Jurisprudência e respeito

18 de novembro de 2011

Roberto Rosas Membro do Conselho Editorial / Professor Titular da UnB

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O aspecto central e dorsal do Anteprojeto do Código de Processo Civil (2010) elaborado sob a presidência do Ministro Luiz Fux está na preocupação em relação à segurança jurídica propiciadora ou reveladora das decisões judiciais, isto é, a segurança jurídica acarreta uma certeza na decisão, porque ela tem diretriz, ou ela consagrará a segurança jurídica, porque ratifica o conhecido, o exposto, o revelado por decisões judiciais. Isso se insere na efetividade tão apregoada ou querida por juízes e jurisdicionados, mas somente será realizado mediante a maturidade de juízes e advogados, o respeito à jurisprudência, ao decidido pelos tribunais, e na medida em que os juízes respeitem o consolidado, não divergindo ou construindo novas teses sem apoio em legislação nova, fatos novos, circunstâncias novas.

Assim, o anteprojeto mencionado traz importantes sinalizações para a segurança jurídica com base no lema central – “Os tribunais velarão pela uniformização e pela estabilidade da jurisprudência …” (art. 847).

A segurança jurídica é a tranquilidade do cidadão, do empresário, do administrador. Isso significa a estabilidade da jurisprudência e das relações jurídicas.

De nada adianta uma eficiente legislação processual se as decisões variam ao sabor do dia, do julgador, da Câmara julgadora. É instabilidade pura.

De longa data, ouvem-se críticas à adoção de fórmulas fixas, como enunciados, prejulgados ou súmulas, porque pertencemos ao sistema jurídico europeu continental. Ora, tal circunstância não impede a adoção de instrumentos de estabilidade, e não a existência de dúvidas, fonte de imensa injustiça, e derrogação do princípio da isonomia. Alguém tem uma solução judicial e outro, nas mesmas condições fáticas e legais, tem outra solução.

Portanto, o capítulo jurisprudência mereceu solução central em relação ao tema, como o anteprojeto (art. 847).

A jurisprudência é a interpretação uniforme dos tribunais, é diversa de precedente. Se naquela há reiteração de orientação, neste há decisão isolada, ainda não consolidada, que pode e deve ser aproveitada em outros casos.

A consolidação da jurisprudência é fator de estabilidade jurídica. Afinal, a afirmação de uma orientação dá normas de conduta para a orientação da sociedade, em especial da administração que se rege pela boa-fé objetiva. Se a jurisprudência é respeitada, todos sabem o seu caminho.

Dir-se-á da possibilidade da alteração da jurisprudência, e ela se dá a partir da mudança da lei que altere a normatividade para os fatos. Logicamente, não haverá persistência na aplicação da jurisprudência, mas o anteprojeto admite essa alteração, porém exige – “A mudança de entendimento sedimentado observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando o imperativo de estabilidade das relações jurídicas”. Portanto, é possível a mudança, sem surpresa ou aventura interpretativa.

Estabelecidas regras jurídicas e diretrizes, permite-se ao tribunal modular os efeitos da alteração, isto é, sair da regra geral dos efeitos ex tunc para a admissão dos efeitos ex nunc.

Outra diretriz importante do anteprojeto está na definição de decisão persuasiva, decisão impositiva e decisão vinculante. As súmulas serão apresentadas como persuasivas, entretanto, o chamado efeito vinculante (art. 27 – Lei 9.868/99) mudou essa orientação, para entender a jurisprudência (em certos casos) como vinculativa, impositiva, obrigatória. Rompemos, assim, com a ideia de que as decisões judiciais (precedentes) apenas indicavam aos juízes uma orientação, e não a imposição. O anteprojeto é expresso – “a jurisprudência pacificada de qualquer tribunal deve orientar as decisões de todos os órgãos a ela vinculados” (art. 847, III).

O anteprojeto dá destaque ao julgamento das chamadas demandas repetitivas (art. 847 e 895), isto é, aquelas que inserem os mesmos fatos e as mesmas normas jurídicas, numa imensa simplificação.

Soluções devem ser previstas para a unificação da jurisprudência.

O anteprojeto não trouxe uma solução idêntica ao atual Código na uniformização da jurisprudência (art. 476/479), mas algo semelhante (art. 865); porém, manteve os embargos de divergência (art. 959).

