“Judiciário imparcial e independente só existe quando se tem profissionais devidamente qualificados”

4 de outubro de 2024

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Entrevista com o novo diretor-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, ministro Benedito Gonçalves

Com a presença de autoridades e de representantes dos três Poderes da República, em solenidade realizada na sede do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ministro do STJ Benedito Gonçalves tomou posse em setembro como diretor-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), para o biênio 2024-2026. Durante a cerimônia, o magistrado elencou as prioridades e os principais desafios que terá à frente da instituição.

Em entrevista exclusiva à Revista Justiça & Cidadania, o ministro Benedito Gonçalves detalhou os planos e metas de sua gestão. Na conversa a seguir, o magistrado defendeu a ampliação das áreas de pesquisa do mestrado profissional da Enfam, ressaltou a importância do Exame Nacional da Magistratura para a democratização do acesso à magistratura e ainda falou sobre o intercâmbio da Enfam com escolas de magistratura internacionais, o ensino à distância nos cursos de especialização e a influência das novas tecnologias sobre o Poder Judiciário.

Revista Justiça & Cidadania – Ministro, o senhor agora assume o cargo de diretor-geral da Enfam. Como avalia a importância da Escola na formação judicial e no aperfeiçoamento do Judiciário brasileiro?
Ministro Benedito Gonçalves –
É preciso ter em mente que o Judiciário imparcial e independente só existe quando se tem profissionais devidamente qualificados, o que certamente demanda boa formação da magistratura.

Daí a importância da Enfam, cuja missão é promover, regulamentar e fiscalizar, em âmbito nacional, a formação e o aperfeiçoamento dos magistrados para que a justiça esteja em sintonia com a demanda social.

Oferecer educação judicial é prestar serviço público de extrema relevância a nosso país. Ocupar a função de diretor-geral é assumir o compromisso diário de possibilitar serviço público de qualidade, que busca assegurar que magistradas e magistrados estejam em permanente formação acadêmica e humanística.

Somente por meio de uma boa formação e do aperfeiçoamento do conhecimento adquirido, a magistratura é capaz de proporcionar à população serviço mais célere, eficiente e humano. 

RJC – Quais são os principais projetos e as expectativas para a gestão?
BG –
Se tem uma coisa da qual tenho plena convicção, é que a boa formação e o aperfeiçoamento de magistrados dependem do trabalho de base de cada uma e de cada um dos servidores e colaboradores da Enfam, que se dedicam com tanto afinco a nossa Escola.

Além de proporcionar aos servidores e colaboradores as melhores condições de trabalho, a Enfam continuará servindo como conexão empírica e acadêmica entre políticas públicas judiciárias e a atualização e aperfeiçoamento de magistrados que efetivamente exercem a jurisdição em todo o Brasil, com o escopo de garantir a aplicação uniforme de procedimentos legais e normativos.

Para tanto, as ações de formação inicial, as ações de formação continuada e as ações de formação de formadores serão cada vez mais estimuladas e valorizadas.

Nesse ponto, destaco a importância do mestrado profissional oferecido pela Escola, com o objetivo de elevar o nível de qualificação dos alunos nas competências necessárias para o exercício da função judicial, haja vista os desafios contemporâneos da magistratura, a complexidade crescente das relações sociais, os avanços tecnológicos, a transnacionalidade dos direitos e a necessidade de democratização do Poder Judiciário. 

Da mesma forma, a Escola permanecerá envidando todos os esforços para o aprimoramento da regulamentação, da organização e da realização do Exame Nacional da Magistratura – ENAM, com vistas a atingir as diretrizes do processo seletivo, quais sejam: a uniformização, a democratização do acesso e a valorização da vocação para o exercício da magistratura.

RJC – Como o senhor avalia a atuação em rede com as escolas judiciais e de magistratura? E quão importante pensa ser o intercâmbio de conhecimento e experiência com o Judiciário e as escolas de outros países?
BG –
Os projetos que estabelecem parcerias com as diversas escolas de magistratura, sejam elas federais, estaduais ou internacionais, serão continuados, promovendo o intercâmbio das melhores práticas focadas no aprimoramento de atividades jurisdicionais.

Tais projetos, como disse no dia da posse, incluem a promoção do compartilhamento e descentralização do conhecimento, favorecendo o acesso universal aos cursos, com ênfase em plataformas de tecnologia da informação que não exijam interrupção das atividades jurisdicionais.

