Edição 260
Inteligência artificial no Judiciário. Riscos de um positivismo tecnológico
7 de abril de 2022
Daniel Vianna Vargas Juiz Instrutor da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça / Presidente do Conselho Editorial, Ministro do STJ
Luis Felipe Salomão Presidente do Conselho Editorial / Corregedor Nacional de Justiça / Ministro do STJ
Introdução
O Direito Processual contemporâneo mostra-se complexo e fluido, devendo atender aos anseios, expectativas, cobranças e controles da comunidade jurídica e da própria sociedade. Com o fortalecimento nas últimas décadas dos movimentos de acesso à Justiça, a efetivação dogmática da jurisdição constitucional e a aceitação corrente do ativismo judicial na implementação de Direitos fundamentais, estabelecemos um quadro no qual a jurisdição é percebida como polo metodológico da teoria geral do processo[1], ultrapassando a função de resolução intersubjetiva de conflitos.
O fato é que essa ampliação de horizontes funcionais para além da tipicidade de resolução de conflitos traz uma gama de atividades e tarefas incomuns e anômalas para o Judiciário, resguardadas inclusive discussões sobre sua legitimidade.
A atuação fora dos seus escopos tradicionais, ainda que justificadas para parte da doutrina com base nas omissões dos demais poderes e na ampliação da jurisdição[2], fatalmente reflete em termos de eficiência. O Judiciário não foi pensado, estruturado, organizado e capacitado para enfrentar desafios de tamanha envergadura, principalmente num País onde as deficiências estatais representam o cotidiano da sociedade.
Uma das consequências dessa mudança conjuntural é a necessidade de uma prestação jurisdicional menos formal, mais ágil, que consiga enfrentar o redimensionamento do seu papel na sociedade contemporânea.
Obviamente, cuidando agora do ponto nevrálgico do presente estudo, essa nova concepção da jurisdição implica em mudanças nos parâmetros decisórios, na interpretação e na aplicação do Direito e nas suas formas de controle. A padronização de standards de fundamentação pelos tribunais superiores coloca-se como mecanismo de eficiência no Judiciário e a utilização da inteligência artificial (IA)[3] nesse particular é uma realidade que vem sendo propalada como um dos mais importantes instrumentos para o enfrentamento dos desafios apontados.
A presença das inovações tecnológicas no cenário jurídico nacional é um desafio a ser enfrentando por aqueles que se dedicam a pensar nas estruturas teóricas e dogmas conceituais, como já ocorreu anteriormente com a modificação de pensamentos e escolas do Direito, assim como se passou com a Revolução Industrial, o Constitucionalismo e o reconhecimento dos direitos e interesses coletivos.
O desenvolvimento tecnológico e a chamada Revolução 4.0 é facilmente percebida em todas as atividades da sociedade, com a introdução e aplicação de ferramentas de inteligência artificial e outras mais avançadas. As relações sociais já convivem há algum tempo nesse ambiente, com a existência de algoritmos classificatórios no fornecimento de serviços e precificação de produtos, redes de interação social, automação da atividade industrial, serviços financeiros, de entretenimento e comunicação. Em outros países, também no setor público o cenário é idêntico, desde a utilização da inteligência artificial na predição de crimes e otimização da alocação de recursos, até a automação das atividades burocráticas e administrativas do Estado.
O Direito é uma área de diagnóstico, regulação e tratamento das relações sociais e, por óbvio, a revolução tecnológica é uma realidade que alcançará de forma robusta e inexorável a atividade legislativa, o modo de interpretação e aplicação das leis e a atividade desenvolvida pelo Poder Judiciário e por todos aqueles que são essenciais à função da Justiça, em todos os seus aspectos.
São notáveis os benefícios angariados para a gestão de acervos, tarefas repetitivas, coleta e tratamento de dados. Por outro lado, sua utilização no processo de construção da decisão judicial pode suscitar o debate acerca de eventuais riscos para a legitimidade do sistema no contexto do processo democrático[4].
Com efeito, justifica-se a discussão pelo alcance subjetivo das decisões advindas dos julgamentos individuais e padronizados, cuja construção da decisão judicial tenha como personagem principal a inteligência artificial, demandando análise e tratamento sistêmico dos mecanismos apontados.
Atualmente, sua efetivação sofisticada ainda é realizada em nível experimental, sendo mais corrente sua utilização rudimentar como banco de dados para consultas das informações processuais e acesso às decisões judiciais por meio da rede mundial de computadores. Algumas práticas esparsas da utilização da inteligência artificial na atividade jurisdicional e no processo de tomada de decisão ainda são recentes e carecem de análise qualitativa e estrutural, especialmente, quanto ao último aspecto, no que diz respeito aos chamados vieses algorítmicos e sua eventual colidência com direitos processuais fundamentais de fundamentação e publicidade. Importante considerar, ainda, os efeitos da utilização de sistemas mais sofisticados no Direito, como o aprendizado de máquinas (machine learning), computação cognitiva, redes neurais e computação em nuvem, dentre outros.
Inteligência artificial no Poder Judiciário
As práticas da inteligência artificial no Direito utilizadas pelo Poder Público em território nacional, vão desde os robôs Alice, Sofia e Mônica no Tribunal de Contas de União (TCU), até o Victor no Supremo Tribunal Federal (STF).
No TCU, todos os “robôs” são rotulados através de acrônimos, quais sejam: Análise de Licitações e Editais (ALICE), Sistema de Orientação sobre Fatos e Indícios para o Auditor (SOFIA) e Monitoramento Integrado para Controle de Aquisições (MONICA).
Nessa mesma linha, a Procuradoria-Geral do Distrito Federal utiliza-se da Dra. Luzia, considerada a primeira “robô-advogada” do Brasil, criada pela startup LegalLabs. Sua função no órgão público é a de analisar o andamento de processos e indicar as manifestações da Advocacia Pública, pesquisando e colacionando informações concernentes às qualificações dos indivíduos, como endereços e bens. Vem sendo utilizada, igualmente, nos processos de execução fiscal.
