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Independência, serenidade e exatidão

5 de novembro de 2005

Liliane Roriz de Almeida Juíza da 21ª Vara Federal/RJ

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“É dessa época que vem a profunda e sincera admiração que nutro por V.Exa., e acrescento, tanto no plano profissional quanto no plano pessoal. Reconheço que tive até certa dificuldade em expressar essa admiração, dadas as qualidades morais de V.Exa., pessoa firme em seus princípios, mas igualmente serena, humilde, mansa. Sempre disposta a ajudar aqueles que porventura necessitem. São tantas as razões que se fosse enumerá-las todas por certo em muito se estenderiam essas breves palavras. Dadas as minhas próprias limitações, procurarei resumir minha opinião. V.Exa. é daquelas pessoas que naturalmente se destacam no meio onde convivem, sem, entretanto, obnubilar as demais. Refulge sem apagar os demais, o que a nosso sentir é uma rara qualidade.

Relembro particularmente de uma situação vivenciada no curso de mestrado. A matéria era tópicos de direito constitucional, oferecida pela Professora Doutora Gisele Citadino, onde se estudava a jurisdição constitucional alemã. Pois bem: foi nos repassado um texto do Jungen Habermas para discussão na aula seguinte. Era o meu primeiro contato com o autor alemão. Li o texto não entendi nada. Reli continuei sem entender. Li uma terceira vez, mas era impossível para eu compreender o seu sentido. Embora escrito em espanhol o texto era alemão para mim. Alemão é pior do que grego para mim. Cheguei na aula tenso. E se a professora me questionasse sobre o texto? Como eu – pensava de certa forma prepotentemente – sendo um Procurador da República diria que não tinha entendido nada do texto?

A aula iniciou-se e a professora perguntou se alguém poderia começar a discutir o texto. Como ninguém se aventurou, a professora – e nós também somos professores – fez o clássico: procurou refúgio no aluno mais preparado, no caso V.Exa., e pediu para que expusesse suas conclusões sobre o texto. Aí, cândida e tranqüilamente, V.Exa. disse: “Não entendi nada do texto”. Simples não? E eu anteriormente tenso e preocupado, agora aliviado, imediatamente acresci. Graças a Deus, pois já estava pensando que era analfabeto, mas se a Dra. Liliane disse que não entendeu o texto, então estou desde logo absolvido. Porque me sentia absolvido? Fosse outro, não teria tido a mesma reação. A absolvição decorre da superioridade moral mencionada por Piero Calamandrei em sua obra “ Eles os Juízes, vistos por nós os  advogados”. Dizia o jus filósofo italiano:

“No juiz a inteligência não conta. Basta que seja normal e que ele possa chegar a compreender, encarnação do homem médio. O que principalmente conta é a superioridade moral, que deve ser tamanha a ponto de poder perdoar ao advogado ser mais inteligente do que ele”.

Foi essa qualidade, tão importante para quem exerce o ofício da judicatura, que V.Exa. demonstrou com a sua serena resposta. Não tentou enrolar o que talvez eu teria tentado – pois havia colegas recém saídos da graduação, mas, como disse o apóstolo Paulo em sua carta aos hebreus – da fraqueza tirando força – perdoou uma possível inteligência superior de outros colegas bem mais novos e muito mais inexperientes. Para mim foi simplesmente sensacional, uma lição de vida e um exemplo a ser seguido”.

Os Três Pilares

Agradecendo as homenagens, a desembargadora Liliane Roriz assim se pronunciou:

“Ao tomar posse no cargo de Desembargadora Federal prometi cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis.

Nos dias que se seguiram à minha nomeação e posse, pensei muito no compromisso que assumira. Não podia ser essa promessa um enunciado puramente abstrato ou positivista em excesso.

Buscando melhor compreendê-lo, deparei-me com o art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura que estabelece ser dever do magistrado cumprir e fazer cumprir as disposições legais com independência, serenidade e exatidão.

Assim, a observância à lei contida no compromisso assumido há de ser temperada por essas três qualidades: independência, serenidade e exatidão.

Para alguns, pode parecer paradoxal a determinação de cumprir a lei com independência. Mas é que o juiz não é um mero aplicador de textos legais. Para isso, um programa de computador resolveria a questão.

Aplicar a lei de forma independente significa não ficar preso aos estritos limites de sua interpretação gramatical. Significa extrair do texto legal sua melhor aplicação e aplicá-lo com impessoalidade, com neutralidade.

O cumprimento da lei deve-se dar também com serenidade, o que envolve equilíbrio e sensatez, qualidades sempre desejáveis para aquele que se dedica a resolver problemas de seus semelhantes.

Para uma decisão serena, é necessário apreciar a questão com isenção, bom-senso e eqüidistância das partes, sem preconceitos ou partidarismos.

O terceiro requisito contido na LOMAN diz respeito a cumprir as leis com exatidão. Quem se propõe a julgar precisa conhecer exatamente o conteúdo e o alcance da lei.

Mas não são apenas essas características legalmente impostas que são desejáveis para um julgador.

A idoneidade e o comportamento ético são também qualidades mais do que desejáveis para o juiz; são verdadeiros pressupostos de seu cargo.

A ausência de um comportamento moral e ético, em um julgador, não abala somente sua imagem. Afeta mais do que isso, pois corrói a credibilidade da própria instituição democrática.

É interessante observar que, etimologicamente, a palavra ética vem do grego ethos e possui um correlato em latim, que é a palavra morale. Ambos os termos têm o mesmo significado, consistindo em palavras sinônimas.

Um choque ético é, pois, imprescindível e indispensável, em todas as camadas sociais, desde o cidadão, que deve respeitar o sinal de trânsito ou evitar apropriar-se indevidamente do espaço público, até o agente público que deve se dedicar a uma prestação de serviço público com qualidade e presteza, aperfeiçoando e consolidando uma cultura de respeito à ética.

Enfim, deve haver harmonia e compatibilidade entre o que se requer, o que se pode e o que se é, agindo sempre com transparência, sinceridade e ética, na vida privada, no convívio social e na gestão da coisa pública.

A propósito de como proceder com ética na vida pública, não poderia deixar de manifestar a honra que é para mim suceder a um magistrado do quilate do Desembargador Federal Valmir Peçanha, uma das maiores referências morais e intelectuais do Judiciário brasileiro. É esta, para mim, uma responsabilidade extraordinária.

Gostaria também de agradecer a confiança que me foi depositada pelos membros desta Corte, ao incluir-me na lista tríplice para promoção, especialmente em companhia de dois Juízes Federais da categoria e da competência dos Drs. Guilherme Couto e Guilherme Calmon, aos quais homenageio.

Para encerrar, em recente entrevista publicada na revista Veja, o advogado alemão Peter Eigen, presidente da ONG Transparência Internacional, defendeu a formação do que ele chamou de um Sistema de Integridade. Segundo ele, o formato desse Sistema deveria ser semelhante ao de um templo grego cuja cobertura é escorada por pilares, montados de tal forma que, se um ruir, os outros permanecem firmes, até a reparação daquele que falhou. Esses pilares são: um Poder Executivo a salvo de interesses menores, um Parlamento representativo e um Judiciário independente.  A cada momento em que um desses pilares encontrar-se abalado, os outros dois devem reforçar-se, a fim de garantir a sustentabilidade do templo grego, isto é, do Sistema de Integridade.

Senhor Presidente, sei que sou apenas uma pequena peça em um desses pilares. Mas sou uma peça. E é nesse sentido que orientarei minha passagem no honroso cargo que estou assumindo neste Tribunal”.