Lágrimas escondidas

5 de novembro de 2001

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As lágrimas sempre me comovem. Não sei se existe algum reflexo que leva os nossos olhos a também lacrimejarem quando alguém chora, ou se a razão deriva do fato de ser a tristeza contagiante, ou se é por ser a lágrima o símbolo da nossa humanidade – ao que me consta, os animais não choram.

As lágrimas podem vir acompanhadas de “choros e ranger de dentes”, ou escorrerem silenciosas. As segundas são as que mais me comovem, porque veiculam uma dor que vem direto da alma, que não precisa ser manifestada, que não busca solidariedade ou amparo – simplesmente dói.

Há algum tempo, quando a mídia veiculou cenas relativas aos efeitos da seca do Nordeste brasileiro, fui tocada por uma lágrima discreta, furtiva, que rolou dos olhos de um bebê desnutrido, como os milhares que existem neste Brasil desigual. A esquálida criança dormia (ou jazia desmaiada de fraqueza) no colo da mãe e, mesmo inconsciente, chorava. Não sei se conseguirei algum dia me desvencilhar da amargura que me constrange o coração toda vez que me lembro daquela lágrima silenciosa – ela me acusa de omissão.

Esses pensamentos me ocorrem no momento em que muitas lágrimas estão sendo derramadas pela covarde agressão que sofreu o povo americano, atacado no seu orgulho e no seu sentimento. Com certeza o mundo jamais presenciou espetáculo tão cruel quanto o dos aviões, repletos de gente inocente, despedaçando-se contra as torres do World Trade Center que, em seguida, desabaram sobre centenas de pessoas, inclusive dos bombeiros que lutavam contra as chamas. Creio que essa imagem, que o avanço da tecnologia – símbolo da civilização – permitiu-nos presenciar em tempo real, nunca será esquecido pela sua covardia e brutalidade. Sei que o valoroso povo americano encontrará forças para administrar tanta tristeza. Rezo para isso, e sei que não estou sozinha – as preces partem de todos os lugares; a agressão não foi apenas aos EUA, foi ao Mundo.

Pensando nas muitas lágrimas já derramadas – e a serem ainda -, lembro-me das outras: daquelas que não despontaram, ou por já terem sido todas vertidas, ou por terem sido secadas pela desesperança. Penso nas lágrimas ocultas de Maria, na “Pietá” de Michelangelo, vislumbradas na tristeza dos seus olhos; penso nas lágrimas sufocadas das milhares de mães, desapossadas dos filhos pela infamante escravidão; ou daquelas reprimidas por medo da truculência dos poderosos, nos diversos holocaustos: dos judeus, dos curdos, dos albaneses; ou ignoradas pela indiferença das nações: as lágrimas dos povos da África subsaariana, doentes, mutilados, famintos; dos nordestinos brasileiros, com suas vidas dependentes de cestas básicas que o descaso das autoridades deixa estragarem, quando os recursos para adquiri-las conseguem escapar de ser transferidos pela corrupção aos bolsos privados.

Lembro-me das lágrimas das mulheres – como são abundantes e sofridas! Em recente noticiário sobre as condições de vida no Afeganistão, chocou-me a barbárie cometida contra as mulheres e meninas. Ademais de todo tipo de discriminação e violência, foi mostrado que, quando mutiladas por bombas perdidas – fruto da sanha militarista – não lhes é administrado o tratamento médico dado aos homens em iguais circunstâncias, pelo fato de não poderem expor o corpo. Às vezes, naqueles momentos em que a perplexidade com as agressões sofridas pela parcela feminina do Planeta levam-me a descrer na legitimidade dos propósitos da Criação, questiono Deus: por que foram reservados tantos sofrimentos às mulheres?

E é pensando nas lágrimas das mulheres americanas, vítimas da brutal agressão de uma “guerra escritural”, expressão usada para definir uma agressão que não busca nem poder nem dinheiro – o móvel normal das guerras – e, sim, apenas a ofensa e a destruição, é que me preocupam as lágrimas das mulheres afegãs, ocultas por infamante véu. Preocupa-me o revide que o povo afegão poderá sofrer se ficar, realmente, comprovado que o ataque partiu do terrorista Bin Laden. Relembrando situações análogas, questiono: merece o povo francês ser aniquilado em revide à megalomania de Napoleão? As atrocidades de Hitler justificam a destruição do povo alemão? Devem ser creditadas ao povo russo as barbáries de Stalin? As populações latinas devem ser extintas para expiarem as atrocidades praticadas pelas ditaduras militares e oligarquias corruptas que caracterizaram os anos 80 do Século XX?

E o rol dos descalabros cometidos por governantes se estende indefinidamente, desde tempos imemoriais: as conquistas romana, macedônica, otomana; a extinção dos povos pré-colombianos; o colonialismo europeu; a escravidão negra… Também não podem ser esquecidos: o massacre dos índios americanos, Hiroshima e Nagasaki, a guerra do Vietnã, o apoio aos talibãs, cujo braço foi armado em nome de uma disputa ideológica e hegemônica.

O momento é de reflexão. O mundo “civilizado” não pode se deixar levar pela comoção a despeito de o covarde atentado ter sido desferido contra o seu mais poderoso membro. Talvez seja hora de um exame de consciência: qual foi a reação dos poderosos em situações análogas? A resposta talvez leve a um  mea culpa coletivo.

Que se apure a autoria desse terrível crime, e se punam os culpados. Mas que se poupe a população afegã, não se lhe infringindo mais sofrimento. Que as justas lágrimas do Presidente Bush não se juntem às indevidas da população inocente. Milosevic responde perante o Tribunal de Haia sem que tenha sido necessário dizimar o povo sérvio. Chega de massacres, chega de sofrimento, chega de lágrimas! O mundo precisa de paz.