No Poder Judiciário, são alguns os exemplos, com a utilização por diversos tribunais em atividades variadas, desde práticas rotineiras e burocráticas, até a seleção de processos, controle de fluxo e mesmo auxílio na tomada de decisão.
O TRF da 2ª Região utiliza no Rio de Janeiro o Centro de Integração On-line, para entrada e recebimento de processos com demandas relacionadas à saúde. O sistema, através da inteligência artificial, identifica o caso e apresenta possíveis soluções não-judiciais para as demandas. Havendo concordância do usuário com a solução apresentada, o sistema contata a parte contrária, apresentando o caso e a proposta de solução, objetivando a autocomposição. A estimativa é de que no ano de 2018 a economia tenha girado entre R$ 90 milhões e R$ 200 milhões, uma vez que cerca de 50 mil processos teriam deixado de ter prosseguimento com a prática, sendo que cada processo tem curso médio de R$ 2.900.
No Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO), Sinapses e Cranium são robôs criados com o uso da inteligência artificial, desenvolvidos pelo Núcleo de Inteligência do Tribunal. O Sinapses, desde fevereiro de 2018 utiliza redes neurais e possui banco de dados de dezenas de milhares de despachos, sentenças e julgamentos. O sistema identifica os temas dos processos e seleciona decisões anteriores que podem ser utilizadas. Uma ferramenta chamada “gerador de texto” ajuda na elaboração de textos sugerindo palavras. Além disso, há a possibilidade da extração de resultado de sessões através do processamento de linguagem natural. Estabeleceu-se convênio de cooperação técnica entre o TJRO e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para adaptação do PJe aos sistemas de inteligência artificial desenvolvidos no Tribunal.
Na Justiça de Pernambuco, o Tribunal de Justiça utiliza a robô Elis na execução fiscal, efetuando a triagem de processos, conferindo dados da CDA e, inclusive, transcurso de prazo prescricional. Sua capacidade para a tarefa é incomparável em relação ao mesmo trabalho desenvolvido pelos servidores. O trabalho de um ano e meio é realizado pelo robô em pouco mais de 15, com capacidade de análise de mais de 80 mil processos.
Nessa mesma linha, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte utiliza o robô Poti. Criado há pouco mais de um ano, através de uma parceria com alunos da pós-graduação da Tecnologia da Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é utilizado também nos processos de execução fiscal, com a atuação especialmente voltada para o procedimento de penhora de ativos financeiros, a chamada “penhora on-line”. O sistema consegue efetivar uma ordem de indisponibilidade de ativos financeiros em 35 segundos. É programado para completar o procedimento, com análise de prazo e transferência dos valores para as contas informadas no processo. Outro grande diferencial é que sua atuação é randômica, atualizando a dívida e monitorando de forma contínua as movimentações financeiras. Feita de forma manual, o usuário do BACEN-JUD quando dispara a ordem de indisponibilidade, recebe como resposta uma “fotografia” da situação naquele momento. Logo, a utilização da inteligência artificial possui enorme ganho em termos de efetividade. O Tribunal potiguar ainda desenvolve outros sistemas, como o Jerimum, que classifica e rotula processos; e Clara, que lê documentos, sugere tarefas e recomenda decisões.
O Tribunal da Justiça da Bahia pôs em funcionamento recentemente o aplicativo “Queixa Cidadã”, que opera por meio de inteligência artificial, utilizando recursos de reconhecimento facial, prestando-se ao ajuizamento de ações pelo usuário, nos casos de patrocínio leigo, nas causas até 20 salários mínimos. Uma assistente virtual orienta em modo tutorial o usuário até a conclusão da petição. A narrativa da parte por meio do preenchimento de formulários gera uma petição inicial distribuída ao Juizado Especial, sem a participação de qualquer serventuário. Um modelo mais simples se destina especificamente às causas em que o pedido se limita à reparação de danos materiais. Outro modelo mais elaborado pode receber pedidos de compensação por danos morais e tutelas provisórias de urgência.
O usuário comprova sua identidade através da gravação de um vídeo que será comparado, por meio de reconhecimento facial, ao seu documento de identificação. Da mesma forma, o próprio usuário envia fotografias de um comprovante de residência. Após a conclusão da petição inicial, um número de processo é gerado e o sistema designa a primeira audiência de conciliação, com data, hora e local. O usuário poderá acompanhar o andamento processual pelo próprio dispositivo, inclusive, com recebimento de notificações.
Cuida-se de notável ferramenta em termos de acesso à Justiça. Resta saber se o Judiciário pode absorver um volume de demandas por vezes irrazoável diante da facilidade de acesso. Considerações acerca do interesse de agir – da necessidade e utilidade da prestação jurisdicional, legitimidade e licitude das pretensões formuladas, somente serão analisadas posteriormente, com um custo social pela manutenção da plataforma e dos processos em andamento que deverá ser objeto de pesquisa no tocante à sua viabilidade. Diante da realidade nacional, é impostergável a discussão, ainda que sob o prisma da análise econômica do direito, ponderando-se os custos sociais decorrentes da movimentação da máquina judiciária e a propositura irrestrita de ações de pouca ou nenhuma viabilidade.
Para enfrentar o volume de ações que possam ser reconhecidas como litigiosidade repetitiva, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), numa demanda oriunda do setor de gestão de precedentes, desenvolveu a plataforma Radar, para melhorar a prestação jurisdicional no sentido de identificar e agilizar os julgamentos, ampliando exponencialmente as ferramentas de pesquisa na área jurídica e administrativa.
Através da utilização de vários critérios de busca, os magistrados podem verificar casos repetitivos no acervo da comarca, agrupá-los e julgá-los conjuntamente a partir de uma decisão paradigma. A plataforma pode ser utilizada para identificar e separar recursos que tratem do mesmo tema e para os quais já existam precedentes pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou por algum Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR). O objetivo é realizar julgamentos virtuais por meio da plataforma.
