Edição

“Informante do bem” (Whistleblower)

3 de agosto de 2020

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Introdução

Os indivíduos que trabalham em uma organização pública ou privada, ou que com ela estão em contato através de atividades profissionais, costumam ser os mais habilitados a obter conhecimento de situações lesivas do interesse público que surgem em seu contexto de atuação. Fiel a essa premissa, o legislador brasileiro, através da Lei nº 13.608/2018, positivou em nosso sistema a figura do whistleblower, cuja tradução literal vem a ser “soprador de apito”, consistindo em um informante, responsável por reportar à autoridade competente a ocorrência de atos de corrupção, caraterizadores de ilícito penal ou administrativo, aos quais tem acesso, em regra, por conhecer a estrutura e o contexto do ilícito internamente.

A admissão do whistleblowing na ordem jurídica brasileira

Entre o final do Século XX e o limiar do Século XXI, com a crescente preocupação do mundo ocidental com o combate ao terrorismo internacional e suas fontes de custeio, houve maior mobilização pela edição de convenções e tratados destinados ao enfrentamento da corrupção, diante da percepção de que a sua prática facilitaria a circulação de “dinheiro sujo”, bem como a sua “lavagem”.

O Brasil caminhou nessa direção através da edição do Decreto nº 3.678/2000, que internalizou a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, a qual prevê normas gerais contra corrupção de servidores estrangeiros por organizações e indivíduos, dando origem à Lei nº 10.467/2002, que introduziu alterações no Código Penal, além de criar o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão este que tem se mostrado uma ferramenta essencial ao combate à corrupção e à lavagem de capitais. Nessa perspectiva, foram editadas diversas leis que buscaram fortalecer o combate à criminalidade, através da introdução e do aperfeiçoamento de novos e tradicionais meios e técnicas de investigação significativamente invasivos (tecnológicos e tradicionais).

O whistleblowing é, assim, um instituto recentemente integrado ao nosso Direito, em um processo de simbiose experimentado pelo Processo em geral, seguindo a tradição estadunidense de investigação e responsabilização de fraudes financeiras, o qual ganha espaço nas grandes corporações e na administração pública, através do reforço às políticas de compliance, canais de denúncias internas, alcançando também as esferas penal e administrativa, obtendo, inclusive, regulação própria no âmbito da União Europeia, através da aprovação da “Diretiva (UE) 2019/1937, do Parlamento Europeu e do Conselho”, de 23/10/2019.

Aportes da Lei nº 13.608/2018

No Brasil, a Lei nº13.608/2018, com as alterações introduzidas pela Lei 13.964/2019, prevê que qualquer pessoa que relate informações sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público pode ser reconhecida como “informante do bem”, fazendo jus, inclusive, a uma recompensa financeira pela informação prestada.

Em ambas as situações, na prevista pelo art. 4º da Lei nº 13.608/2018 e naquela introduzida através do novel § 3º do art. 4º-C, há a necessidade de regulamentação, todavia, enquanto no primeiro caso devem ser estabelecidos não só os critérios para a fixação dos valores das recompensas, como também a competência para decidir sobre elas e as respectivas fontes de custeio, no segundo caso, entendemos que a competência é do juiz da causa e o percentual já está indicado como sendo o de até 5% sobre o valor recuperado, parecendo razoável que, na estipulação do valor, seja levado em conta o grau de relevância do relato feito pelo “informante do bem”, o quanto foi recuperado em relação ao total do prejuízo suportado pela administração pública, bem como o próprio valor recuperado, pois, quanto menor este, maior deve ser o percentual limitado a 5%, a fim de evitar a recompensa irrisória, incidindo a lógica oposta em caso de desvios bilionários, para evitar as recompensas exageradas.

