Integração entre os Tribunais Estaduais_Entrevista com o Desembargador Marcus Faver

31 de julho de 2008

Herbert Carneiro Presidente da Amagis, Desembargador do TJMG

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A integração entre os tribunais estaduais de todo o país é uma das principais metas do desembargador Marcus Faver à frente da presidência do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil. De acordo com o Presidente, é preciso interligar e harmonizar as relações dos tribunais dos 27 estados, respeitando suas diferenças e partilhando suas experiências positivas.
“O Colégio tem por meta acabar, ou, pelo menos, reduzir essas “ilhas” da federação, que são os tribunais, fazendo uma interligação de atividades administrativas de gestão, mostrando atitudes positivas. Para isso, estamos fazendo reuniões bimestrais para levar as experiências positivas de um estado para o outro, porque um dos grandes defeitos da Justiça brasileira é justamente a falta de gestão”, afirmou o Desembargador.

Justiça & Cidadania – Quais são seus planos como presidente do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil?
Marcus Faver – O que se tem a fazer, e é esse o trabalho do Colégio, é tentar resolver a situação institucional paradoxal em que nos encontramos. Isso é fundamental na minha visão. Nós somos formalmente uma República Federativa, formada pela união indissolúvel de Estados, Municípios e o Distrito Federal, mas, na prática, somos um país unitário. A União sufoca o Poder Executivo através das verbas que ele contingencia pra si. Os Estados têm pouca independência financeira. As Assembléias Legislativas são hoje organismos de competência inferior a de uma Câmara de Vereadores, porque o sistema legal contingenciou de tal forma a competência legislativa que as Assembléias não valem quase nada. Estamos sufocados no Executivo pelo contingenciamento da receita tributária, estamos sufocados no Poder Legislativo pelo controle da competência estabelecida pela União e estamos contingenciados no Judiciário pelo controle administrativo exercido hoje pelo Conselho Nacional de Justiça. Estamos num paradoxo. Somos formalmente uma federação, mas na substância tendemos a um estado unitário, isso é ruim porque o país tem diferenças profundas de região para região, os tribunais estão perdendo sua autorização, sua competência administrativa e financeira pelo gerenciamento administrativo do CNJ, que limita a competência dos estados; até mesmo uma eventual promoção de juiz é questionada. Há um choque estrutural: a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, embora sejamos um estado federal, se choca com a independência administrativa consagrada no artigo 96 da Constituição Federal. A Constituição dá autonomia administrativa aos tribunais.
É texto expresso na Constituição Federal competir priva­tivamente, ressalte-se o termo, aos tribunais organizar suas secretarias, prover os cargos de juízes, enfim, gerir toda a questão administrativa do Poder Judiciário no estado. Mas tal autonomia é pactuada pela reforma e pelas disposições do CNJ. Talvez haja fundamentos sérios para se controlar os desmandos que às vezes existem nos tribunais, mas essa dicotomia institucional e chocante entre um sistema formalmente federativo e um sistema, na prática, unitário, é um problema sério que o Colégio está tentando mostrar aos tribunais e aos órgãos superiores.
A outra questão, é que, em se tratando de uma República Federativa, estamos trabalhando como se fôssemos ilhas isoladas e não interligadas e harmônicas. Por exemplo, uma medida de gestão administrativa adotada em Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo, nossos vizinhos de fronteira, não são em regra trazidas ao nosso conhecimento. A mesma coisa se passa com as experiências administrativas do Rio de Janeiro que não são levadas a São Paulo, etc.. Por esse motivo, o Colégio tem por meta acabar, ou pelo menos reduzir, essas “ilhas” da federação, que são os tribunais, fazendo uma interligação de atividades administrativas de gestão, mostrando atitudes positivas. Para isso, estamos fazendo reuniões bimestrais para levar as experiências positivas de um estado para o outro,  porque um dos grandes defeitos da Justiça brasileira é justamente a falta de gestão.
O Colégio está empenhado ainda em duas outras metas: a concretização do processo virtual, que vai diminuir custos de maneira acentuada, acabando com o papel; e o incentivo à Conciliação e à Mediação, diminuindo a área de conflito e as arestas entre as partes. É difícil, mas já temos conquistas extraordinárias, começando em um estado pequeno como Roraima, que está com todos os juizados especiais processando virtualmente. Esse é o caminho, o caminho de uma técnica de gestão altamente positiva, que vai baratear o custo da prestação jurisdicional.
São medidas assim que o Colégio está adotando. Servir de “link”, conhecendo esses problemas, diminuindo essa situação paradoxal entre um sistema federativo formal e na prática um sistema unitário, mostrando a necessidade de respeitar as características de cada região. Se ligarmos às 15h30min para o Tribunal de Justiça do Piauí, por exemplo, o Tribunal estará fechado porque eles lá começam a trabalhar às 7h, por causa do calor, e fecham às 13h30min. Eles trabalham o mesmo tempo que a gente, só que em horários diferentes. Essas situações peculiares devem ser respeitadas. Não entender isso é desrespeitar o sistema federativo. Por isso, a iniciativa do Rio de Janeiro, de criar um fundo especial, não poderia ser levada para um estado como o Piauí, que não possui volume de atos negociais para ensejar receita capaz de dispensar a ajuda do Governo. Ele precisa de participação no orçamento do estado, caso contrário sem condições de funcionamento estará. Já o Tribunal de São Paulo se criar um fundo à semelhança do que tem o Rio de Janeiro, a independência será total e absoluta, e isso é fundamental porque o Judiciário não pode ficar na dependência do Executivo. Os poderes devem ser harmônicos, mas independentes.