RJC – O mundo e, consequentemente, a realidade da magistratura vêm enfrentando grandes mudanças com as inovações tecnológicas e o advento da inteligência artificial. Este, inclusive, é um tema que vem sendo tratado ultimamente em nossas formações iniciais. Como o senhor avalia tudo isso?
BG – Avalio que indubitavelmente tivemos progressos, como a digitalização, que já atinge quase a totalidade de nossos tribunais. Além da digitalização, cerca de metade dos tribunais brasileiros possui projetos de inteligência artificial (IA) operantes ou em desenvolvimento.

Por sinal, a integração da IA no sistema judicial não é projeção futurística, mas realidade emergente que desafia os contornos habituais da justiça.

Importante ressaltar que, dentre os 17 objetivos da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), o de número 16 (Paz, Justiça e Instituições eficazes) prevê o esforço global para a consolidação de sistemas judiciais acessíveis a todos.

Daí a importância de desenvolver ferramentas de inteligência artificial no Judiciário, que facilitem, desde a síntese automática de processos judiciais até a análise avançada de jurisprudências, o juízo de admissibilidade de recursos e o cálculo da probabilidade de reversão de decisões.

RJC – A Enfam passou por momentos de grande mudança com o aumento dos eventos online e do incremento do ensino a distância, nos quais o senhor participou ativamente durante a gestão do ministro Herman Benjamin. Como o senhor avalia o formato? Há alguma previsão de continuidade em sua gestão?
BG – A Enfam realmente passou por transformação significativa com os eventos e educação online. Esse movimento foi intensificado pela necessidade de adaptação rápida à pandemia, mas também refletiu tendência global de digitalização da educação.

O formato online trouxe várias vantagens, como a ampliação do alcance das formações, permitindo que magistrados de todo o Brasil pudessem participar de eventos sem a necessidade de deslocamento físico. Além disso, a flexibilidade do formato online possibilitou maior personalização das jornadas de aprendizado, além de reduzir custos operacionais e facilitar a organização de eventos de grande escala.

No entanto, como qualquer inovação, o ensino online também apresenta desafios. A interação de participantes e instrutores nem sempre é tão fluida quanto no presencial, e a dispersão de atenção pode ser maior. Além disso, há a necessidade de investir continuamente em infraestrutura tecnológica e treinamento de instrutores para garantir que o conteúdo seja passado de forma clara e envolvente.

Quanto à continuidade na minha gestão, acredito que uma abordagem híbrida possa ser a mais eficaz. O online mostrou seu valor, mas o presencial também oferece experiência de troca e interação humana que é insubstituível. Então, a previsão é que o ensino a distância continue sendo parte integral da estratégia da Enfam, mas eventos presenciais também deverão ser retomados, em especial aqueles que promovam maior imersão e colaboração entre os participantes. 

RJC – Quando pensamos em equidade de gênero e raça na Justiça vemos que ainda há um longo caminho a ser percorrido. Temos, no mestrado da Enfam, alguns estudos que tratam do tema, como o grupo de pesquisa e publicações. Como o senhor avalia essa questão?
BG –
A questão da equidade de gênero e raça na Justiça é realmente tema de grande relevância e urgência. Apesar de alguns avanços, há um longo caminho a ser percorrido para que possamos alcançar justiça verdadeiramente inclusiva e representativa da diversidade social do Brasil.

O mestrado da Enfam tem desempenhado papel importante nesse debate ao incentivar pesquisas e publicações que tratam de equidade de gênero e raça. Esses estudos são fundamentais para identificar as barreiras estruturais que ainda existem no sistema judiciário e propor soluções para superá-las. O grupo de pesquisa que a Enfam mantém é iniciativa louvável, pois fomenta espaço de reflexão crítica e produção de conhecimento sobre as desigualdades que, infelizmente, ainda permeiam o Judiciário.

A equidade de gênero e raça na Justiça não se limita à representatividade numérica de mulheres e pessoas negras nos quadros de magistrados e servidores. É necessário que haja transformação cultural que promova a igualdade de oportunidades, sobretudo na ocupação de cargos de liderança. Também é essencial que esses magistrados e servidores tenham voz ativa na construção de políticas institucionais e no desenvolvimento de jurisprudência mais sensível às questões de gênero e raça.

Penso que, além das pesquisas e estudos acadêmicos, é crucial que esses debates sejam traduzidos em práticas concretas no âmbito do Judiciário, seja por meio de programas de capacitação contínua ou da criação de políticas internas que garantam ambiente de trabalho mais inclusivo e equitativo.

