Judicialização da Saúde e limitações orçamentárias

17 de maio de 2022

Desembargador Federal do TRF-2a Região, Professor Titular de Direito Financeiro da UERJ

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Na última década, vivenciamos no Brasil o fenômeno do ativismo judicial nas políticas públicas, sobretudo na área da saúde, em que se multiplicam, em progressão geométrica, as ações judiciais propostas por cidadãos em face do Estado, buscando o fornecimento de medicamentos, a realização de exames e tratamentos médicos, procedimentos cirúrgicos, internação hospitalar, dentre outros, seja por estes não integrarem o rol de produtos e serviços presentes no Sistema Único de Saúde (SUS) ou, simplesmente, por não terem sido regularmente disponibilizados devido à deficiência de recursos humanos ou materiais em determinada instituição médica pública.

Tais medidas judiciais, comumente denominadas de “judicialização da saúde”, são baseadas no art. 196 da Constituição Federal de 1988, que prescreve ser a saúde um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. E as demandas são promovidas em face de qualquer um dos entes federativos, uma vez que o art. 23, inciso II, da Constituição estabelece a responsabilidade solidária entre União, estados e municípios para “cuidar da saúde e assistência pública”.

Segundo relatório de demandas judiciais relacionadas à saúde elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), até 2014, tramitavam mais de 330 mil ações nos Tribunais de Justiça estaduais, e mais de 60 mil ações nos Tribunais Regionais Federais, todas envolvendo a temática da assistência à saúde. Nos últimos cinco anos, foram desembolsados cerca de R$ 2,3 bilhões pelo Ministério da Saúde para cumprir as respectivas decisões judiciais. Apenas em 2014, o valor destinado ao cumprimento de determinações judiciais, no âmbito da União, foi de cerca de R$ 871 milhões.

Este cenário pode ser justificado por algumas razões: primeiro, porque a Constituição Federal de 1988, ao mesmo tempo em que foi pródiga ao arrolar e assegurar os direitos sociais, inclusive o da saúde, garantiu maior acesso à Justiça, em ambas as concepções – formal e material; segundo, porque na visão jurídica moderna esses direitos, constitucionalmente previstos, passam a ter efetividade, criando para o Estado um poder-dever de oferecê-los ao cidadão; terceiro, devido ao amadurecimento da democracia brasileira, com a inquestionável conscientização da população dos seus direitos de cidadania; quarto, porque o administrador público nem sempre dimensiona corretamente ou confere prioridade a certas rubricas orçamentárias, especialmente, como infelizmente temos visto, para a área da saúde; e, finalmente, em quinto lugar, por incapacidade de gestão da Administração Pública ou ineficiência na aplicação dos recursos destinados à saúde, revelando a precariedade do sistema de saúde brasileiro.

Não obstante, de nada adiantam exaustivos debates sobre a efetividade e o alcance dos direitos fundamentais e sociais, sobre a possibilidade de judicializar estes direitos ou sobre as atribuições mínimas e máximas do Estado perante a coletividade se não houver recursos financeiros suficientes para atender aos anseios de uma sociedade mais consciente e ativa. Afinal, não basta arrecadar o necessário, de forma equitativa e equilibrada, uma vez que a administração dos recursos deve ser feita de forma eficiente, e a sua aplicação precisa ser realizada criteriosamente para que se possa atender às necessidades públicas da maneira mais ampla e satisfatória possível, em todos os cantos deste imenso País, de dimensões continentais e repleto de desigualdades regionais, demográficas, econômicas e sociais.

Reconhece-se que essa problemática não é nova e muito menos simples, sendo o assunto já componente de inúmeros estudos, inclusive objeto do “Fórum da Saúde” criado pelo CNJ. Por isso, pretende-se, a partir deste singelo estudo, promover reflexões sobre o tema, partindo-se de uma revisão geral da questão para a análise específica da situação perante a Justiça Federal brasileira.

A judicialização na área de saúde

A Constituição de 1988 relaciona e assegura uma série de direitos sociais, que criam direitos para os cidadãos e fixam deveres para o Estado nessas áreas. Isso porque, como ensina Luís Roberto Barroso:

(…) as normas constitucionais deixaram de ser percebidas como integrantes de um documento estritamente político, mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, e passaram a desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais. Nesse ambiente, os direitos constitucionais em geral, e os direitos sociais em particular, converteram-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportando tutela judicial específica. (…) Sempre que a Constituição define um direito fundamental ele se torna exigível, inclusive mediante ação judicial.