JC – Na sua gestão como Presidente, no biênio 2001/2002, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro atingiu a independência financeira tornando-se um dos mais bem aparelhados do País. Quais os planos do Colégio para conseguir que os demais tribunais dos outros estados consigam também a sua autonomia administrativa e financeira?
MF – O esquema do Rio de Janeiro não daria certo na grande maioria dos estados brasileiros. Só daria certo em estados que tenham uma considerável movimentação negocial. O TJ/RJ recebe como recurso do Fundo, entre outras receitas, as custas, a taxa judiciária, e 20% sobre os emolumentos. A taxa judiciária é paga pela colocação da prestação jurisdicional à disposição da sociedade, pelo funcionamento do Poder Judiciário; as custas são pagas pela atividade de cada servidor – oficial de justiça, escrivão, escrevente – trabalhando em um processo, e; o percentual de 20% dos emolumentos são cobrados pelo exercício do poder de polícia do Judiciário sobre o serviço extrajudicial – registro de escritura, registro de imóveis, lavratura de testamento, reconhecimento de firma, etc.. Esse conjunto de receitas somado a outras receitas: taxa dos concursos públicos, aluguel dos espaços dentro dos fóruns, receita da locação de imóveis, receita de estacionamento, fotocópias, receitas financeiras decorrentes de aplicações, etc., dá ao TJ/RJ independência no tocante às verbas de custeio e investimento; ou seja, no orçamento do estado não consta verba de custeio e investimento para o Judiciário, mas somente verba de pessoal. Para que isso dê certo, portanto, é preciso que haja um considerável volume de atos negociais capazes de gerar uma arrecadação suficiente. Esse esquema nos estados menores não daria certo, considerando que não haveria movimentação negocial capaz de gerar recursos suficientes para cobrir as necessidades do Judiciário. Poderia dar certo em São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, por exemplo. Contudo, fica difícil exportar uma idéia geral como essa, porque ela tem que ser feita de acordo com as condições peculiares de cada estado, de cada região.