Em novembro de 2018, em prática pioneira, a 8ª Câmara Cível do TJMG julgou, com apenas um comando, um total de 280 processos, julgados em menos de um segundo. A plataforma havia identificado e separado os recursos com aquilo que foi considerado pedido idêntico. Houve elaboração de votos de forma padronizada pelos relatores, a partir de teses fixadas pelos tribunais superiores e pelo TJMG.
Nessa hipótese específica, cuida-se de exercício de atividade jurisdicional efetivada, em grande parte (ou totalmente) pela inteligência artificial. As discussões sobre legitimidade democrática desses julgamentos são variadas e serão tratadas adiante.
O Supremo Tribunal Federal vem utilizando desde 2018 a ferramenta “Victor”, criada pela Secretaria de Tecnologia da Informação em parceria com a Universidade de Brasília. Cuida-se da utilização de inteligência artificial “para aumentar a eficiência e a velocidade de avaliação judicial nos processos que chegam ao Tribunal”. O nome do projeto é uma homenagem ao falecido Ministro Victor Nunes Leal, o principal responsável pela sistematização da jurisprudência do STF em súmulas. Note-se, já nesse ponto, a direta relação pretendida entre o incentivo às ferramentas de tecnologia no processo e “a aplicação dos precedentes judiciais aos recursos”. O ganho de eficiência ocorreria em razão da digitalização, classificação e organização dos processos pelo sistema de inteligência artificial, sem qualquer participação no processo de tomada de decisão. A ferramenta realizaria a triagem dos processos para identificar temas de repercussão geral, direcionando o fluxo para a admissibilidade ou não dos recursos.
Há previsão de que a ferramenta possa buscar e identificar jurisprudência pertinente acerca do tema. Utilizar-se-ia a tecnologia de redes neurais, com o aprendizado do sistema a partir da análise das decisões anteriores do próprio Tribunal. Insista-se que nos termos da informação oficial, o sistema não tem ingerência sobre o processo decisório. Basicamente, suas funções envolveriam a extração de textos dos documentos em PDF, através da identificação de linguagem natural, com o processamento de um conjunto de dados, reduzindo sua complexidade e formatando os algoritmos. Posteriormente, as redes neurais “escolheriam” os dados mais relevantes para fins de classificação.
O Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas, sob a coordenação do Ministro Luis Felipe Salomão, tem como missão identificar, entender, sistematizar, desenvolver e aprimorar soluções voltadas ao aperfeiçoamento da Justiça. O Centro conduz uma pesquisa cujo foco é “Tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário com ênfase em inteligência artificial”, tendo como objetivo realizar um levantamento do uso da inteligência artificial em determinados tribunais brasileiros.
Os objetivos específicos consistiram: na identificação desses projetos e suas respectivas funcionalidades; na situação atual da tecnologia; no impacto produzido pelo uso da IA; nos resultados esperados e alcançados; e na análise cruzada desses dados para verificação da repercussão da IA sobre a celeridade, eficiência e produtividade dos tribunais.
De acordo com a primeira fase da pesquisa, cerca de metade dos tribunais brasileiros possuem projeto de inteligência artificial em desenvolvimento ou já implantados, na sua maioria, pela equipe interna dos tribunais, bem como a partir de parcerias entre tribunais que estão sendo capitaneadas pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho.
Os resultados podem ser observados na página do CIAPJ, no seguinte endereço: https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/estudos_e_pesquisas_ia_1afase.pdf.
Atividade judicial e atividade jurisdicional.
Os exemplos citados revelam uma realidade e, mais do que uma tendência, uma necessidade: o volume de processos e as tarefas repetitivas em escala industrial não podem mais receber tratamento artesanal. A utilização da tecnologia e das novas ferramentas é simples corolário do princípio da eficiência, constitucionalmente consagrado.
Contudo, é possível fazer uma diferenciação básica nos diversos sistemas apresentados: alguns são utilizados para atividades administrativas, burocráticas, realizadas geralmente por servidores e/ou auxiliares; outros, no entanto, auxiliam ou “desempenham” atividade própria do exercício da função de julgar.
A atividade meramente judicial, ou seja, que é desempenhada pelo Poder Judiciário, mas não possui traços característicos próprios da função jurisdicional, é atividade burocrática, administrativa, como qualquer outra exercida pelos demais Poderes, órgãos públicos e empresas privadas.
Todavia, como um dos Poderes da República, o Judiciário possui função precípua definida na Constituição, indelegável, improrrogável, que é a resolução de conflitos de interesses entre particulares e entre esses e a Administração Públicas.
Não há qualquer dúvida de que a utilização de novas tecnologias e a substituição do trabalho manual pela automação não é novidade e deve avançar sobre as atividades administrativas do Judiciário. Cuida-se de redução de custos e equívocos, com ganho de velocidade e capacidade operacional. Eficiência, portanto. Nesse passo, a eficiência pode ser medida simplesmente pelo resultado produzido através do emprego da inteligência artificial, sem que se faça qualquer juízo de valor quanto à legitimidade do autor da tarefa.
O recebimento de petições iniciais através de formulários e plataformas digitais, a busca de endereços e dados qualificativos, a busca de patrimônio, a separação de processos com pedidos de gratuidade de Justiça e tutelas provisórias de urgência, o gerenciamento de fluxo e acervo processual, o arquivamento de processos, a contagem de prazos, cálculo e certificação de custas, o cálculo de evolução de dívidas nos autos, a publicação de atos ordinatórios previamente definidos, a análise dos endereços para triagem quanto à competência, dentre outros muitos exemplos, são tarefas que não exigem a atuação do juiz, embora comumente assim ocorra, com subtração de tempo precioso e escasso dos magistrados.
