalidade da “legítima defesa da honra” como marco antidiscriminatório e de combate às violências contra a mulher

9 de setembro de 2024

Luciana Paula Conforti Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)

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Em decisão unânime e histórica, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da tese da “legítima defesa da honra”, muito utilizada em crimes violentos contra as mulheres e em feminicídios, especialmente para culpabilizar as vítimas pelos crimes cometidos e vitimizar os autores.

O julgamento foi proferido na ADPF 779, em agosto de 2023, para: (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5o, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade.

O relator do processo no STF, ministro Dias Toffoli, ao conceder a liminar para suspender o uso da tese até o julgamento final, asseverou que: “A legítima defesa da honra é um estratagema cruel, subversivo da dignidade humana e dos direitos à igualdade e à vida, e totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do feminicídio no Brasil”.

Já a ministra Cármen Lúcia afirmou no julgamento a vitimização do réu a partir da investigação de fatos sobre a vida da mulher, para demonstrar “o que ela teria feito para merecer isso”, conduta que ainda é uma realidade em processos judiciais de todo o Brasil, apesar dos dados alarmantes de violências cometidas contra as mulheres. 

A ministra Rosa Weber, hoje aposentada, sustentou no julgamento que esse tipo de argumento não encontra mais lugar “em uma sociedade democrática, livre, justa e solidária, fundada no primado da dignidade da pessoa humana”, conforme segue: “[…] para a reestruturação dos costumes medievais e desumanos do passado, pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso em defesa da ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade masculina, pela qual se legitima a eliminação da vida de mulheres para a reafirmação de seus papéis sociais de gênero […]”. 

Na verdade, a “legítima defesa da honra” nunca en­controu amparo na legislação. A tese foi criada e utilizada reiteradamente, em que pese inexistir tal previsão no Código Penal, que apenas prevê que a legítima defesa pode ser empregada para repelir “injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (art. 25). A “legítima defesa da honra” teve espaço durante anos no Brasil, pela cultura machista, sexista e misógina, ainda tão presente, além da violência endêmica contra as mulheres. 

O caso mais lembrado em relação ao uso da referida tese foi a defesa de Doca Street, pelo assassinato de sua companheira na década de 1970, a socialite Ângela Diniz, na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. A condenação, na época com pena mínima, causou grande comoção social e reação de movimentos feministas. A vítima virou símbolo da campanha “Quem ama não mata!’”. A acusação recorreu e o réu foi novamente julgado na década de 1980, com a condenação por homicídio doloso, com pena de 15 anos de reclusão. Toda a história foi retratada em detalhes no podcast “Praia dos Ossos”, da Rádio Novelo.

Em 2023, o Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública apontou que o Brasil bateu recorde de casos de estupros, inclusive de vulneráveis. Foram registrados quase 84 mil ocorrências, um aumento de 6,5% em relação a 2022, com o registro de um estupro a cada seis minutos. O perfil das vítimas é composto por meninas (88,2%), negras (52,2%), de no máximo 13 anos (61,6%) e em 84,7% das vezes os agressores são familiares ou conhecidos, que cometem a violação nas próprias residências das vítimas (61,7%). O mesmo ano também contou com o maior número de registros de feminicídios, desde que o crime foi tipificado no Brasil, em 2015, totalizando 1.463 vítimas. 

Os dados revelam a importância da declaração de inconstitucionalidade para se banir definitivamente dos julgamentos dos feminicídios no Brasil a tese da “legítima defesa da honra”. Como foi apontado, trata-se de julgamento histórico, com base em perspectiva de gênero, que instala nova fase na interpretação judicial, etapa essencial para o avanço da cultura antidiscriminatória e de combate às violências contra a mulher.   

De fato, em crimes contra as mulheres, é necessário considerar o contexto em que as relações de poder são formadas, inclusive para adoção de perspectiva interseccional, em face de inúmeras microagressões sofridas, especialmente por mulheres e por meninas negras, além dos assédios e dos crimes contra a dignidade sexual.  

É necessário considerar nesse quadro, ainda, a hipersexualização do corpo da mulher, vista como símbolo das diversas narrativas. A coisificação do corpo feminino faz parte do imaginário e da cultura nacional. Esse é mais um aspecto que atinge mulheres negras de forma particular, já que o corpo negro foi desumanizado, visto como reprodutor e objeto sexual por séculos, herança do nosso período escravocrata. 

