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Irrevogabilidade das decisões judiciais por medida provisória ou lei congressual

5 de novembro de 2003

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A Medida Provisória nº 131, de 25 de setembro de 2003, geneticamente modificada por interesses econômicos alienígenas e dominadores do mercado global, seguindo as pegadas da Medida Provisória nº 113, de 26 de março de 2003, convertida na Lei nº 10.688, de 13 de junho de 2003, ignora e afronta sentenças da Justiça Federal, que, desde 10 de agosto de 1999, proíbem o plantio, em escala comercial, da soja transgênica (round up ready), em todo o território nacional, até que se apresente Estudo Prévio de Impacto Ambiental, na forma preconizada pelo art. 225, § 1º, IV, da Constituição Federal.

A malsinada Medida Provisória nº 131, de 2003, ao liberar o plantio e a comercialização da soja geneticamente modificada, em algumas regiões do país, sem o indispensável Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) incita nossos agricultores à prática do crime de desobediência à ordem judicial, agredindo, expressamente, direitos fundamentais (vida, liberdade, segurança e meio ambiente ecologicamente equilibrado), em afronta às garantias constitucionais da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), da segurança jurídica (CF, art. 5º, XXXVI), da independência e harmonia entre os Poderes da União (CF, art. 2º) e do próprio Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput).

Se antes da vigência da Emenda Constitucional nº 32, de 2001, o abuso na edição e reedição de medidas provisórias caracterizava flagrante atentado ao Estado Democrático de Direito, por ato arrogante do Presidente da República ante a omissão agressora do Congresso Nacional, agora, esse abuso normativo se qualifica, já não mais pelo excesso editorial das medidas provisórias, feito exceção derrogatória do postulado da divisão funcional do poder, mas pela tipificação criminal do atentado expresso contra a Constituição Federal, especialmente quando o Presidente da República edita ato normativo contra o cumprimento das decisões judiciais.

Nesse contexto, não se deve ignorar que o princípio da responsabilidade dos governantes, nos governos democráticos, fora adotado, em plenitude, pela Constituição da República Federativa do Brasil, em termos graves e expressos (CF, arts. 85 e 86).

As decisões judiciais que proíbem a liberação dos transgênicos, no Brasil, até que se apresente o Estudo Prévio de Impacto Ambiental, caracterizam-se como atos jurídicos perfeitos, que preenchem todos os requisitos legais para sua validade e foram concluídos na forma da lei processual em vigor e da Constituição Federal, gerando uma situação jurídica própria de coisa julgada formal, na consciência coletiva e difusa de que todos temos direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo, para as presentes e futuras gerações (CF, art. 225, caput).

Essas decisões judiciais têm força de lei entre as partes e só podem ser reformadas pelo próprio Poder Judiciário, através das vias recursais adequadas, e nunca mediante atos normativos do Executivo ou do Legislativo, pois a lei não prejudicará o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (CF, art. 5º, XXXV), sob pena de quebra do princípio da independência e harmonia entre os Poderes da República e o total aniquilamento do Estado Democrático de Direito.

No plano da eficácia jurídica, não vale a Medida Provisória ou a lei que a converta em adoção normativa, mas, valem as sentenças judiciais, que lhe são anteriores e já proibiam o plantio, em escala comercial, da soja transgênica, no Brasil, sem o EIA/RIMA, desde 1999, devendo as partes, no processo, e o douto Ministério Público Federal cobrar do Poder Judiciário o seu integral cumprimento, toda vez que forem contrariadas em sua autoridade e determinação mandamental, com as conseqüências de natureza civil e penal.

Se não for assim, sempre que as decisões do Poder Judiciário contrariem interesses do Poder Executivo ou mesmo os gerenciados das multinacionais, editar-se-á medida provisória, a tempo e gosto desses interesses, para anular-se as decisões da Justiça. E, a partir daí, já não teremos mais o Estado de Direito, nem segurança jurídica, nem mesmo paz e tranqüilidade social. Instaurar-se-á o total arbítrio e a truculência do Poder Executivo, no País, com o absolutismo das forças gananciosas do mercado internacional. Nesse contexto, só nos restará o velório da soberania nacional.