Noutro giro, a identificação de causas de pedir, configurações fáticas e jurídicas, temas, ratio decidendi, adequação de causas, distinguishing e fundamentação são funções inexoravelmente ligadas ao exercício da jurisdição. Algumas das práticas acima relacionadas – com justificativa utilitarista e de eficiência quantitativa – revelam a utilização de inteligência artificial no processo de tomada de decisão, ou seja, na atividade jurisdicional.
O tema carece de amadurecimento teórico, dogmático e legislativo. Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional o PLS nº 5.051/2019, de autoria do Senador Styvenson Valentim, cujos termos objetivam estabelecer princípios para o uso da inteligência artificial no Brasil, sendo que um dos enunciados propostos vai de encontro à preocupação acima externada, constando do art. 4º a vedação de que os sistemas de inteligência artificial sejam utilizados na tomada de decisão, senão como auxiliares[5]. Já o PL nº 21/2020, de autoria do Deputado Eduardo Bismarck, já aprovado na Câmara dos Deputados e enviado ao Senado Federal, estabelece um diálogo normativo com a Lei Geral de Proteção de Dados.
A depender do resultado do processo legislativo, os julgamentos efetuados por meio (com o auxílio) dos sistemas RADAR e VICTOR podem vir a experimentar questionamentos, principalmente por aqueles que se sentirem prejudicados pelo resultado. Registre-se, o julgamento mais simples e mais repetido não deixa de ser julgamento.
Faz-se necessário, no mínimo, um arcabouço teórico jurídico das ferramentas de governança, regulação e controle dos chamados algoritmos utilizados para o auxílio e, por vezes, substituição do juiz no ato de julgar. Trataremos desse tema no tópico seguinte.
A utilização de algoritmos no processo de tomada de decisão
Segundo Pedro Domingos, algoritmo é uma sequência de instruções que diz a um computador o que fazer. Tomando como exemplo um aplicativo comumente utilizado por motoristas, o algoritmo reconhece o objetivo (destino) como uma tarefa (chegar ao destino), dividindo-o em tarefas menores (caminho até o destino, com conversões, desvios, retornos, etc.).
Os algoritmos podem ser programados ou não-programados, sendo que os primeiros seguem passo a passo as tarefas menores previamente definidas pelo programador. Quando a informação ingressa, o caminho a ser tomado pela inteligência artificial está determinado integralmente, sabe-se o resultado. No exemplo dado do aplicativo, podemos ilustrar com um destino que só possua um único caminho a ser tomado. O algoritmo programado dará as instruções detalhadas de cada uma das conversões que deverão ser realizadas pelo motorista, mas sabe-se que o caminho é aquele previamente definido pelo programador.
Quanto aos algoritmos não-programados, possuem capacidade randômica de aprendizado. Os dados e o objetivo almejado são inseridos no sistema (input). É o sistema que irá produzir o algoritmo (output), transformando-o em outro, “escrevendo” sua própria programação, sem interferência de um programador humano. Cuida-se da denominada técnica de machine learning. A máquina coleta dados, interpretando-os e transformando-os em novos dados, elaborando predições acerca dos resultados intermediários, “aprendendo” com eles, desenvolvendo modelos e novos algoritmos sem que haja necessidade de nova programação19. Quanto mais dados inseridos inicialmente, maior é a possibilidade de aprendizado do sistema.
De entrada, percebe-se que para um mínimo de controle e regulação da operação por meio de algoritmos é a supervisão da inserção de dados, uma vez que estes podem ser determinantes para os resultados alcançados e, por vezes, é a única “influência” humana na tarefa desenvolvida por meio da inteligência artificial.
Todavia, ao que consta, a preocupação não tem sido com a qualidade dos dados inseridos, mas sim com sua quantidade, de forma a ampliar as possibilidades de aprendizado da máquina e da obtenção de resultados – eficiência quantitativa.
Ao identificarmos no tópico anterior as atividades judiciais, não há qualquer obstáculo na utilização dos algoritmos, uma vez que praticamente todas as tarefas desenvolvidas podem ser inteiramente programadas. Ao adotar um mecanismo de inteligência artificial para contagem de prazos, v.g., é relativamente simples demonstrar publicamente todos os passos que serão tomados pela inteligência artificial, ficando a atividade do programador sob o crivo daqueles que experimentarão os efeitos da certificação de tempestividade ou intempestividade do ato processual praticado. O mesmo se diga quanto a um sistema para busca contínua de ativos financeiros, no qual os dados inseridos – valor, contas atingidas, período de busca – poderão ser expostos e submetidos ao contraditório.
Todavia, quando um sistema de inteligência artificial é utilizado para identificar a causa de pedir, o enquadramento jurídico de determinação pretensão ajuizada, delimitando o objeto de julgamento e, a partir da consulta a um banco de dados (jurisprudência), conduzir a uma conclusão sobre aquele conflito posto em juízo, a situação é consideravelmente distinta. A opacidade e os vieses algoritmos tornam essa tarefa de dificílimo (ou impossível) controle.
É notório o case ocorrido nos Estados Unidos, no Estado de Wiscosin, no qual a utilização do softwareprivado denominado COMPAS (Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions) foi utilizado para a dosimetria da pena aplicada a um condenado em 2013. O algoritmo utilizado não é de conhecimento público, tendo o réu recorrido à Suprema Corte de Wisconsin para a explicitação e acesso aos critérios adotados pelo COMPAS – assumidamente utilizado pelo juiz do caso – que resultaram em sua condenação, com a conclusão de que possuía alto risco de violência, evasão e reincidência. Registre-se que tampouco os juízes que utilizam o sistema têm acesso ao código-fonte do algoritmo. No caso em tela, houve, inclusive, questionamento sobre o direcionamento do sistema em detrimento de afro-americanos.
A Suprema Corte de Winsconsin negou o recurso, extraindo-se da decisão que a sentença teria sido prolatada através de uma análise do juiz acerca do crime praticado e dos antecedentes do acusado. A Suprema Corte Americana não admitiu o writ de certiorari apresentado pelo condenado, que permanece preso.
