Edição 240
“Informante do bem” (Whistleblower)
3 de agosto de 2020
Sérgio Ricardo de Souza, Victória de Oliveira Nunes
Desembargador do TJES
Introdução
Os indivíduos que trabalham em uma organização pública ou privada, ou que com ela estão em contato através de atividades profissionais, costumam ser os mais habilitados a obter conhecimento de situações lesivas do interesse público que surgem em seu contexto de atuação. Fiel a essa premissa, o legislador brasileiro, através da Lei nº 13.608/2018, positivou em nosso sistema a figura do whistleblower, cuja tradução literal vem a ser “soprador de apito”, consistindo em um informante, responsável por reportar à autoridade competente a ocorrência de atos de corrupção, caraterizadores de ilícito penal ou administrativo, aos quais tem acesso, em regra, por conhecer a estrutura e o contexto do ilícito internamente.
A admissão do whistleblowing na ordem jurídica brasileira
Entre o final do Século XX e o limiar do Século XXI, com a crescente preocupação do mundo ocidental com o combate ao terrorismo internacional e suas fontes de custeio, houve maior mobilização pela edição de convenções e tratados destinados ao enfrentamento da corrupção, diante da percepção de que a sua prática facilitaria a circulação de “dinheiro sujo”, bem como a sua “lavagem”.
O Brasil caminhou nessa direção através da edição do Decreto nº 3.678/2000, que internalizou a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, a qual prevê normas gerais contra corrupção de servidores estrangeiros por organizações e indivíduos, dando origem à Lei nº 10.467/2002, que introduziu alterações no Código Penal, além de criar o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão este que tem se mostrado uma ferramenta essencial ao combate à corrupção e à lavagem de capitais. Nessa perspectiva, foram editadas diversas leis que buscaram fortalecer o combate à criminalidade, através da introdução e do aperfeiçoamento de novos e tradicionais meios e técnicas de investigação significativamente invasivos (tecnológicos e tradicionais).
O whistleblowing é, assim, um instituto recentemente integrado ao nosso Direito, em um processo de simbiose experimentado pelo Processo em geral, seguindo a tradição estadunidense de investigação e responsabilização de fraudes financeiras, o qual ganha espaço nas grandes corporações e na administração pública, através do reforço às políticas de compliance, canais de denúncias internas, alcançando também as esferas penal e administrativa, obtendo, inclusive, regulação própria no âmbito da União Europeia, através da aprovação da “Diretiva (UE) 2019/1937, do Parlamento Europeu e do Conselho”, de 23/10/2019.
Aportes da Lei nº 13.608/2018
No Brasil, a Lei nº13.608/2018, com as alterações introduzidas pela Lei 13.964/2019, prevê que qualquer pessoa que relate informações sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público pode ser reconhecida como “informante do bem”, fazendo jus, inclusive, a uma recompensa financeira pela informação prestada.
Em ambas as situações, na prevista pelo art. 4º da Lei nº 13.608/2018 e naquela introduzida através do novel § 3º do art. 4º-C, há a necessidade de regulamentação, todavia, enquanto no primeiro caso devem ser estabelecidos não só os critérios para a fixação dos valores das recompensas, como também a competência para decidir sobre elas e as respectivas fontes de custeio, no segundo caso, entendemos que a competência é do juiz da causa e o percentual já está indicado como sendo o de até 5% sobre o valor recuperado, parecendo razoável que, na estipulação do valor, seja levado em conta o grau de relevância do relato feito pelo “informante do bem”, o quanto foi recuperado em relação ao total do prejuízo suportado pela administração pública, bem como o próprio valor recuperado, pois, quanto menor este, maior deve ser o percentual limitado a 5%, a fim de evitar a recompensa irrisória, incidindo a lógica oposta em caso de desvios bilionários, para evitar as recompensas exageradas.
