Justiça do Trabalho e efetividade do trabalho decente

2 de agosto de 2023

Guilherme Guimarães Ludwig Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região /Diretor de Comunicação Social da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho

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A reformatação do sistema de produção, especialmente no cenário da Revolução 4.0 e de novas modalidades contratuais, tem acarretado visível impacto no desenvolvimento e na regulação do labor humano, a reclamar uma nova perspectiva de efetivação da garantia do trabalho decente, a partir da atuação presente da Justiça do Trabalho.

Em sua obra “O Precariado”, Guy Standing, um dos grandes expoentes atuais na economia do trabalho, descreve a emergência de uma classe de pessoas para a qual não há nenhuma perspectiva de futuro. O termo “precariado” mostra-se ali como um neologismo que funde o adjetivo “precário” ao substantivo “proletariado”, representando uma classe em formação, que carece de identidade ocupacional, não conseguindo manter nenhuma relação de pertencimento com categorias profissionais.

São pessoas em relação as quais, prossegue o autor, foram basicamente subtraídas sete garantias relacionadas ao trabalho: a) garantia de mercado de trabalho – as oportunidades adequadas de renda e trabalho; b) garantia de vínculo de emprego – proteção contra dispensa arbitrária; c) segurança no emprego – capacidade e oportunidade para se manter no emprego, inclusive com mobilidade ascendente; d) segurança no trabalho – proteção contra acidentes de trabalho e doenças ocupacionais; e) garantia de reprodução de habilidade – oportunidade de adquirir habilidades, com treinamentos e capacitação; f) segurança de renda – garantia de renda adequada e estável, protegidas contra a perda do poder aquisitivo; e g) garantia de representação – possibilidade de possuir efetivamente voz coletiva, por meio de entidades sindicais independentes e representativos.

A combinação destas carências termina, segundo Standing, por conduzir tais indivíduos a um estado complexo: a) de raiva, diante das frustrações cotidianas; b) de anomia, pela indiferença adquirida com as derrotas constantes; c) de ansiedade, diante da absoluta insegurança e falta de perspectivas; e d) de alienação, em face do descolamento total do propósito para o qual o seu trabalho se destina.

Trata-se, portanto, de uma vida sem qualquer aceno de melhoria, um contingente de milhões de pessoas absolutamente sem rumo nos novos formatos do sistema de produção, hoje como reflexos principalmente das novas formas de contratação e da Revolução 4.0, que reconfigura a sociedade e o mundo do trabalho em diversos níveis (trabalho em plataformas, inteligência artificial, proteção de dados, entre outros). Este novo desenho da estrutura de poder passa muitas vezes ao largo do estado de absoluta fragilidade social de tais indivíduos, mantendo-os ainda mais à margem da possibilidade de exercício concreto do complexo de direitos constitucionalmente garantidos.

Não por outro motivo, por exemplo, é possível observar, nas recentes manifestações (incipientes) de trabalhadores em plataformas virtuais, uma pauta de reivindicações de direitos trabalhistas que regride ao básico das lutas operárias na primeira Revolução Industrial, um dos principais fatos propulsores do próprio nascimento do Direito do Trabalho. Aqui se fala em condições mínimas no marco zero após a superação do sistema feudal: algum piso salarial, algum limite de jornada, algumas poucas garantias de segurança no trabalho.

Diante disso e no propósito de assegurar a cidadania em nosso Estado Democrático de Direito, torna-se urgente estancar o movimento de regressão civilizatória no desenvolvimento e na regulação do labor humano. É tempo de reforçar a garantia de um trabalho jurídica e socialmente qualificado como decente, pela construção de um modelo econômico sustentável, que permita e fomente a geração de empregos e de postos de trabalho na plena formalidade.

Neste modelo, deve ser garantida a dignidade no trabalho, pela ampliação da tutela social, inclusive a partir do legado da pandemia, conciliando autonomia privada e liberdade econômica em sua harmonia possível com a regulação do trabalho. Falar necessariamente em segurança, pelo fortalecimento do diálogo social para a compreensão da nova morfologia do trabalho na reformatação de categorias e na regulação estatal do labor humano.