O caso ilustra de forma categórica a hipótese levantada por este trabalho, qual seja: a utilização de sistemas de inteligência artificial no processo de tomada de decisão pode levar a um panorama equivalente ao positivismo clássico, com a tomada mecânica de decisões com base em padrão decisório previamente definido, dissociado do caso concreto e sem a fundamentação em contraditório pelo juiz do caso. Se no positivismo clássico, o juiz era simplesmente a boca que enunciava a vontade da lei, tendo o arcabouço legislativo todas as respostas para os conflitos, agora a inteligência artificial apresentará a solução do caso concreto, através de um complexo, opaco e incontrolável sistema randômico de tomada de decisão. O juiz simplesmente enunciará o resultado, chancelando-o. Uma espécie de positivismo tecnológico.
Eficiência, garantismo e os riscos de um positivismo tecnológico
O Judiciário nacional não foi pensado, estruturado, organizado e capacitado para enfrentar os desafios do volume de ações que atualmente existe, principalmente num País onde as deficiências estatais representam o cotidiano da sociedade.
Há clara necessidade de uma prestação jurisdicional menos formal, mais ágil, que consiga enfrentar o redimensionamento do seu papel na sociedade contemporânea. Obviamente, essa nova concepção da jurisdição implica em mudanças nos parâmetros decisórios, na interpretação e na aplicação do Direito e nas suas formas de controle. A utilização das inovações tecnológicas e da inteligência artificial para enfrentar esse desafio é salutar e não se discute sua necessidade e relevância.
Todavia, a introdução de algoritmos como parâmetros de fundamentação para alcançar resultados satisfatórios em termos numéricos pode vir a ter resultados perniciosos no tocante à qualidade da prestação jurisdicional e ao respeito às garantias processuais fundamentais[6].
A vedação à rediscussão dos fatos através da equivocada implementação de mecanismos de inteligência artificial no processo de tomada de decisão para julgamentos virtuais, excluindo o direito fundamental de participação dos envolvidos, denominados pela doutrina e jurisprudência como absent parties[7], interessados não participantes[8] ou litigantes-sombra[9], retrocedendo no conceito de contraditório, retira a legitimidade democrática da decisão judicial. Trata-se de supressão de garantias constitucionais que se refletem no acesso à Justiça, no devido processo legal e no contraditório.
Conforme Dierle Nunes e Rafaela Lacerda[10]: “O pressuposto equivocado é o de que mediante o julgamento de um único caso, sem um contraditório dinâmico como garantia de influência e não surpresa para sua formação […] o Tribunal Superior formaria um julgado que deveria ser aplicado a todos os casos ‘idênticos’”. A colocação pode perfeitamente ser utilizada pelo julgamento virtual de dezenas, centenas ou milhares de processos através de um sistema de inteligência artificial, como o mencionado recente julgado do TJMG.
A busca desenfreada pela automação e eficiência quantitativa através da inteligência artificial[11], com julgamento em escala industrial e a utilização de conclusões advindas de algoritmos secretos como base de fundamentação para as decisões judiciais, pode gerar o denominado “efeito cliquet”[12]. Corre-se o risco de retrocesso no atual status do contraditório, com o retorno ao estágio em que as partes eram simples destinatárias da decisão judicial.
Para Dierle Nunes e Rafaela Lacerda[13], “os custos da violação de um direito fundamental não justificam a tomada de uma decisão sub-ótima em larga escala”.
O ambiente colaborativo imposto pelo estatuto processual em vigor determina que as partes trabalhem conjuntamente com o órgão judicial na construção da solução para o caso concreto[14].
Parece ser necessário ter acesso aos casos concretos que serviram de dados originários para a formação do algoritmo, esmiuçando as questões fáticas e jurídicas debatidas linearmente e que formam sua ratio decidendi[15], permitindo o debate e a distinção.
A utilização mecânica da inteligência artificial na tomada de decisão, aliada à impossibilidade de acesso aos algoritmos e de controle dos seus vieses dificulta, inclusive, perquirir a linha de entendimento – posicionamento – de determinado desembargador, ministro, colegiado ou tribunal, transformando as determinações de coerência e integridade constante do art. 926 do CPC em prospecções de caráter exclusivamente nominal.
A utilização da inteligência artificial com a extração de conclusões padronizadas de modo superficial, sem linearidade de debates[16] e possibilidade de acesso ao código-fonte dos algoritmos, sem justificativas internas e externas pelos tribunais e sua aplicação “mecanicizada” pelos juízes não guardam congruência com o contraditório efetivo elencado como garantia constitucional do processo.
Faz-se necessária a discussão acerca da justificação de uma decisão judicial com base naquilo que se extrai de um sistema de inteligência artificial sem a possibilidade de controle acerca de sua programação original e dos processos de aprendizado autônomo, num exegetismo tecnológico. O resultado da análise de um sistema de inteligência artificial como o RADAR, por exemplo, talvez não possa ser entendido como encerramento de discussão, como argumento de autoridade, uma vez o dever de fundamentação insculpido na Constituição da República, não pode ser exercido através de aplicações mecânicas, “dedutivistas’[17], por atos de vontade (ou falta de) do julgador.
Na atual e necessária discussão entre Direito e tecnologia, a possibilidade de desconhecimento do programador – não é o julgador que insere os dados originais (input) – a opacidade da forma de atuação dos algoritmos, as inúmeras possibilidades e variáveis das técnicas de machine e deep learning e a inexistência de mecanismos de governança são desafios que precisam ser enfrentados, principalmente quando já há o emprego da inteligência artificial em substituição ou auxílio na tomada de decisões judiciais.
Conclusão
Ao longo da breve exposição, após delimitar o objeto de pesquisa e introduzir conceitos necessários, ainda que de forma simples, buscou-se exemplificar práticas já presentes na realidade do Judiciário nacional da utilização de ferramentas de inteligência artificial.