Nesse propósito, afiguram-se bem oportunos, ainda, os lúcidos comentários de João Barbalho sobre o Poder Judiciário, ante a primeira Constituição Republicana do Brasil, na consideração de que “a magistratura que agora se instala no País, graças ao regime republicano, não é um instrumento cego ou mero intérprete na execução dos atos do Poder Legislativo. Antes de aplicar a lei, cabe-lhe o direito de exame, podendo dar-lhe ou recusar-lhe sanção, se ela lhe parecer conforme ou contrária à lei orgânica. (…) É a vontade absoluta das Assembléias Legislativas, que se extinguem, nas sociedades modernas, como se hão extinguido as doutrinas do arbítrio soberano do Executivo. A função do liberalismo, no passado, diz o eminente pensador inglês, foi opor um limite ao poder violento dos reis; o dever do liberalismo, na época atual, é opor um limite ao poder ilimitado dos Parlamentos. (…) Aí está posta a profunda diversidade de índole que existe entre o Poder Judiciário, tal como se achava instituído no regime decaído e aquele que agora se inaugura, calcado sobre os moldes democráticos do sistema federal. De poder subordinado, qual era, transforma-se em poder soberano, apto, na elevada esfera de sua autoridade, para interpor a benéfica influência de seu critério decisivo, a fim de manter o equilíbrio, a regularidade e a própria independência dos outros Poderes, assegurando ao mesmo tempo o livre exercício dos direitos do cidadão.”

Não destoa desse discurso histórico e sempre atual a posição defendida pelo eminente Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, na fala altiva de que “a Magistratura não pode anular-se como poder político e nem deixar-se subjugar pelos que pretendam impor-lhe o vínculo da dominação institucional, convertendo e degradando o Poder Judiciário à condição de instância desqualificada de submissão, reduzida, de maneira inaceitável, em seu disponível grau de independência e liberdade.”

Nesse tom, já advertia Pimenta Bueno, nos idos de 1857, com estas letras: “Tirai a independência do Poder Judiciário e vós lhes tirareis sua grandeza, sua força moral, sua dignidade; não tereis mais magistrados, e sim, comissários, instrumentos ou escravos de um outro poder (…). Não é pois no amor ou no interesse dos juízes, que o princípio vital de sua independência deva ser observado como um dogma, e sim,  por amor dos grandes interesses sociais.”

A Medida Provisória nº 131, de 2003, ignora a autoridade das decisões judiciais, na liberação da soja geneticamente modificada, agredindo os postulados constitucionais da segurança jurídica, no País. Apresenta-se, assim, perante a sociedade brasileira, como ato normativo flagrantemente inconstitucional, sem nenhum efeito jurídico.

Essa Medida Provisória, ainda que venha a ser, abusivamente, convertida em lei, é res nullius, é um nada jurídico, porque golpeia a Constituição da República e atenta contra o Estado Democrático de Direito e a segurança jurídica da Nação, caracterizando-se como ato emissário da ganância capitalista, na orquestração desmoralizadora do Poder Judiciário, visando descredenciá-lo perante a sociedade global. Levanta-se tal Medida, como perigoso precedente normativo, em favor dos detentores do poder do capital contra a ação humanitária do Poder Judiciário, que não se deixa encantar pelo canto mágico e ilusório das sereias, nas vitrines do mercado universal das multinacionais, nem se rende ao imaginário da “Besta do Apocalipse”, no banquete financeiro dos mercados, para comungar da hóstia transgênica de Satanás, porque já se comprometeu com a vida e a liberdade das pessoas, no contexto social, onde a esperança, sequer, venceu o medo, na construção de um mundo melhor para todos.