JC – Qual o impacto da autonomia financeira na estrutura administrativa do TJ/RJ depois da instituição do Fundo?
MF – O esquema da autonomia financeira para essas verbas trouxe um custo para o Tribunal muito grande. Tivemos um trabalho enlouquecido porque o Tribunal teve que se estruturar administrativamente para gerir a arrecadação, o controle financeiro, os serviços de engenharia, licitações, contratação de pessoal terceirizado para limpeza, enfim, ações administrativas até então realizadas pelo Governo do estado. Foi preciso organizar uma secretaria de planejamento, de engenharia, serviço médico, etc.. Hoje, o Tribunal é uma mega-empresa com mais de 15 mil servidores, todos pagos pelo estado, mas desenvolvendo atividades dentro do Tribunal, responsável pela gestão administrativa. O nosso lema era: arrecadar com eficiência e gastar com parcimônia, como se fosse uma empresa privada. E qual o lucro dessa empresa? A prestação jurisdicional eficaz e efetiva em tempo razoável. Esse é o lucro da empresa pública: que o usuário fique satisfeito com o serviço que lhe é prestado. Todavia, temos que entender que cada unidade da federação tem suas peculiaridades, suas características e tradições.
Com a criação do Fundo em São Paulo, por exemplo, o Governo estadual não perderia nada porque a rigor a Constituição Federal já determinou no art. 98, §2º, que a receita das custas e emolumentos é exclusivamente do Judiciário. O que compete ao Tribunal de Justiça de São Paulo é se organizar administrativamente para recolher as custas e fazer outros insumos para aumentar essa renda, como: receita de concursos públicos; receitas imobiliárias ou administrativas; construção de um prédio e aluguel de uma parte do espaço, com pagamento pelo valor de mercado por metro quadrado ocupado. Isso é que é o Fundo. É o gerenciamento dos recursos que se pode obter, com condições de recolher o dinheiro e aplicar, fazendo aplicações financeiras como aqui no TJ/RJ. Temos uma pessoa que só faz isso diariamente, aplicações em benefício do Fundo, por isso pudemos emprestar dinheiro tanto à governadora Rosinha quanto à governadora Benedita. Foram emprestados 50 milhões de reais, com a garantia dos royalties do petróleo, inteiramente resgatados com juros de mercado.

JC – E os 6% do orçamento do estado?
MF – São duas coisas diferentes. 6% é o percentual que a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece como limite que cada órgão administrativo, o Tribunal especificamente, pode gastar com pessoal. O Tribunal não pode gastar mais do que 6% do orçamento líquido do estado na sua folha de pessoal. Os cargos de escrevente, técnico judiciário, auxiliar judiciário, etc., devem ser criados através de lei, com a fixação das respectivas remunerações, observando-se o limite de 6% do orçamento líquido. Se chegar a 5,4%, 5,5% acende uma luz vermelha proibindo qualquer investimento, sob pena do autorizador da despesa responder por crime de improbidade. É o limite prudencial.

JC – Então o Judiciário tem uma autonomia sobre os 6%?
MF – Tem, mais ou menos até os 5,4%, 5,5%. Se o Presidente do Tribunal autorizar uma despesa que ultrapasse isso, responde pelo crime de improbidade administrativa. Desta forma, os concursos devem ser realizados dentro deste limite. Se o Judiciário quer criar 30 cargos de desembargador fica a seu critério, desde que não ultrapassado o limite. Com a informatização conseguimos reduzir o número de servidores em cada serventia, não para demitir – porque não podemos – mas para deslocar para outra vara a ser criada; ou seja, com o mesmo custo temos mais serviço. Esta é a grande vantagem da informática: redução no custo administrativo.

JC – O número de assessores dos desembargadores e ministros é de apenas 4 ou 5, enquanto um deputado tem 20. O senhor não acha que uma maior quantidade de assessores desafogaria os tribunais?
MF – Desafogaria, mas temos o problema da Lei de Responsabilidade Fiscal. Por exemplo, hoje somos 180 desembargadores e, precisando de mais assistentes, temos que criar 180 cargos. Ou seja, um para cada desembargador, o que já pesa muito. E você não pode pagar a um assistente qualificado valor inferior a R$5.000,00, porque senão não aparece funcionário tecnicamente qualificado. Penso que, de agora em diante, ao invés de se criar mais cargos de desem­bargadores, deve ser aumentada sua assessoria, através de concurso específico altamente qualificado.