Estabeleceu-se uma diferenciação entre atividades administrativas ou judiciais e aquelas identificadas com o exercício precípuo da função jurisdicional. A partir dessas premissas, pretendeu-se estabelecer quais as vantagens e os riscos da utilização das inovações tecnológicas no Judiciário.
A partir de situações já estabelecidas, exemplos concretos, discutiu-se a otimização das atividades ligadas à administração judiciária, ao gerenciamento de acervos processuais, à litigiosidade de massa e aos princípios constitucionais correlatos.
Trabalhou-se com as dificuldades de compatibilização entre a busca por eficiência e as garantias processuais fundamentais, ponderando-se acerca dos desafios inerentes às novas tecnologias e à ausência de um arcabouço teórico sobre o tema.
Em seguida, apresentamos hipóteses de vícios oriundos da própria natureza difusa da inteligência artificial, principalmente nos sistemas de machine learning e deep learning, diante da opacidade e dos vieses algorítmicos, assim como da impossibilidade de controle da figura do programados que insere os dados originais que podem resultar data sets viciados, com possível discriminação gerada por eles ainda que a partir de uma base de dados assertiva.
Estabeleceu-se, ao final, alguns parâmetros de ordem constitucional que deveriam balizar a utilização da inteligência artificial no processo de tomada de decisão, ressaltando os riscos da repristinação de um positivismo exegético, tendo agora por base não mais o texto legal, mas a conclusão gerada da inteligência artificial e sua aplicação mecânica pelo julgador.
Obviamente, não se pretende desconsiderar ou repudiar as práticas dos tribunais na busca por uma melhor prestação jurisdicional. O que se pretende é estabelecer premissas e hipóteses para um debate, no sentido da necessária discussão e aprofundamento dos temas, sempre com o norte constitucional.
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[1] PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. “Jurisdição e Pacificação: limites e possibilidades do uso dos meios consensuais de resolução de conflitos na tutela dos Direitos transindividuais e pluri-individuais”. Curitiba: CRV, 2017.
[2] “O ativismo judicial segue na crença de que o juiz funciona no processo – ou deveria funcionar – como um redentor de todos os males sociais, ainda que para isso tenha que deixar de lado garantias constitucionais e legais. Ou seja, confia-se demasiadamente no senso de ‘justiça’ do juiz pessoa física, e isso potencializa o protagonismo judicial.” (RAMOS, Glauco Gumerato. “Garantismo processual e poderes do juiz no projeto de CPC” in: Novas tendências do Processo Civil. Estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. v.2. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 642-643).
[3] “Definir inteligência artificial não é fácil. O campo é tão vasto que não pode ficar restrito a uma área específica de pesquisa; é um programa multidisciplinar. Se sua ambição era imitar os processos cognitivos do ser humano, seus objetivos atuais são desenvolver autômatos que resolvam alguns problemas muito melhor que os humanos, por todos os meios disponíveis. Assim, a IA chega à encruzilhada de várias disciplinas: ciência da computação, matemática (lógica, otimização, análise, probabilidades, álgebra linear), ciência cognitiva sem mencionar o conhecimento especializado dos campos aos quais queremos aplicá-la. E os algoritmos que o sustentam baseiam-se em abordagens igualmente variadas: análise semântica, representação simbólica, aprendizagem estatística ou exploratória, redes neurais e assim por diante. O recente boom da inteligência artificial se deve a avanços significativos no aprendizado de máquinas. As técnicas de aprendizado são uma revolução das abordagens históricas da IA: em vez de programar as regras (geralmente muito mais complexas do que se poderia imaginar) que governam uma tarefa, agora é possível deixar a máquina descobrir eles mesmos” (NUNES, Dierle. “Inteligência artificial e Direito Processual: vieses algorítmicos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas”. REPRO, vol. 285/2018 | p. 421 – 447 | Nov / 2018 DTR\2018\20746).
[4] Esse breve ensaio visa, a partir do processualismo constitucional democrático, problematizar um dos riscos no emprego das IAs na prolação de pronunciamentos judiciais e propõe a necessidade de se analisar o conteúdo da cláusula do devido processo constitucional como garantidora da transparência algorítmica, ou seja, com a necessária possibilidade de oferta de clareza no iter que gerou a “resposta” (output). No entanto, momentaneamente se defende a impossibilidade de delegação da atividade decisória para algoritmos de inteligência artificial em face da opacidade decisória e da ausência de controle acerca de seus peculiares vieses decisórios. (NUNES, Dierle. “Inteligência artificial e Direito Processual: vieses algorítmicos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas”. REPRO, vol. 285/2018 | p. 421 – 447 | Nov / 2018 DTR\2018\20746).
[5] Art. 4º Os sistemas decisórios baseados em inteligência artificial serão, sempre, auxiliares à tomada de decisão humana. § 1º A forma de supervisão humana exigida será compatível com o tipo, a gravidade e as implicações da decisão submetida aos sistemas de inteligência artificial. § 2º A responsabilidade civil por danos decorrentes da utilização de sistemas de inteligência artificial será de seu supervisor.
[6] “O Direito Processual procura disciplinar o exercício da jurisdição através de princípios e regras que confiram ao processo a mais ampla efetividade, ou seja, o maior alcance prático e o menor custo possíveis na proteção concreta dos direitos dos cidadãos. Isso não significa que os fins justifiquem os meios. Como relação jurídica plurissubjetiva, complexa e dinâmica, o processo em si mesmo deve formar-se e desenvolver-se com absoluto respeito aos direitos fundamentais de todos os cidadãos, especialmente das partes, de tal modo que a justiça do seu resultado possa ser alcançada pela adoção das regras mais propícias à ampla e equilibrada participação dos interessados, à isenta e adequada cognição do juiz e à apuração da verdade objetiva: um meio justo para um fim justo”. (GRECO, Leonardo. “Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual”. In: Processo Civil – estudos em homenagem ao Professor Doutor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, São Paulo: Atlas, 2012, pp. 273- 308).
