Justiça: imprevisibilidade e paradoxos – Parte 2

22 de julho de 2011

Eliseu Fernandes Desembargador do TJERO

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Determinados réus, que gozam do injustificado privilégio de foro, lançam mão da prerrogativa como se fosse direito à impunidade e, quase sempre, se dizem vítimas de perseguição.
 
Ora, não há como se fazer cumprir os verdadeiros fins da justiça, sem tributar-lhe a relevância devida no contexto do Estado de Direito, na medida em que essa seja conduzida com dignidade, de forma a merecer o respeito que se lhe é devido, não permitindo filigranas que levem a beneficiar espertos, oportunistas e incautos.
 
Por isso, impõe-se ao Judiciário defender sua dignidade com independência, inclusive nos casos excepcionais, substi tuindo o Legislativo em suas omissões por força do princípio dos poderes implícitos, que lhe outorga a ordem constitucional. Isto é, demarcar sua independência não só na operação de seus fins, mas também no âmbito de suas finanças, a fim de que se lhe aprovem condições logísticas e materiais a permitir-lhe dar eficiência a seus serviços e fazer cumprir incontinenti suas decisões.
 
Douglass North disse que: “o desenvolvimento econômico, social e político dos países ocorre em conformidade com o desempenho de suas instituições. Quanto mais sólidas mais desenvolvidas, pois a previsibilidade jurídica e a existência do Estado de Direito são fundamentais para o crescimento da nação sob todos os pontos de vista”.
 
Pois bem. Em nosso país, não se pode negar a imprevisibilidade das decisões da Justiça por sua morosidade motivada por diversas circunstâncias. Dentre elas, não se pode ignorar a relacionada à vaidade humana da pessoa do juiz que se revela, infelizmente. E não é privilégio dos magistrados de primeiro grau de jurisdição, alcançando os tribunais, inclusive.
 
Primeiro tem-se o mal endêmico do começo da carreira, que se convencionou chamar “juizite”. Esse sintoma, quando ataca, e às vezes perdura durante toda a carreira, leva a prestação jurisdicional a uma “síncope”, ao sabor da vaidade, da arrogância, da falta de bom senso, da falta de vocação; inclusive, percebe-se que determinados indivíduos passam a exercer a função como simples burocratas, trabalhando tão-só pelo subsídio e pelo status do poder.
 
Some-se a isso o tormento da antipatia ou animosidade que, às vezes, se dá entre magistrado e advogado, a intolerância e a insensibilidade com a angústia da parte. Por isso, se protela um simples despacho ou decisão, e o processo se arrasta, em repouso, nas gavetas.
 
Pode ocorrer de se ver pedido de liminar demonstrando evidência de lesão a direito ser indeferido, ou, em situações proporcionalmente inversas, à conta de não se diferenciar a impessoalidade — tanto quanto da confusão entre o dever de urbanidade com gentileza —, liminares impertinentes, às vezes, são deferidas sem um vislumbre sequer dos requisitos essencialmente necessários à pretensão, com um lastro de consequência inevitável, motivando mais um recurso e protelação.
 
Outro incômodo que aniquila a prosperidade do campo da justiça é o chamado academicismo, muitas vezes reflexo do ego vaidoso que necessita expressar a falsa cultura, de par com a prolixidade que transforma o singelo suficiente em complexo ineficiente; sim, porque, para alguns, o operador do Direito precisa ser prolixo, rebuscado, sofista, hermético e ambíguo.
 
Thomas Huxlei disse que a grande finalidade da vida não é o conhecimento, mas a ação.
 
É preciso enfatizar o estágio de degradação em que vive a sociedade, exaltando inversão dos valores ético-morais, que são substituídos por novos códigos de conduta nem sempre dignos.
 
Com efeito, o Judiciário, embora não devesse, às vezes também se vê às voltas com tais percalços, que violam a fidelidade ao dever de ofício na gestão pública.
 
Quando se tem determinadas posturas contrárias ao perfil necessário à figura do magistrado, como a dificuldade de separar ato impessoal do interesse pessoal, tal comportamento  inconveniente cria incerteza jurídica.
 
É preciso, então, combater o espírito de corpus assim  como controlar as vaidades no âmbito da instituição e realçar seus desígnios como tutora do equilíbrio das relações da sociedade, porto em que se atracam as angústias e a esperança do cidadão. Por isso há de se reverenciar a moral e a ética, relegadas, nos últimos tempos, a uma concepção de somenos importância.
 
Ressalto, no entanto, que, embora pontualmente, se venha constatando tal comportamento, não se pode dizer que seja reflexo da postura adotada pela maioria, e tampouco que integre o perfil de circunspecção, próprio daquele que se encontra investido do poder de dizer o direito e realizar uma provisão jurisdicional inquestionável e ansiada por todos.
 
É preciso mais cautela com as divergências nos tribunais, que, por vezes, podem representar o mero prazer de dissentir, tanto quanto com pedidos de vista impertinentes, feitos, às vezes, tão-só com o intento de rebuscar, com cantilenas, a óbvia concordância com o relator, causando atraso no andamento do processo, quando se poderia fazer  mera declaração de voto, sem comprometer a solução de continuidade de seu curso, em reverência à celeridade e efetividade.
 
Decerto não estou a generalizar. Bem se sabe haver divergências que dão o necessário rumo e juízo consistente ao julgamento e acabam vencedoras. Há pedidos de vista que constroem o verdadeiro caminho da decisão. O que não se pode aceitar é o canto da vaidade, o intento desprezível, prejudicial à dinâmica do processo.
 
Não se justificam, a meu ver, determinadas reformas de decisões nos Tribunais, às vezes à conta de questões processuais sem relevância por ausência de prejuízo ou por entendimento diverso, nem sempre coerente e razoável, que parecem ao só fim de, por mero prazer, desconstituir decisão do juízo aquém.
 
Saliento, ademais, o caso do abominável estilo “rococó”, com floreios de teses, argumentos e citações verdadeiramente inúteis frente à singela evidência de se dizer o direito com eficiência e efetividade, parecendo evidenciar intenção de exibir conhecimento com argumento nem sempre auspicioso e relevante.
 
Com efeito, é preciso repensar a verdadeira postura da função judicante, a fim de que haja maior previsibilidade e a instituição não permaneça depositária insensível de assombroso acervo de processos, dentre os quais aqueles decorrentes da corrupção e da improbidade, por anos a fio sem julgamento; tampouco que se transforme, por sua morosidade, em verdadeiro salvo-conduto a delinquentes, permitindo-lhes a permanência ou renovação de mandatos à frente de seus cargos nos negócios públicos, como se se tratasse de interesse particular, às vezes agindo com mais requinte, malgrado a possibilidade de o retardamento do curso da prestação jurisdicional implicar perda do poder de punir do Estado, pela prescrição. E, assim, tais indivíduos vão construindo seus “castelos” sobre o olhar compassivo da Justiça lenta.
 
Lembro ainda não ser o descaminho privilégio só de outras hastes públicas, pois tem atingido também o âmbito do Judiciário, como se têm noticiado alguns casos que põem em dúvida a imparcialidade, com venda de sentenças, liminares, facilitação por advocacia administrativa, dentre outras mazelas. Tal comportamento é incompatível com os desígnios da Magistratura, posturas que precisam ser extirpadas por rigorosa investigação, com isenção e sem espírito de corpus, a fim de que a instituição, já marcada pela pecha da morosidade, não ganhe também o atributo do descrédito, passando a ser alvo de desmoralização.
 
Se o serviço público da justiça é, para quem necessita dela, tão relevante quanto o da saúde, é preciso compatibilizar e equacionar, em definitivo, sua situação orçamentária e financeira, tormento constante em decorrência da incompreensão ou ignorância daqueles que têm o dever de municiá-la, a fim de viabilizar as condições necessárias a seu razoável funcionamento, com a prestação jurisdicional, em tempo e celeridade que se espera.
 
Sem dúvida essa é uma outra questão a contribuir também para o emperramento dos serviços da Justiça, sobremodo nos Estados, e que precisa ser resolvida de modo a não deixar, como se vê acontecer, a Instituição, quase sempre, refém do Executivo.
 
Em conclusão, há de se salientar que a ordem jurídica estatal estabelecida pela Constituição necessita de ampla previsão, pois sua função social consiste em determinar ou direcionar o processo de criação das normas.
 
Assim se a função da jurisdição é constitutiva, a sentença judicial cria uma nova relação, concretizando o fato, situação desejada pelo legislador, portanto deve construir de forma eficiente a realização dos fins sociais do Estado.
 
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Eliseu Fernandes
Desembargador do TJ/RO