Barroso denomina esses direitos que o cidadão pode exigir em face do Estado de “direitos subjetivos públicos”. Segundo o constitucionalista, um direito subjetivo cumula três características: a) corresponde sempre a um dever jurídico; b) é violável; c) a ordem jurídica coloca à disposição de seu titular um meio jurídico – que é a ação judicial – para exigir-lhe o cumprimento, deflagrando os mecanismos coercitivos e sancionatórios do Estado.

Ao analisar esse novo contexto do Direito Constitucional contemporâneo, considerado pela doutrina como neoconstitucionalismo, Ana Paula de Barcellos esclarece que:

(…) um dos traços fundamentais do constitucionalismo atual é a normatividade das disposições constitucionais, sua superioridade hierárquica e centralidade no sistema e, do ponto de vista material, a incorporação de valores e opções políticas, dentre as quais se destacam, em primeiro plano, aquelas relacionadas com os direitos fundamentais.

A partir dessa conformação jurídica, ao se identificar que o texto constitucional prevê um direito ou uma garantia de natureza fundamental, assentado como sendo um dever do Estado de fornecê-lo individual ou coletivamente, surgiria, para o cidadão necessitado daquele bem ou serviço, a legitimidade para demandar judicialmente tal prestação estatal, ainda que esta não se encontrasse prevista no orçamento público como sendo uma despesa pública devidamente programada. Segundo Flávio Galdino, “essa exigibilidade chama-se sindicabilidade (justicialidade ou justiciabilidade) e representa a possibilidade de acesso ao aparato estatal jurisdicional para tutela de direitos.”

Haveria, em caso de omissão ou inação do Poder Público, um deslocamento da escolha da realização da despesa pública, que, naqueles casos específicos demandados judicialmente, deixaria a esfera decisória do administrador público e passaria para a do Poder Judiciário. A decisão judicial, então, obrigaria a Administração Pública a oferecer o bem ou o serviço ao cidadão beneficiado pelo provimento jurisdicional.

Registre-se que a terminologia “judicialização” se destaca mundialmente com a obra “The global expansion of judicial power” de Neal Tate e Torbjorn Vallinder, que estabelecem como condições essenciais para a sua efetivação: um ambiente de regime democrático estabelecido; uma clara separação de poderes; e a existência de uma política de direitos inequivocamente posta.

Se há algumas poucas décadas tais previsões constitucionais eram consideradas como meros parâmetros a serem seguidos e objetivos a serem atingidos pelo administrador público, indicando as prioridades na programação da realização das políticas e despesas públicas, hoje, com a efetividade normativa da Constituição e com a ampliação e o fortalecimento do exercício dos direitos de cidadania, permite-se que a sociedade possa exigir judicialmente do Estado a realização dessas despesas públicas, desde que se referiram a Direitos Sociais e Fundamentais. É a hoje amplamente denominada judicialização dos direitos constitucionais.

A saúde é um direito fundamental, e as políticas públicas nesta área são consideradas, no Brasil, de acesso universal e igualitário, e de atendimento integral. Isso porque a Constituição Federal de 1988, ao utilizar no art. 196 a expressão “direito de todos e dever do Estado”, estabeleceu que o acesso à saúde independe da condição financeira do cidadão, tratando-se de um direito social e não de natureza assistencial.

A base normativa das políticas públicas em saúde apresenta-se na denominada Lei Orgânica da Saúde (LOS/ Lei nº 8.080/1990), que regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, estabelecendo que a execução poderá ser realizada de forma isolada ou em conjunto e que a organização do sistema será regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente. Fixa, ainda, regras de distribuição da competência entre a direção nacional, a direção estadual e a direção municipal do SUS. Juntamente com a LOS, existe a Lei nº 8.142/1990, tratando da participação da comunidade na gestão e planejamento da saúde, das transferências intergovernamentais e do financiamento do sistema.

No contexto do SUS, a União é a principal financiadora do sistema. Porém, como não possui uma estrutura organizada em todo o território nacional, distribui aos entes regionais, em especial aos Municípios (mais próximos dos usuários), a responsabilidade pela execução de grande parte das ações.