[7] “The Fourteenth Amendment does not compel state courts or legislatures do adopt any particular rule for stablishing the conclusiveness of judgements in class suits nor does it compel the adoption of the particular rules thought by the United States Supreme Court to be appropriate for federal courts, but there is a failure of „due process of law‟ only where it cannot be said that the procedure adopted fairly insures the protection of the interests of absent parties who are to be bound by it” (Hansberry v. Lee, 311 U.S. 32, 61 S. Ct. 115, 1940). Embora diga respeito às class actions, o conceito é utilizado nos julgamentos repetitivos, sendo que nos EUA existe a preocupação com a legitimação adequada e o controle de representatividade, exatamente para legitimas a vinculação das decisões àquelas “partes ausentes”, ou seja, as esferas jurídicas individuais que serão atingidas pelo julgamento coletivo. O mesmo raciocínio pode ser utilizado para os julgamentos paradigmas.
[8] THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flavio Quinaud. “Novo CPC. Fundamentos e sistematização”. Rio de Janeiro: Forense. 2015. 2ª ed., p. 330.
[9] “É bem verdade que o Regimento Interno prevê a “afetação” de processos à Seção “em razão da relevância da questão jurídica, ou da necessidade de prevenir divergências entre as Turmas” (art. 127). Contudo, escolheu-se exatamente uma ação individual, de uma contratante do Rio Grande do Sul, triplamente vulnerável na acepção do modelo constitucional welfarista de 1988 – consumidora, pobre e negra – para se fixar o precedente uniformizador, mesmo sabendo-se da existência de várias ações civis públicas, sobre a mesma matéria, que tramitam pelo País afora. Ou seja, inverteu-se a lógica do processo civil coletivo: em vez da ação civil pública fazer coisa julgada erga omnes, é a ação individual que, por um expediente interno do Tribunal, de natureza pragmática, de fato transforma-se, em consequência da eficácia uniformizadora da decisão colegiada, em instrumento de solução de conflitos coletivos e massificados. Não se resiste aqui à tentação de apontar o paradoxo. Enquanto o ordenamento jurídico nacional nega ao consumidor-indivíduo, sujeito vulnerável, legitimação para a propositura de ação civil pública (Lei nº 7347/1985 e CDC), o STJ, pela porta dos fundos, aceita que uma demanda individual – ambiente jurídico-processual mais favorável à prevalência dos interesses do sujeito hiperpoderoso (in casu o fornecedor de serviço de telefonia) – venha a cumprir o papel de ação civil pública às avessas, pois o provimento em favor da empresa servirá para matar na origem milhares de demandas assemelhadas – individuais e coletivas. Aliás, em seus memoriais, foi precisamente esse um dos argumentos (a avalanche de ações individuais) utilizado pela concessionária para justificar uma imediata intervenção da Seção. Finalmente, elegeu-se exatamente a demanda de uma consumidora pobre e negra (como dissemos acima, triplamente vulnerável), destituída de recursos financeiros para se fazer presente fisicamente no STJ, por meio de apresentação de memoriais, audiências com os ministros e sustentação oral. Como juiz, mas também como cidadão, não posso deixar de lamentar que, na argumentação(?) oral perante a Seção e também em visitas aos gabinetes, verdadeiro monólogo dos maiores e melhores escritórios de advocacia do País, a voz dos consumidores não se tenha feito ouvir. Não lastimo somente o silêncio de D. Camila Mendes Soares, mas sobretudo a ausência, em sustentação oral, de representantes dos interesses dos litigantes-sombra, todos aqueles que serão diretamente afetados pela decisão desta demanda, uma gigantesca multidão de brasileiros (mais de 30 milhões de assinantes) que, por bem ou por mal, pagam a conta bilionária da assinatura-básica (lembro que só a recorrente, Brasil Telecom, arrecada, anualmente, cerca de três bilhões e meio de reais com a cobrança dessa tarifa – cfr. www.agenciabrasil.gov.br, notícia publicada em 8/6/2007).” Voto vencido do Ministro Herman Benjamin no julgamento do REsp nº 911.802/RS, sob a relatoria do Ministro José Delgado, j. 24.10.2007, DJe 1/9/2008.
[10] “O pressuposto equivocado é o de que mediante o julgamento de um único caso, sem um contraditório dinâmico como garantia de influência e não surpresa para sua formação, mediante a técnica de causa piloto, o tribunal superior (e existe a mesma tendência de ampliação dessa padronização nos juízos de segundo grau no CPC projetado) formaria um julgado (interpretado por nós como precedente) que deveria ser aplicado a todos os casos ‘idênticos’. Pode-se notar a intenção de estender o âmbito de aplicabilidade das decisões judiciais, fazendo com que o Judiciário no menor número de vezes possível tenha que se aprofundar na análise de questões similares, tornando-se mais eficientes quantitativamente através do estabelecimento de padrões a serem seguidos nos casos idênticos subsequentes, sob o argumento de preservação da isonomia, da celeridade, da estabilidade e da previsibilidade do sistema”. (NUNES, Dierle; LACERDA, Rafaela. “Contraditório e precedentes: primeiras linhas”. In: Novas tendências do Processo Civil. Estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. vol. 2. Salvador: Jus Podivm. 2014, p. 346).
[11] “O que se quer dizer, então, é que o processo (civil, penal, trabalhista ou de qualquer outra categoria) só será eficiente se for capaz de produzir resultados de boa qualidade. E isso mostra que a ideia de um ‘embate’ entre celeridade e qualidade é absolutamente equivocada. Não se trata de escolher entre um processo célere ou um processo capaz de produzir resultados justos. Impende, isso sim, buscar a construção de um sistema de prestação de justiça capaz de produzir resultados justos da forma mais eficiente possível. Não há processo civil que seja, ao mesmo tempo, moroso e eficiente. Mas não há, tampouco, processo civil que seja eficiente, mas não produza resultados justos. Afinal, como visto, não há eficiência que conduza a resultados qualitativamente ruins. (CÂMARA, Alexandre Freitas. O Direito à duração razoável do processo: entre eficiência e garantias. Revista de Processo. 223/2013.