Natureza jurídica do whistleblower
O informante não se confunde com o colaborador regulamentado pela Lei nº 12.850/2013 (artigos 3º-A usque 7º) ou o delator, pois esses são necessariamente coautores na atividade criminosa investigada, mas assemelha-se à testemunha, uma vez que esta nada mais é do que aquele ser humano (qualquer pessoa) que capta, através de quaisquer de seus sentidos biológicos, algo que sirva para a reconstituição histórica dos fatos em apuração no processo. Seu papel na investigação (criminal ou administrativa) ou no processo (criminal, administrativo ou civil) difere daquele reservado à testemunha compromissada (Código de Processo Penal/CPP, art. 203), em razão da atuação desinteressada desta e do eventual interesse daquele em receber uma recompensa, caso em que passa a ter interesse no resultado do processo e, acaso ocorra a sua oitiva, deve sê-lo na qualidade de testemunha não compromissada (CPP, art. 208, c/c Código de Processo Civil/CPC, art. 447, §§ 3º,II, 4º e 5º).
Constitucionalidade e âmbito de incidência da Lei nº 13.608/2018
Pela sua natureza, o whistleblowing não pode se sujeitar a eventual interpretação extensiva acerca da vedação de anonimato (Constituição Federal/ CF, art. 5º, IV), haja vista essa vedação dizer respeito à liberdade de expressão e não à notícia crime ou mesmo à indicação de provas relacionadas com crime ou ilícito disciplinar, encontrando-se sob a égide de regulação dos meios ou instrumentos de captação de provas, sujeitos à restrição apenas em relação à utilização de meios lícitos (CF, art. 5º, LVI), e não à necessidade de identificação do eventual informante. Aliás, até mesmo em relação à liberdade de expressão, em sua vertente da liberdade de imprensa, existe exceção à vedação do anonimato, decorrente da previsão de sigilo da fonte (CF, art. 5º, XIV).
A Lei nº 13.608/2018 não trata diretamente do direito individual à liberdade de expressão e não contém afronta à vedação constitucional ao anonimato, primeiramente porque essa vedação regra não é absoluta e sujeita a exceções, e principalmente porque o instituto denominado como “informante do bem”, pela sua natureza de fonte de indicação de meios de prova ou de meio de obtenção de prova, não é regulado pelo inciso IV do art. 5º da Constituição, mas sim pela regra geral de que todos os meios de prova são válidos para a investigação e formação dos órgãos destinatários, desde que obtidos por meio lícito (CF, art. 5º, LVI) e seja cumprida a recomendação de análise de razoabilidade contida na primeira parte do parágrafo único do art. 4º-A.
Considerações finais
A adoção do instituto conhecido como “informante do bem” pela ordem jurídica pátria, através da Lei 13.608/2008, harmoniza-se satisfatoriamente com a tendência internacional de enfrentamento à criminalidade organizada, notadamente àquela que atenta contra o interesse público por meio da apropriação ilícita de seus já escassos recursos.
Cumpre ressaltar que, apesar das controvérsias em torno da previsão de sigilo de identidade, relativamente à pessoa que reporta eventuais irregularidades descortinadas, não há violação ao mandamento constitucional previsto no art. 5º, inciso IV, da Lei Maior, o qual veda o anonimato em relação à liberdade de expressão e a livre manifestação do pensamento, não alcançando o instituto de whistleblowing, o qual possui a natureza fonte de indicação de prova ou de meio de obtenção de prova, estando, portanto, sujeito às regras aplicáveis às provas e não à liberdade de expressão, encontrando os seus limites na vedação constitucional à prova ilícita (CF, art. 5º LVI).
Notas______________________________
1 BRANDÃO, Nuno. “O whistleblowing no ordenamento jurídico português”. Revista do Ministério Público, Lisboa, 2020.
2 MACEDO, Cássio Rocha de. “Whistleblowing e Direito Penal: análise de uma política criminal de combate aos crimes econômicos fundada em agentes denunciantes”. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio do Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.
3 SOUZA, Sérgio Ricardo de. “Prova penal e tecnologia: novas técnicas e meios de investigação e captação de provas”. Curitiba: Juruá, 2020.
4 BRASIL. Lei nº 13.608/2018. Diário Oficial, Brasília, 11/1/2018. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13608.htm. Acesso: 23/6/2020.