Para tanto, os recursos financeiros da saúde são movimentados por meio de fundos contábeis, cabendo à direção do SUS em cada esfera de governo a sua utilização e ordenação de despesa. Tais fundo são: o Fundo Nacional de Saúde (FNS), gerido pelo Ministério da Saúde; o Fundo Estadual de Saúde (FES), administrado pelo Secretário Estadual de Saúde; e o Fundo Municipal de Saúde (FMS), conduzido pelo secretário municipal de Saúde ou pelo diretor de saúde quando não houver Secretaria.

A partir dos conceitos de universalidade e integralidade, entende-se que o acesso à saúde não se limita aos procedimentos e medicamentos aprovados e disponibilizados pelas políticas públicas existentes, devendo também ser assegurados aos cidadãos outros procedimentos e medicamentos não contemplados mas que se revelam necessários à manutenção da vida.

A esse respeito, o Poder Judiciário tem sido constantemente procurado para manifestar-se na garantia e obtenção do acesso a medicamentos e procedimentos na área da saúde, pronunciado-se no sentido de que as ações e serviços de saúde devem ser assegurados de forma integral de modo que não estarão limitados a aqueles procedimentos e aos medicamentos introduzidos nas políticas públicas, mas decidiu que, em geral, deve ser privilegiado o tratamento fornecido e os medica- mentos disponibilizados nas políticas públicas, ressalvadas as hipóteses específicas nas quais estiver comprovado que o tratamento não é eficaz (STA n. 175).

Não obstante já amplamente disseminada e acolhida no Brasil, a judicialização dos direitos fundamentais recebe constantemente uma série de questionamentos. A grande maioria destas críticas se revela nas contestações e defesas apresentadas pelos entes públicos demandados nas milhares de ações que tramitam hoje no Poder Judiciário brasileiro.

O primeiro argumento crítico baseia-se no suposto caráter programático das normas constitucionais, que, em lugar de conter comandos específicos e concretos, atribuiria abstratamente aos órgãos públicos (de modo discricionário e com certa liberdade) a tarefa de realizar as políticas públicas nelas contidas. Nesta concepção, os direitos sociais seriam desprovidos de eficácia normativa, representando meras sugestões ou indicações de um “estado ideal” a ser atingido, sem o poder de vincular o administrador público.

O segundo aspecto contrário residiria numa possível violação ao princípio da separação de Poderes, uma vez que o Poder Judiciário estaria exercendo função privativa do Poder Executivo. Este argumento conduz a outra consideração: que a judicialização acarretaria decisões desprovidas de tecnicidade, uma vez que não levaria em consideração os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas estabelecidas pelo Ministério da Saúde.

O terceiro argumento crítico parte da lógica de que a judicialização da saúde privilegiaria o cidadão considerado isoladamente, em detrimento do direito de toda a sociedade, no entrechoque do interesse individual versus o interesse coletivo, beneficiando, especialmente, aqueles com maior acesso ao Judiciário, malferindo-se, por fim, a isonomia e o interesse público.

Já o quarto questionamento é de ordem financeira e orçamentária, no que se refere ao equilíbrio fiscal e à limitação dos recursos públicos, pois uma vez determinado judicialmente o fornecimento de um bem ou serviço, o custo para a sua realização recairá sobre uma previsão orçamentária que não o contemplava originariamente, gerando uma despesa pública sem a respectiva fonte de financiamento e esbarrando na questão da “reserva do possível” ou “teoria dos custos dos direitos”. Esta ideia sugere que a judicialização poderá comprometer a previsibilidade e o planejamento orçamentários, além de redirecionar recursos de uma área para outra, sem a necessária visão holística, a partir de um comando judicial isolado.

Esta crítica financeira ainda se potencializaria pelo argumento de que o fornecimento de medicamentos e tratamentos de saúde gera gastos imediatos e imprevistos, não sujeitos aos procedimentos concorrenciais e licitatórios ordinários, onerando ainda mais o sistema de saúde pública.

Por sua vez, o quinto argumento censura a concessão de medicamentos ou de tratamentos de alto custo, inclusive no exterior ou ainda em caráter experimental, sem comprovação de eficácia ou sem ganhos ou vantagens terapêuticas em relação aos já existentes e oferecidos pelo SUS. Neste aspecto, desdobra-se a crítica para suscitar possível lobby ou influência de interesses corporativos em fomentar as demandas judiciais para a aquisição de seus medicamentos, inclusive as tecnologias de saúde ainda sem registro na ANVISA, a partir de um interesse meramente pecuniário: o lucro.