JC – Reclama-se que as taxas judiciárias no Rio de Janeiro são muito caras. O valor das taxas e das custas é determinado por lei estadual?
MF – Se compararmos com outros estados, as custas do Rio de Janeiro não são caras. Há estados menores em que o valor das custas é o dobro do Rio de Janeiro. O valor da taxa judiciária aqui é de 2% sobre o valor da causa, inclusive com um teto estabelecido. Há estados que cobram mais que isso, até 4% a 5%. O valor das custas para um Recurso Especial interposto ao STJ é de R$100,00 de preparo, além do porte do Correio. Aqui se paga 1/3 disso. O valor é determinado por lei estadual. Tem a tabela das custas e o Código Tributário estadual estabelecendo o valor e a incidência da taxa. O valor está previsto legalmente e sem nenhum exagero.
É preciso observar, no entanto, que  a população brasileira empobreceu. Houve queda no poder aquisitivo da classe média. Por outro lado, 2/3 das atividades do Judiciário são realizadas hoje de forma gratuita. O serviço criminal, a vara de família e os juizados especiais são todos gratuitos. As únicas atividades que são remuneradas são as varas cíveis, comerciais e orfanológicas. Fazer esse volume reduzido de demandas pagas cobrir custos das demandas gratuitas não é uma tarefa fácil. Por isso, na lei que instituiu o Fundo há um artigo específico estabelecendo uma regra de gestão que o Tribunal não pode gastar um tostão com pagamento de pessoal, para evitar que alguns poucos que detenham o poder arranjem uma função gratificada para A ou B contando com o dinheiro do Fundo.

JC – Recentemente foi publicada a Lei nº 11.672/2008, tendo sido regulamentada pelo presidente do STJ, ministro Humberto Gomes de Barros, no dia 15/07/2008. Qual a importância dessa lei no âmbito da justiça estadual?
MF – Essa lei restringe a possibilidade de admissão de recursos especiais repetitivos no âmbito do STJ, quando tiverem como fundamento idêntica questão de Direito, diminuindo o volume de processos que iriam a Brasília consideravelmente e aumentando o poder decisório dos tribunais estaduais. O dado mais significativo, no entanto, é a diminuição no tempo da demanda, gerando uma significativa melhora na prestação jurisdicional. Estou convencido que, em decorrência dessa lei, os recursos começarão a se esgotar; além do fato dos tribunais regionais ganharem independência. Essa lei também desafogará os serviços dos tribunais superiores.
Tanto o STF quanto o STJ estão abarrotados de processos e estão criando dificuldades para o recebimento de recursos extraordinários e especiais. À primeira vista, a regulamentação dessa lei parece medida adotada exclusivamente em benefício dos tribunais superiores – que não vão mais receber tal volume de processos –, mas tem um significado muito mais importante, um significado político dentro do nosso sistema federativo.
A médio prazo os tribunais estaduais vão ganhar legitimidade que nunca tiveram, deixando de ser um tribunal de passagem para ser o tribunal final na maioria das demandas. Desta forma, a estatura dos tribunais estaduais vai ser elevada, considerando que eles passarão a ser o “Supremo Tribunal Estadual” em cada unidade da federação, como nos Estados Unidos. Em uma visão prospectiva é essa figura que vejo. Isso vai requerer dos desembargadores componentes dos tribunais, a compreensão da importância que passarão a ter.
Hoje, muitas coisas são decididas mais rapidamente, ou com menos estudo, considerando que a questão será objeto de nova análise em Brasília. A partir de agora, não. Com essa lei, será exigido um maior comportamento técnico do tribunal, com mais responsabilidade. Essa é, talvez a primeira lei que vem para reforçar o federalismo na Brasil.

JC – A restrição na admissão de recursos especiais repetitivos por súmulas do STJ, a despeito do posicionamento contrário dos tribunais não fere a sua independência?
MF – Não, por tratar-se de previsão legal e até mesmo em razão de uma inadmissibilidade potencial, tendo em vista que no STJ a matéria já seria revertida de qualquer maneira. Os tribunais estaduais vão ter que rever sua posição, pois não teria qualquer sentido admitir um Recurso Especial cuja solução já estaria antecipadamente tomada pelo Tribunal Superior.
Então, seguindo a linha procedimental da nova legislação, serão admitidos alguns recursos representativos da controvérsia nos tribunais estaduais e encaminhados ao STJ, suspendendo o julgamento dos demais até que o Tribunal Superior se pronuncie definitivamente sobre o tema. Essa suspensão poderá durar no máximo 180 dias e caso o julgamento do recurso paradigma não seja finalizado no STJ em dois meses os tribunais darão prosseguimento à tramitação das ações.