O Poder Judiciário, na análise dos processos, deve adotar condução antirracista, antissexista e antidiscriminatória desde a triagem, passando por todo o transcurso do feito, até o julgamento. 

A mesma interpretação, acerca da inaceitabilidade de culpabilização da vítima, deve ser utilizada em outros crimes, como o assédio sexual, que é considerado como manifestação sensual ou sexual, alheia à vontade da pessoa a quem se dirige, incluindo abordagens grosseiras, ofensas e propostas inadequadas que constrangem, humilham ou amedrontam. São condutas que ocorrem como manifestação de poder, intimidação e desrespeito em relação à vontade e aos corpos femininos. Citadas condutas podem ocorrer (como de fato ocorrem) em espaços e em contextos diversos, como em casa, no trabalho ou em espaços públicos: na praia, na rua, em praças, parques, nos meios de transporte, bares, casas noturnas e até em elevadores. 

Muitos comportamentos indicados como assédio sexual em sentido amplo podem ser enquadrados em outros crimes previstos no Código Penal, como: importunação sexual (art. 215), ato obsceno (art. 233), estupro (art. 213), além do próprio assédio sexual (art. 216-A).

O assédio sexual causa na vítima diversos impactos na saúde física e emocional, com efeitos de ordem psicopatológica, psicossomática e comportamental, como perda da motivação, da autoestima e da segurança profissional, isolamento social e isolamento da família. Além disso, muitas mulheres perdem a sua própria liberdade e seu direito de escolha, como quando deixam de usar determinada roupa, de adotar certos tipos de comportamento, de frequentar alguns lugares ou transitar por vias públicas em determinados horários, com receio de sofrer tais abordagens. 

No tocante à cultura do estupro, isso ainda é muito presente na nossa sociedade. A pesquisa “Sistema de Indicadores de Percepção Social” sobre “Tolerância Social à Violência contra as Mulheres”, realizada pelo Ipea, trouxe frases aos entrevistados, que foram instruídos a dizer se concordavam ou discordavam, total ou parcialmente, do que era afirmado, com base no “ordenamento patriarcal e heteronormativo da sociedade”. Uma das afirmações foi: “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”, sendo que 35,3% concordaram e 23,2% concordaram parcialmente.

Também não se pode deixar de considerar a recorrente existência de estupros coletivos, cerca de dez por dia no Brasil e não só no carnaval ou em festas. 

Por “ordenamento patriarcal e heteronormativo da sociedade” entende-se como: “[…] uma organização social baseada no poder masculino e na qual a norma é a heterossexualidade. A sociedade se organiza com base na dominação de homens sobre mulheres, que se sujeitam à sua autoridade, vontades e poder. Os homens detêm o poder público e o mando sobre o espaço doméstico, têm controle sobre as mulheres e seus corpos. Por maiores que tenham sido as transformações sociais nas últimas décadas, com as mulheres ocupando os espaços públicos, o ordenamento patriarcal permanece muito presente em nossa cultura e é cotidianamente reforçado, na desvalorização de todas as características ligadas ao feminino, na violência doméstica, na aceitação da violência sexual. A família patriarcal organiza-se em torno da autoridade masculina; para manter esta autoridade e reafirmá-la, o recurso à violência – física ou psicológica – está sempre presente, seja de maneira efetiva, seja de maneira subliminar”. 

Com relação às audiências para a apuração de crimes contra a dignidade sexual, é essencial a consideração da Lei no 14.245/2021 conhecida como Lei Mariana Ferrer, que alterou o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo, prevendo que todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto no artigo, vedadas: “I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto da apuração nos autos; II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas”. 

Assim, chama-se a atenção para essas atitudes inaceitáveis, a fim de que toda a sociedade se conscientize sobre a valorização da dignidade humana, o respeito ao direito de não sofrer violência, ao afastamento de estereótipos ligados ao universo feminino, que apenas reforçam relações assimétricas de poder, reafirmam estruturas organizacionais desiguais e fundadas em alicerces intolerantes e preconceituosos. 

Com maior ênfase, deve o Poder Judiciário inadmitir, na condução ou no transcurso dos processos, atitudes comumente vistas na sociedade, para que as violências não sejam reproduzidas no âmbito judicial e possam ser adequadamente apuradas e reparadas. 

Reafirma-se, assim, a essencialidade do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, que declarou a inconstitucionalidade da tese da “legítima defesa da honra”, esperando-se que seja efetivamente banida dos processos judiciais brasileiros.   

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