Em resumo, a equidade de gênero e raça é um desafio que precisa ser enfrentado com seriedade e de forma transversal. As iniciativas da Enfam são direcionadores importantes nesse sentido, e acredito que sua continuidade será essencial para fomentar justiça mais justa e representativa.

RJC – O que o senhor tem em mente para o mestrado e as especializações da Escola durante sua gestão?
BG –
O Programa de Pós-Graduação da Enfam tem se consolidado como referência no aperfeiçoamento da magistratura, especialmente com o crescimento e fortalecimento de seu mestrado e dos cursos de especialização. 

Pretendo continuar esse processo de expansão e aprimoramento, com o objetivo de tornar o programa ainda mais robusto e alinhado às demandas contemporâneas do Judiciário.

Para o mestrado, minha visão é ampliar as áreas de pesquisa já existentes, incentivando estudos que abordem questões emergentes do direito e da sociedade, como tecnologias digitais, proteção de dados, inteligência artificial no Judiciário, e temas de direitos humanos, incluindo a equidade de gênero e raça. Pretendo fortalecer parcerias com outras instituições nacionais e internacionais, para promover o intercâmbio de conhecimentos e boas práticas entre magistrados de diferentes países, o que pode alavancar ainda mais as pesquisas desenvolvidas na Enfam.

Além disso, busco estimular a interdisciplinaridade no programa, fomentando a integração entre o direito e outras áreas do conhecimento, como economia, sociologia e psicologia, para que os magistrados possam ter visão mais ampla e holística dos problemas que enfrentam. A formação de líderes judiciais com visão crítica e inovadora será uma das prioridades.

No campo das especializações, a ideia é continuar oferecendo programas de formação prática e voltados para a solução de problemas reais do Judiciário. Quero manter o foco em temas que ajudem a aprimorar o trabalho cotidiano dos magistrados, como gestão de processos, mediação e conciliação, e novos métodos de resolução de conflitos.

Outro ponto de atenção será a inclusão de temáticas sensíveis e inovadoras, como o direito ambiental, a justiça restaurativa, e o combate à corrupção, em sintonia com as demandas sociais e os desafios globais. A ideia é que os cursos de especialização não sejam apenas atualizações técnicas, mas também oportunidades de reflexão crítica e de desenvolvimento de magistratura mais consciente e comprometida com a justiça social.

RJC – Como o senhor avalia o ENAM? Qual é o maior ganho que o Judiciário pode ter com ele?
BG –
O ENAM representa marco importante na formação e seleção de magistrados no Brasil, e sua segunda edição já demonstra o compromisso do Judiciário com o aprimoramento contínuo da carreira. O ENAM tem o potencial de criar padronização e uniformização dos critérios de seleção para a magistratura, o que é crucial em um país tão diverso e de dimensões continentais como o Brasil.

Um dos maiores ganhos com o ENAM é a possibilidade de garantir maior isonomia nos processos de seleção já que estabelece parâmetros claros e objetivos para avaliar o conhecimento técnico e jurídico dos candidatos, além de suas capacidades analíticas e éticas. 

Isso tende a mitigar as disparidades regionais que, muitas vezes, refletem diferentes níveis de exigência e critérios nos concursos estaduais. Com o ENAM, há um esforço de se consolidar um sistema que valorize não apenas o conhecimento jurídico, mas também as habilidades socioemocionais e a capacidade de tomar decisões justas e ponderadas.

Além disso, o ENAM pode contribuir significativamente para a democratização do acesso à magistratura. A centralização do processo pode facilitar a participação de candidatos de diversas regiões e classes sociais, ampliando as chances de ingressar na magistratura sem a necessidade de se submeter a múltiplos concursos estaduais. Isso é especialmente relevante para promover maior diversidade, tanto de gênero e raça quanto de perspectivas regionais, no Judiciário.

Outro benefício importante é o potencial do ENAM de promover cultura de aperfeiçoamento constante. A exigência de um padrão nacional reforça a necessidade de preparação sólida e contínua, o que, consequentemente, pode elevar o nível da magistratura como um todo. Essa busca pela excelência também impacta diretamente a qualidade das decisões judiciais, beneficiando o sistema de justiça e toda a sociedade.

Em resumo, o ENAM representa avanço significativo para o Judiciário brasileiro, ao promover maior equidade e eficiência no acesso à magistratura, além de elevar o padrão de formação dos futuros juízes. O exame também fortalece a ideia de um Judiciário mais coeso e preparado para lidar com as complexidades e desafios da sociedade contemporânea.

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