O anteprojeto explicitará a importância da súmula da jurisprudência predominante, num avanço metodológico que nos impõe certa digressão sobre o instituto da súmula.

Em 1963, o Supremo Tribunal Federal julgava 3.500 processos; em 2011, centenas de milhares. Naquela época, já pretendia o encontro de solução para o excesso de processos, na chamada crise do Supremo Tribunal Federal, na verdade, crise do recurso extraordinário, porque naquele tempo, todas as questões poderiam subir ao STF. Em 1957, houve uma comissão de reforma constitucional, e o tema aflorou. Houve uma sugestão drástica para a subida do recurso extraordinário. Outros mecanismos foram criados, na linha defensiva, com conteúdo restrito (prequestionamento, revisão de provas, reexame de cláusula contratual etc.). Nada limitava o acesso. Estabeleceu-se, então, a ideia de corporificação de linhas de pensamento ou solução em verbetes (ou enunciados) daqueles temas mais comuns, principalmente dos procedimentais. A ideia partiu do Ministro Victor Nunes Leal, com o apoio decisivo de outros ministros, dentre eles, Gonçalves de Oliveira, Pedro Chaves e Evandro Lins e Silva. Uma parte, dentre os ministros mais antigos, resistia ao estabelecimento desses enunciados, alguns com aviso de não aplicação dos mesmos. Prevaleceu, então, a edição de verbetes, chamados de súmulas da jurisprudência predominante, e assim surgiu a Súmula do STF, em 1963. O maior número concentrou-se nas regras procedimentais do recurso extraordinário (no 279 – reexame de prova; no 282 – prequestionamento; no 288 – traslado completo).

A súmula era um instrumento de orientação sobre determinado tema; não se petrificava. Não era imutável, tanto que algumas foram alteradas (e até revogadas pelo STF – por exemplo, Súmula 152 – alterada pela 494; Súmula 388 – cancelada por interpretação, depois restabelecida por força de lei). O passo decisivo na importância da súmula não está no seu momento de elaboração, e sim no futuro, na aplicação, na alteração, no cancelamento. Se os julgadores não a seguem, de nada vale. Se o legislador altera a norma sucedânea do texto, ela será alterada ou cancelada. Sem dúvida, ela é grande material de pacificação, ainda que haja discordância do seu texto, como ocorre com a Súmula 400 (razoável interpretação) tão criticada, mas com defensores.

A ideia da súmula consolidou-se e nessa década, os tribunais superiores e os demais tribunais editam suas súmulas, mesmo porque o acesso à jurisprudência ainda é precário.

Quais os percalços da súmula?

A súmula pode ser perigosa, se elaborada com defeito. A lei também, e há leis inconstitucionais e decretos ilegais. A súmula pode ser mal redigida? A lei também.

O que é sumulado? Somente teses controvertidas, e não de textos legais eventuais (por exemplo, tributação anual). A súmula pode não adotar a melhor tese, mas oferece norte e segurança, ao contrário da vacilação de julgados, ora numa corrente, ora noutra direção.

A súmula sofre o mesmo processo da legislação, isto é, alteração por nova interpretação e, principalmente, por nova legislação, alterando aquele enunciado. Hoje, notamos essa influência no novo Código Civil (de 2002), que altera várias súmulas do STF (Súmula 165 – compra pelo mandante, alterada pelo art. 497; Súmula 494 – venda do ascendente ao descendente, art. 496; Súmula 377 – comunhão de aquestos, art. 1.672, todos do CC-2002).

A importância da súmula está consagrada.

A Lei 8.038/90 (art. 38) permitiu ao relator negar seguimento a recurso contrário à súmula do respectivo tribunal (CPC, art. 557). No art. 475, § 3o, do CPC (redação da Lei 10.352, de 26.12.2001), não há sujeição ao duplo grau de jurisdição nas sentenças de interesse da União, Estado, Município se a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do STF ou em súmula do STF ou do tribunal superior competente. No art. 518, § 1o, do CPC, o juiz não receberá a apelação se a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. No art. 544, § 3o, do CPC, o relator (STJ) poderá converter o agravo em recurso especial, e neste, provê-lo, se a decisão recorrida estiver em confronto com a súmula do STJ.

Questão muito debatida, e extremada de opiniões, é a da súmula vinculante. O que significa?