Imprescindível se torna promover equidade, eliminando as múltiplas formas de discriminação laboral neste novo cenário, em favor da inclusão laboral da pessoa com deficiência, da responsabilidade civil em caso de discriminação de gênero, de raça, por etarismo ou motivação religiosa, em prol da pluralidade no ambiente laboral. É preciso, por fim e não menos importante, assegurar liberdade, concretizada na perspectiva da erradicação dos trabalhos escravo, forçado e infantil. Urge estar atento às chagas abertas em uma sociedade marcada pelo racismo e pela misoginia estruturais e diversas formas de intolerância.

No movimento de contenção da regressão civilizatória, não se desconhece que há uma responsabilidade compartilhada entre o Estado, a iniciativa privada e toda sociedade, aqui considerada com atores devidamente emancipados para o exercício da cidadania. Nos limites deste pequeno ensaio, todavia, passa-se a uma breve análise do papel do Estado, com ênfase específica e deliberada na atuação do Poder Judiciário.

Para o Parlamento, existem hoje grandes desafios regulatórios em relação ao trabalho decente, em meio a uma sociedade complexa, cuja representação almeja resgatar – como condição preliminar de atuação – a própria capacidade de diálogo político, em um contexto de exacerbada polarização e de recentes ameaças às instâncias democráticas. Por outro lado, ao Poder Executivo cabe a formulação, a implementação e a fiscalização de políticas públicas adequadas que assegurem a materialização, no plano das relações de trabalho individuais e coletivas, dos referidos pilares de dignidade, segurança, equidade e liberdade.

Ao Poder Judiciário, especialmente pela Justiça do Trabalho, cabe concretizar em suas decisões os princípios e direitos fundamentais esquadrinhados na Constituição Federal (CF), a partir da prevalência da relação harmônica entre os valores sociais do trabalho e também da livre iniciativa (CF, art. 1o, IV), na própria interpretação e aplicação das demais normas de cunho infraconstitucional no exercício da função jurisdicional.

Cumpre aqui enfatizar que a especialização da competência do Judiciário brasileiro em matéria trabalhista, para além do contexto histórico de sua criação na primeira metade do século passado, rejuvenesce completamente no cenário desafiante de crescente complexidade e desta reformatação das relações de trabalho, que recalibra a assimetria nos novos contratos em parâmetros por vezes mais agressivos, em prejuízo da garantia do trabalho decente. Mais do que nunca se mostram necessárias Justiça e magistratura do Trabalho presentes e atuantes.

Torna-se assim imprescindível avançar no fortalecimento estrutural da Justiça do Trabalho e na valorização dos seus magistrados e magistradas. É igualmente necessário discutir as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal que tratam da competência material da Justiça do Trabalho, com sucessivas interpretações restritivas de seu alcance, em aparente contradição com a Emenda Constitucional no 45/2004, que promoveu manifesta ampliação da competência a todas ações oriundas da “relação de trabalho” (CF, art. 114, I).

Figure-se, a mero título de ilustração, a Reclamação no 59.795, na qual foi monocraticamente declarada a incompetência da Justiça do Trabalho para analisar e julgar as relações mantidas entre motoristas de aplicativos e as plataformas digitais, determinando a remessa dos autos à Justiça comum. Partiu ali a Corte do reconhecimento, prima facie, de uma relação de natureza comercial por analogia à situação do transporte rodoviário de cargas (Lei no 11.442/2007), independentemente da apreciação da controvertida existência ou não dos requisitos da relação de emprego no caso concreto. Ocorre, entretanto, permissa maxima venia, que tal matéria é de inequívoca competência da Especializada trabalhista, pois se discute, em tese, a possível existência de uma autêntica relação de trabalho, embora dissimulada em fraude.

Promover, portanto, a efetivação do trabalho decente, de modo a garantir dignidade, segurança, equidade e liberdade aos trabalhadores e trabalhadoras, passa pela valorização e pelo fortalecimento do papel da Justiça e da Magistratura do Trabalho.

Notas________________________________

1 In: STANDING, Guy. “O Precariado: A nova classe perigosa”. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2020, pp.23-25.

2 Idem, pp. 28-31.

3 Idem, pp. 41-43.