Natureza jurídica da delação premiada

31 de maio de 2017

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Trago aqui um breve comentário ao HC 127.483-PR, que teve na relatoria o ministro Dias Toffoli, julgado em 27/8/2015 pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, pois considero-o paradigmático para estabelecer a natureza jurídica das transações envolvendo delação premiada na esfera criminal. Neste comentário busco aclarar o que entendo ser a natureza jurídica da delação premiada.

No acórdão em tela, é importante mencionar que o STF fixa a natureza da delação premiada –espécie de colaboração premiada – como um meio de obtenção de prova, seguindo, pois, os estritos termos da lei 12.850/13. O voto do Relator, seguido pela maioria da Corte, demonstra claramente que a transação é um meio de obtenção de prova, e se deve estruturar na forma de um acordo, seja na etapa administrativa, seja na etapa processual criminal “stricto sensu”. Daí emergem os requisitos clássicos de qualquer acordo.

Deve-se atentar aos pressupostos de validade dos acordos, e da própria delação: capacidade das partes; objeto lícito, possível, determinado ou determinável e a forma prescrita em lei (no caso das transações penais, deve estar expressamente prevista em lei). Além disso, transação tem requisitos próprios: (i) um acordo de vontade entre interessados titulares de direitos (quem não titulariza direitos, não pode participar do acordo); (ii) a extinção ou a prevenção de litígios; (iii) a reciprocidade de concessões legítimas, proporcionais, razoáveis ou racionalmente rastreáveis (parâmetros de juridicidade das concessões).

O STF aduz, pois, tratar-se a colaboração premiada de um “negócio jurídico processual”, eis que seu objeto seria “a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material), concernente à sanção premial a ser atribuída a esta colaboração”. A “sanção premial” não pode ser uma “criação” arbitrária das partes, fruto de um capricho, pois corresponderá, modo proporcional e razoável, à colaboração do beneficiário e à veracidade de suas informações.

O conceito de “negócio jurídico processual” há de ser esclarecido. Não se pode adotar, aqui, um modelo oriundo do Código de Processo Civil, pois estamos na esfera penal, e o instituto em tela, a delação ou a colaboração premiada, constitui um meio de obtenção de prova a ser utilizado em procedimento administrativo (inquérito policial ou procedimento investigativo criminal), ou no próprio processo penal.

Cumpre lembrar que o negócio jurídico processual seria uma convenção de natureza processual. No caso em exame, a transação vai além dos aspectos meramente processuais. O STF assinala que esse “negócio jurídico processual” tem uma natureza mista de negócio jurídico personalíssimo processual e material. Não se pode, pois, confundir esse instituto com o negócio jurídico processual do CPC.

Emerge deste mesmo acórdão do STF que, na fase preambular da homologação, o requisito para aquela etapa é meramente formal, tal como se poderia conceber na vetusta jurisprudência que cuidava do juízo de recebimento de uma denúncia. Assim, o acórdão estabeleceu que “a personalidade do colaborador não constitui requisito de validade do acordo de colaboração, mas sim vetor a ser considerado no estabelecimento de suas cláusulas, notadamente na escolha da sanção premial a que fará jus o colaborador, bem como no momento da aplicação desta sanção pelo juiz na sentença”. E, nessa linha, a confiança do agente colaborador não é requisito para aferir a validade ou a existência do acordo de colaboração no juízo de homologação.

Todavia, o mesmo acórdão ora analisado assinala que os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança “tornam indeclinável o dever estatal de honrar o compromisso assumido no acordo de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada”, o que exige uma contraprestação ao adimplemento da obrigação por parte do colaborador”.

Desta forma, percebe-se que a base de direito material reside também nas contraprestações do próprio colaborador, a serem devidamente satisfeitas e atendidas ao longo desta relação obrigacional de direito material.

É certo que, na mesma linha anteriormente já exposta, o STF também menciona que o acordo de colaboração premiada “não pode ser impugnado por co-autores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento no relato da colaboração e seus possíveis resultados”.

Isso significa, noutras palavras, que os delatados ou terceiros não teriam direitos relacionados à impugnação deste negócio jurídico, na medida em que seria um “acordo personalíssimo”, na dicção do STF. Não é bem assim. Tal tese deve ser vista com algumas cautelas, na medida em que o direito do colaborador pode entrar em choque com os direitos dos delatados, especialmente considerando que a implementação de todas as expectativas do colaborador depende da confirmação das assertivas postas em suas declarações, que constituem um substrato material ou a chamada “justa causa” do acordo. Logo, inúmeros direitos fundamentais do delatado dependem da impugnação ao próprio acordo do delator, se considerarmos pelo ângulo substancial.

O fato de o STF negar ao delatado o direito de impugnar o acordo de colaboração daquele que o delata em juízo deve ser visto num determinado contexto. Na hipótese, a decisão não impede que o delatado possa ter acesso a esse acordo na defesa de seus direitos fundamentais perante o Poder Judiciário. Ao contrário, o STF sinaliza que será assegurado ao delatado, pelo contraditório judicial, o direito de confrontar as declarações do colaborador e as provas com base nele obtidas. No fundo, a reação do delatado é que poderá tornar inválida a própria transação efetivada pelo delator, na medida em que este deverá comprovar suas declarações para fazer valer substancialmente seu acordo.

O STF assegura ao delatado, no exercício do contraditório, “o direito de inquirir o colaborador, seja na audiência do interrogatório, seja em audiência especialmente designada para este fim”. Nesse mesmo acórdão, o STF consolidou o entendimento de que aos litisconsortes penais passivos deve ser consolidado o direito de formular reperguntas aos correus no respectivo interrogatório judicial, citando farta jurisprudência da Corte nesta mesma direção.

É evidente, pois, que as declarações do delator integram o que se poderia aqui designar como uma espécie de “justa causa” ou base de direito material da própria transação ou daquilo que o STF chama de “negócio jurídico processual”, que é o próprio acordo de delação premiada.