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Intervenção do Ministério Público Federal em ação de mandado de segurança

5 de julho de 2005

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DESCABIMENTO DE SUA RECUSA EM LAVRAR PARECER, SOB O FUNDAMENTO DE AUSÊNCIA DE INTERESSE PÚBLICO PRIMÁRIO EM LITÍGIO

Tem se tornado comum, em ações de mandado de segurança, o Ministério Público Federal recusar-se a emitir parecer examinando o mérito da demanda, ou sequer se encontram presentes algumas das situações que autorizam a extinção do feito sem julgamento do mérito, sob o fundamento de não ter restado demonstrada a existência de “interesse público”.

“Interesse público” este que seria o primário, atinente à toda, ou à maior parte, da sociedade, em contraste com o secundário, em que o interessado mais direto é o Estado.

Ao que se depreende das petições “padronizadas”, em tudo idênticas, juntadas às dúzias, esse entendimento foi aprovado quando do XVI Encontro Nacional dos Procuradores da República realizado em 1999 em Curitiba, e sufragado pelo Procurador Geral da República em Parecer no processo PGR no. 6599/2003-91, datado de 29.7.2003, nos seguintes termos:

”O Ministério Público, na ação mandamental, não tem o dever de, sempre, enfrentar o mérito da controvérsia. Deve, sim, manifestar-se sempre, e motivadamente, em juízo necessariamente prévio, sobre se a demanda posta significa controvérsia sobre interesse social, ou individual, indisponível, ou não. Negada a presença do interesse indisponível, o feito segue sem a sua intervenção, restringendo-se a res in iudicium deducta a litígio estrito entre os que postulam”.

Tal posição, a meu ver, incorre em equívoco.

Primeiro, histórico.

Ao tempo da Lei no. 1.533/51, o Ministério Público não era o que é hoje; não tinha a estrutura administrativa, as largas atribuições que a Constituição Federal de 1988 veio a lhe conceder; suas ações muito raramente poderiam dar azo a alguma repercussão social de maior monta.

Ao mesmo tempo, a ação de mandado de segurança, filha direta da doutrina brasileira do habeas corpus, instituía um poderosíssimo instrumento de controle da Administração Pública, extremamente célere, com limitação da cognição possível de ser feita aos fatos que pudessem ser comprovados documentalmente, e permitindo-se que as informações fossem prestadas pela autoridade administrativa, independentemente de intervenção de advogado do Estado.

Daí a idéia de se colocar o Ministério Público Federal como custos legis, de modo a verificar a regularidade do procedimento, da intervenção da autoridade administrativa e, por que não, do próprio direito que constituía o objeto da ação.

A premissa, dentro desse sistema, era que o próprio procedimento do mandado de segurança era bastante para qualificar o interesse nele defendido como “público” e, é de acrescentar-se, interesse público primário, e não, secundário.

A correção deste argumento pode ser demonstrada com o exemplo da admissibilidade da ação de mandado de segurança em procedimento licitatório instaurado por sociedade de economia mista.

Como ilustrado pela decisão proferida pela Colenda 1a. Turma do Eg. STJ quando do julgamento do RESP no. 299834-RJ, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, dec. um. pub. DJU 25.2.2002, p. 222, cuja respectiva ementa passo a transcrever, em parte:

“Ato praticado por sociedade de economia mista em licitação pública expõe-se a mandado de segurança. É que a incidência do art. 267, VI do CPC pressupõe o reconhecimento de que o pedido enfrenta impossibilidade. Sem a demonstração de tal pressuposto, não há como declarar-se extinto o processo. (…)”.

É o próprio procedimento da ação de mandado de segurança que traz ínsito a qualificadora da existência de interesse público primário.

A não ser assim, por que o Ministério Público Federal não propõe Ação Direta de Inconstitucionalidade do disposto no art. 10 da Lei no. 1.533/51, como ofensivo ao art. 129 da CF/88?

Não haveria mais necessidade, se julgada procedente tal ação, de remeter-se os autos da ação de mandado de segurança ao Ministério Público, ato processual este que continua a ser obrigatório e sem o qual o Ministério Público inexoravelmente recorre, alegando nulidade por inobservância de formalidade essencial à causa.

Mas por que a essencialidade se é o Ministério Público quem escolhe quando haverá interesse público primário digno de ser por ele fiscalizado e defendido, e quando não haverá?

Sim, porque se até o Procurador Geral da República adotou aquele entendimento aqui apontado como equivocado, não haveria como o juiz compelir o órgão do Ministério Público de primeira categoria a oficiar.

E o pior: jamais os órgãos do Ministério Público esclarecem os critérios segundo os quais entenderam que num caso não haveria interesse público primário a ser defendido, e, em outro, encontrar-se-ia ele presente.

A falta de justificação desta seleção importa em violação ao disposto no art. 37, caput da CF/88, tendo em vista que não é apenas o Poder Judiciário quem está constitucionalmente obrigado a motivar suas decisões, mas todos os órgãos e entidades integrantes da Administração Pública, e isto inclui, como não poderia deixar de ser, o Ministério Público.

A cada vez que o Ministério Público Federal, em um caso concreto, deixa de motivar seu entendimento de que o interesse público primário não se encontraria presente, atua arbitrariamente.

Quem perde com essa atuação arbitrária é a sociedade, que deixa de conhecer as razões que levaram a instituição encarregada constitucionalmente de defendê-la a decidir abster-se, em uma causa específica.

Ainda há tempo para que o Ministério Público reflita melhor sobre sua conduta, e de forma consciente e conseqüente, mude de procedimento, tornando exceção o que já vem se tornando regra geral: sua abstenção imotivada em ação que, ao fim das contas, goza de estatura constitucional.

A cada parecer “padronizado” em que atuar burocraticamente, abstendo-se de intervir sem declinar os motivos pelos quais, no caso concreto, não estaria a vislumbrar interesse público relevante e digno de ser defendido, estará passo a passo perdendo sua fonte de legitimidade primeira, que é a sociedade.

Porque é nas agruras das pequenas coisas do cotidiano, do dia-a-dia, onde as pessoas carecem mais de profissionais e instituições qualificados para defender seus interesses e direitos, levados tão pouco a sério pelos órgãos e entidades da Administração Pública.