O processo de elaboração de uma súmula é exaustivo; depende da existência de pronunciamento único (mas expressivo) ou então, da reiteração. O debate sempre foi longo, até a edição. Para a vinculação dessa súmula a julgados futuros há necessidade de processo especial, de maior debate, porque aquele verbete será aplicado automaticamente. Então, a chamada súmula vinculante não pode ser, e acredito não será, fruto de uma decisão aligeirada, rápida, e muito menos será a vinculação de qualquer decisão de um tribunal. Não basta ao Supremo Tribunal se reunir, decidir, para que automaticamente todas essas decisões sejam vinculantes. Se as súmulas atuais decorrem de um lento e burocrático procedimento, imagina-se mais ainda para a súmula vinculante.

Ao lado dessa expressão, outra aparece – a súmula impeditiva de recursos –, isto é, a impossibilidade de interposição de recurso se a decisão recorrida estiver apoiada em súmula do Supremo Tribunal. Essa hipótese minora a recorribilidade contra a orientação assentada do STF; no entanto, permite ao juiz discordar da súmula do STF. O juiz pode não aplicá-la, a pretexto de não se adequar à hipótese de ser outra a matéria; no entanto, a não vinculação parece total inversão hierárquica.

O efeito vinculante já foi consagrado na Emenda Constitucional no 3/1993, ao estabelecê-lo, quanto às decisões definitivas de mérito, nas ações declaratórias de constitucionalidade (nova redação do art. 102 da CF, acrescentando o § 2o).

Destaque-se, ainda, o disposto na Emenda Constitucional no 45/04, no § 2o do art. 102: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direita e indireta, nas esferas estadual e municipal”.

Vê-se, portanto, que o texto constitucional foi além da súmula, ao prever a súmula vinculante. Ela era meramente persuasiva, e não vinculativa. Era mera orientação de trabalho.

O tema já estava no controle de constitucionalidade no entendimento da eficácia contra todos (erga omnes) e do efeito vinculante em relação a todos os magistrados, tribunais e administração pública. A súmula vinculante tem efeitos além desses, e sim, lato sensu, a todos. Na verdade, os fundamentos do texto são os vinculantes e não somente o enunciado.

A súmula vinculante torna mais ágil a justiça sobre o mesmo tema, com impedimento da multiplicação de demandas, ou encerramento das múltiplas demandas, no percurso dos vários graus de justiça.

Não é possível a desigualdade no tratamento de casos iguais, que devem ter soluções idênticas. A proliferação leva a situação díspares. Um defere, outro indefere. Uma câmara concede, a outra não, sobre o mesmo fundo de direito, partes em idênticas condições. A certeza do direito leva ao pleito de solução certa, com segurança jurídica.

Hoje, prega-se muito a demora das soluções judiciais. Portanto, há um  direito constitucional à razoável duração do processo. Se há solução única e uniforme, a tendência é a pronta solução.

Há respeitáveis críticas, contrárias à adoção da súmula vinculante.

Invoca-se o princípio da separação dos Poderes com a possível invasão da função legislativo pelo Judiciário. A súmula busca no sistema jurídico e legal seu assento. Não nasce do nada. Portanto, a edição da súmula prestigia o legislador.

A independência do julgador não é afetada, porque ele pode não aplicar a súmula se o texto for inaplicável à espécie. O juiz está adstrito à lei, e sua liberdade tem esses parâmetros.

A jurisprudência não sofrerá com a súmula, porque sua evolução ocorrerá com os cancelamentos, as alterações e até a adequação de entendimento (Súmula 346 – nulidades dos atos administrativos, entendida pela Súmula 473).

Não há impedimento do direito de ação, porque já há uma orientação. Qualquer autor será temerário na propositura de uma ação se a jurisprudência estiver consolidada contra a sua tese.  A Lei 11.417, de 19/12/2006, estabelece regras sobre a edição da súmula vinculante. O Supremo Tribunal Federal, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, pode editar enunciada de súmula, que terá efeito vinculante.

Sozinha, a súmula vinculante não resolverá completamente a demora dos processos. Entretanto, é grande auxiliar na busca desse desejo de juízes, advogados e jurisdicionados.

 
Roberto Rosas
Membro do Conselho Editorial

Professor titular da Universidade de Brasília
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional