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Justiça qualificada rápida e acessível

28 de fevereiro de 2006

Pierpaolo Cruz Bottini Professor-Doutor da Faculdade de Direito da USP

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Os problemas que envolvem a Justiça brasileira são conhecidos e sentidos pelos operadores do direito e pela população em geral. Todos aqueles cidadãos que já buscaram, no Poder Judiciário, resolver seus conflitos ou solucionar controvérsias, perceberam as dificuldades para fazer tramitar uma ação, para acompanhar a produção de atos processuais e para executar, concretamente, uma sentença ou uma ordem judicial. A morosidade, a dificuldade de acesso e os custos da prestação jurisdicional afetam a credibilidade da Justiça e do próprio poder público, como instância de pacificação social, e implicam inúmeros prejuízos para a estabilidade social e para o desenvolvimento econômico do país.

A lentidão nos julgamentos é visível nos números e indicadores desenvolvidos pelo próprio Poder Judiciário. Há uma taxa de congestionamento no sistema judicial de 60%, o que significa que de cada dez processos em tramitação e entrados em um ano, apenas quatro são finalizados, e seis passam para o ano seguinte, criando uma bola de neve que aumenta progressivamente. O acúmulo de feitos é superior à capacidade de vazão do sistema judicial, e esta situação prejudica em muito a tarefa de distribuir Justiça de maneira célere e eficaz.

O enfrentamento deste problema é urgente. A morosidade do sistema judicial não afeta apenas a legitimidade das instituições públicas, mas também reflete na intensidade das relações econômicas e financeiras. A insegurança e a baixa expectativa de soluções rápidas para litígios comerciais ou similares inibe e desestimula as transações, reduz o volume de negócios e afasta investimentos de maior monta. O custo para a recuperação de créditos via judicial afeta diretamente o volume de financiamento no mercado e, conseqüentemente, aumenta os juros na proporção em que aumenta o risco de ter que resolver eventuais casos de inadimplência através de instâncias lentas e burocráticas.

No entanto, é preciso cautela para não transformar a ânsia por reverter o atual estado de coisas em propostas imaturas e simplistas. Tornar a Justiça mais eficiente não significa reduzir prazos ou recursos, nem exigir que o magistrado profira sentenças em série, sem maior reflexão sobre os impactos de suas decisões. Não significa, ainda, macular os espaços de defesa ou criar incidentes de uniformização de jurisprudência automáticos, que não aceitem revisão ou reavaliação diante das transformações naturais da sociedade.

O que se faz necessário é uma transformação consistente no sistema judicial brasileiro, que agregue alterações no plano legislativo e no plano administrativo, que dotem os órgãos jurisdicionais de capacidade para enfrentar o problema da alta litigiosidade e do grande volume de processos. Tais alterações devem ser construídas com a participação de toda a sociedade, com a contribuição de entidades e instituições que operam o direito e de membros da sociedade que utilizam e dependem da prestação jurisdicional para solucionar problemas e lides.

Seguindo esta linha e estes princípios, o Ministério da Justiça, através da Secretaria de Reforma do Judiciário, em conjunto com o Supremo Tribunal Federal, com o Instituto Brasileiro de Direito Processual, e com associações de magistrados, de advogados, de promotores, de defensores públicos, de procuradores e de cidadãos, apresentou ao Congresso Nacional inúmeros projetos de lei que tratam do processo civil, penal e trabalhista. Todas as proposituras vieram de constatações de pessoas e profissionais que atuam no dia a dia forense, e que lidam com os problemas, com os gargalos e com os obstáculos cotidianamente. Por isso, por mais que sofram críticas por um ou outro aspecto isolado ou particular, tais projetos representam o anseio de parcela da sociedade por uma Justiça mais racional e eficiente.

No campo do processo civil, três projetos já foram aprovados e transformados em lei, sendo um deles a respeito do regime de agravos (com importantes reflexos no volume de agravos regimentais nos tribunais), outro sobre processos repetitivos e um último que trata do processo de execução civil. Este último merece destaque pela extensão e pela profundidade das mudanças que apresenta.

A nova Lei 11.232/05, que trata da execução de títulos judiciais, é de fundamental importância, como assinalam alguns juristas responsáveis pela elaboração do anteprojeto de lei que resultou no texto aprovado, como Ada Pellegrini Grinover, Athos Gusmão Carneiro e Petrônio Calmon. Os novos dispositivos do Código de Processo Civil que regulamentam a execução civil conferem maior racionalidade aos procedimentos e, por isso, permitirão a satisfação das demandas em tempo mais rápido. Isso porque, pela nova legislação, o processo de conhecimento deixa de estar separado do processo de execução, ou seja, agora o desenrolar da ação é um só, unificado. Desta forma, o devedor só precisará ser citado do início do processo de conhecimento, no qual atuará apresentando sua defesa, apontando provas, argüindo matérias de fato e de direito, para convencer o juiz de sua argumentação. O processo de execução, sendo agora mera etapa de um processo já iniciado, não demanda nova citação, mas apenas a forma regular de comunicação do réu, como é feito em relação aos demais atos praticados no andamento da ação.

Outra inovação importante é a imposição de uma multa de 10% do valor da condenação para o réu que não cumprir a obrigação de pagar no prazo de quinze dias, a partir da sentença. Esta medida é importante para desestimular manobras meramente protelatórias, como o oferecimento de bens à penhora sem condições de satisfazer a dívida. Evidentemente que esta multa não impede o devedor de apresentar todos os recursos inerentes ao processo de execução, especialmente a impugnação, se entender presente algum vício descrito no art. 475-L do Código de Processo Civil. Não resta dúvida que o sucesso no recurso afasta a incidência da multa, logo, fica garantido o contraditório, a defesa, mas cria-se um ônus, um risco que deve ser sopesado nos casos de manobras com finalidade protelatória.

Seguramente, apenas as mudanças trazidas pelos novos diplomas normativos não são suficientes para garantir uma prestação jurisdicional excelente, mas são passos relevantes que apontam os rumos de uma efetiva reforma legislativa. Outros projetos de lei em tramitação devem ser aprovados, instituindo a súmula impeditiva de recursos, a declaração da prescrição de ofício, a regulamentação dos pedidos de vista nos tribunais, o procedimento de adjudicação, e assim por diante. Ademais, é importante tratar da administração da Justiça, dos modelos de gestão dos cartórios e das formas de tramitação dos processos. A utilização de novas tecnologias, de insumos de informática, de comunicação digital para a prática de atos judiciais é uma realidade que vem se impondo no cotidiano da Justiça, e deve ser incentivada, para criar estruturas com condições de organizar e sistematizar as demandas e seu andamento.

Desta forma, a multiplicidade de atos e ações que compõe a reforma do Judiciário demonstra a heterogeneidade dos setores afetados e dos planos desenvolvidos. O denominador comum que une todas estas atividades, no entanto, deve ser o objetivo de alcançar uma Justiça qualificada, rápida e acessível, que exerça suas competências sem mitigar direitos estabelecidos de argüição e de defesa.