Natureza jurídica do whistleblower

O informante não se confunde com o colaborador regulamentado pela Lei nº 12.850/2013 (artigos 3º-A usque 7º) ou o delator, pois esses são necessariamente coautores na atividade criminosa investigada, mas assemelha-se à testemunha, uma vez que esta nada mais é do que aquele ser humano (qualquer pessoa) que capta, através de quaisquer de seus sentidos biológicos, algo que sirva para a reconstituição histórica dos fatos em apuração no processo. Seu papel na investigação (criminal ou administrativa) ou no processo (criminal, administrativo ou civil) difere daquele reservado à testemunha compromissada (Código de Processo Penal/CPP, art. 203), em razão da atuação desinteressada desta e do eventual interesse daquele em receber uma recompensa, caso em que passa a ter interesse no resultado do processo e, acaso ocorra a sua oitiva, deve sê-lo na qualidade de testemunha não compromissada (CPP, art. 208, c/c Código de Processo Civil/CPC, art. 447, §§ 3º,II, 4º e 5º).

Constitucionalidade e âmbito de incidência da Lei 13.608/2018

Pela sua natureza, o whistleblowing não pode se sujeitar a eventual interpretação extensiva acerca da vedação de anonimato (Constituição Federal/ CF, art. 5º, IV), haja vista essa vedação dizer respeito à liberdade de expressão e não à notícia crime ou mesmo à indicação de provas relacionadas com crime ou ilícito disciplinar, encontrando-se sob a égide de regulação dos meios ou instrumentos de captação de provas, sujeitos à restrição apenas em relação à utilização de meios lícitos (CF, art. 5º, LVI), e não à necessidade de identificação do eventual informante. Aliás, até mesmo em relação à liberdade de expressão, em sua vertente da liberdade de imprensa, existe exceção à vedação do anonimato, decorrente da previsão de sigilo da fonte (CF, art. 5º, XIV).

A Lei nº 13.608/2018 não trata diretamente do direito individual à liberdade de expressão e não contém afronta à vedação constitucional ao anonimato, primeiramente porque essa vedação regra não é absoluta e sujeita a exceções, e principalmente porque o instituto denominado como “informante do bem”, pela sua natureza de fonte de indicação de meios de prova ou de meio de obtenção de prova, não é regulado pelo inciso IV do art. 5º da Constituição, mas sim pela regra geral de que todos os meios de prova são válidos para a investigação e formação dos órgãos destinatários, desde que obtidos por meio lícito (CF, art. 5º, LVI) e seja cumprida a recomendação de análise de razoabilidade contida na primeira parte do parágrafo único do art. 4º-A.

Considerações finais

A adoção do instituto conhecido como “informante do bem” pela ordem jurídica pátria, através da Lei 13.608/2008, harmoniza-se satisfatoriamente com a tendência internacional de enfrentamento à criminalidade organizada, notadamente àquela que atenta contra o interesse público por meio da apropriação ilícita de seus já escassos recursos.

Cumpre ressaltar que, apesar das controvérsias em torno da previsão de sigilo de identidade, relativamente à pessoa que reporta eventuais irregularidades descortinadas, não há violação ao mandamento constitucional previsto no art. 5º, inciso IV, da Lei Maior, o qual veda o anonimato em relação à liberdade de expressão e a livre manifestação do pensamento, não alcançando o instituto de whistleblowing, o qual possui a natureza fonte de indicação de prova ou de meio de obtenção de prova, estando, portanto, sujeito às regras aplicáveis às provas e não à liberdade de expressão, encontrando os seus limites na vedação constitucional à prova ilícita (CF, art. 5º LVI).

Notas______________________________

1 BRANDÃO, Nuno. “O whistleblowing no ordenamento jurídico português”. Revista do Ministério Público, Lisboa, 2020.

2 MACEDO, Cássio Rocha de. “Whistleblowing e Direito Penal: análise de uma política criminal de combate aos crimes econômicos fundada em agentes denunciantes”. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio do Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.

3 SOUZA, Sérgio Ricardo de. “Prova penal e tecnologia: novas técnicas e meios de investigação e captação de provas”. Curitiba: Juruá, 2020.

4 BRASIL. Lei nº 13.608/2018. Diário Oficial, Brasília, 11/1/2018. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13608.htm. Acesso: 23/6/2020.