[12] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 336.
[13] NUNES, Dierle. LACERDA, Rafaela. Contraditório e precedentes: primeiras linhas. In: Novas tendências do Processo Civil. Estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. vol. 2. Salvador: Jus Podivm. 2014, p. 371.
[14] “[…]o que importa para que se possa falar em democracia é que exista um procedimento através do qual a participação dos interessados garanta que eles serão não apenas destinatários, mas também autores das normas. Fazendo uma transposição para o Direito Processual, uma decisão judicial somente poderia ser dita democrática (sem caráter autoritário) quando não fosse imposta pelo magistrado, mas sim resultante da construção coparticipada dos interessados no resultado do processo. A decisão judicial só é democrática quando os destinatários da norma também forem tratados como seus autores. (COUTINHO, Carlos Marden Cabral; CATERINA, Rafaela Marjorie de Oliveira. (I)legitimidade das decisões judiciais: análise dos precedentes à brasileira e do acesso à justiça no novo CPC. In: Novas tendências do processo civil. (FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno; NUNES, Dierle; DIDIER JR., Fredie, MEDINA, José Miguel Garcia; FUX, Luiz; CAMARGO, Luiz Henrique Volpe; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (org.). Salvador: ed. JusPodivm, 2014, v. 2, p.274).
[15] “A adoção do contraditório como influência na formação e aplicação dos precedentes, especialmente em sistemas nos quais estes são formados mediante o uso da já aludida técnica de causa piloto, e buscando uma aplicação pró-futuro, torna essencial percebermos que em caso de dissonância nos votos proferidos no acórdão, dificilmente encontraremos uma única ratio decidendiapta a ser utilizada num caso futuro. (NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Precedentes no CPC/2015. Op. cit).
[16] “Do mesmo modo, em um julgamento colegiado pode acontecer que os juízes que integram a câmara ou turma de julgamento cheguem a um consenso sobre a solução a ser dada para o caso sub judice mas divirjam acerca das normas gerais que são concretizadas no caso em questão e justificam a solução adotada: Em uma corte de cinco juízes, ‘não há ratio decidendi da corte a não ser que três pronunciem a mesma ratio decidendi’ [Montrose 1957:130]. Nesse sentido, Whittaker recorda o caso ‘Shogun Finance Ltd. Vs Hudson’ em que o raciocínio de cada um dos juízes com compõem a maioria – uma maioria de três a dois – difere muito significativamente dos demais: ‘O resultado estava claro: uma maioria de três entre cinco juízes com acento na House of Lordssustentou que o fundador não havia adquirido o título e, portanto, não poderia em tais circunstâncias tê-lo repassado a Hudson, aplicando-se a máxima nemo dat quod non habet. Não obstante, a maioria apresentava diferenças muito significativas quanto ao raciocínio seguido pelos seus componentes’ [Whittaker 2006: 723-724]. Em um caso como esse não se pode falar em um precedente da corte acerca das normas (gerais) adscritas que constituem as premissas normativas adotadas por cada um dos juízes da maioria, embora se possa falar, eventualmente, de uma decisão comum constante da norma individual que corresponde rigorosamente aos fatos do caso e às conclusões adotadas. Apenas há um precedente do tribunal em relação às questões que foram objeto de consenso dos seus membros. ‘Quando a fundamentação divergente [no caso de votos convergentes no dispositivo e convergentes na motivação] descortina-se incompatível, tem-se uma decisão despida de discoverable ratio, e, portanto, não vinculante no que concerne à solução do caso’ [Cruz e Tucci 2004:178]. Isso não impede, porém, que se possa falar em uma ratio decidendi da opinião de um juiz e que a regra inferida dessa ratio seja utilizada como precedente em um caso futuro. É claro que essa regra está menos revestida de autoridade que outras que tenha sido objeto de consenso de toda a corte, mas isso – apenas de limitar – não extingue por completo seu valor como precedente” (BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. “Teoria do precedente judicial”. São Paulo: Noeses. 2012, p. 272-273).
[17] “Existem basicamente três modelos estruturais da motivação das decisões judiciais propostos pela doutrina: o lógico-dedutivo, o indutivo e o argumentativo. […] O método lógico-dedutivo manifesta-se mediante um processo silogístico, caracterizado pela adoção de certas premissas predeterminadas (premissa maior) às quais confrontam-se elementos variáveis (premissa menor) para a extração de uma conclusão. […] O modelo indutivo de raciocínio judicial apoia-se em doutrinas antiformalistas que pretendem substituir a vontade do legislador pela criatividade do juiz e sua suposta aptidão para encontrar o ‘verdadeiro direito’ de cada caso concreto. Para tanto, utiliza-se, supostamente, o método indutivo de investigação científica, segundo o qual as conclusões seriam obtidas a partir da observação de fenômenos concretos. […] (O modelo argumentativo) decorre de duas premissas. A primeira é que não existe uma exata correspondência entre a motivação e a tomada de decisão, a começar pelo fato de que elas se manifestariam em momentos significativamente distintos. A motivação viria em um momento posterior, constituindo uma atividade justificativa da decisão previamente tomada. A segunda, e mais importante, é que o Direito não é uma ciência puramente lógica, mas sobretudo argumentativa. Consequentemente, a motivação também não poderia ser um ato puramente lógico, mas retórico, pelo qual o magistrado deveria justificar a decisão tomada a partir de técnicas discursivas. Em outras palavras, a motivação seria um discurso argumentativo” (LUCCA, Rodrigo Ramina de. Op. cit. p. 159-167).