Latifúndios indígenas

5 de fevereiro de 2004

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A pressão exercida por ONGs internacionais sobre a Constituinte, em 1987/1988, inclusive com a presença de famoso cantor (Sting), para a defesa dos 300.000 índios brasileiros, resultou na oferta de 10% do território nacional a tais pessoas, deixando para os outros 175 milhões de brasileiros os 90% restantes.

Em relação às terras passives de pertencer a esses 90%, o legislador supremo sujeitou-as à denominada reforma agrária com vistas a coibir a existência de latifúndios improdutivos. Sabiamente, proibiu a desapropriação de terras produtivas – seria bom que os violadores do MST lessem o artigo 185, inciso II, da Carta Maior da nação – , assim como impôs pesados ônus tributários tendentes a evitar  a permanência de latifúndios com o escopo de mera valorização imobiliária.

Quanto aos 10% restantes, correspondentes à “nação indígena” , adotou-se o critério oposto: foram garantidos fantásticos latifúndios protegidos pela Polícia Federal, além de assegurar-se a 0,4% da população brasileira o reconhecimento de organização social, costumes, línguas, crenças e tradições próprios, quase tratando seus integrantes como povo estranho, enquistado dentro do Brasil, apenas pela União tutelado.

Está o artigo 231, caput, da Constituição Federal assim redigido: “ São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, o que demonstra não ser fantasiosa tal interpretação.

Essa leitura do texto constitucional – que interessa aos mais variados grupos, nem todos eles com ideais  propriamente brasileiros (piratas da biodiversidade, narcotraficante, etc.) – não me parece, todavia, a mais correta, visto que haveria um claro ferimento do princípio da igualdade, o que a lei suprema não admite.

Tanto que expor essa exegese – que entendo carente de razoabilidade porque incompatível com os princípios insertos na Constituição – os “brasileiros não índios” não poderiam ter latifúndios, os índios brasileiros, sim; “brasileiros não índios” poderiam ter suas terras improdutivas desapropriadas, os índios brasileiros, não; o poder de expropriar (terrenos urbanos, prédios, casas, fazendas, etc.) só seria exercitável com relação a bens pertencentes aos “brasileiros não índios”, jamais aos de propriedade dos índios brasileiros.

Em outras palavras, teria, o constituinte, em um único artigo, outorgado a 300.000 privilegiadíssimas criaturas – a grande maioria civilizada – 10% das terras brasileiras, cabendo à União apenas protegê-las, visto que tudo lhes pertenceria e seria permitido.

A inteligência que dou ao dispositivo é diferente. Entendo, à luz do parágrafo primeiro do artigo 231, que as terras que “ tradicionalmente  ocupam” são aquelas que, à data da promulgação da Carta, eram – e ainda são – por eles habitadas em caráter permanente, vale dizer, aquelas em que estão situadas suas aldeias e, no máximo, os terrenos lindeiros a elas. Jamais vastas extensões de terra, à época já ocupadas, inclusive por cidades. Considerar de propriedade dos indígenas vastas extensões de terra que já não são por eles ocupadas há muito tempo é tornar todo “brasileiro não índio” cidadão de segunda categoria. Os brasileiros sem teto, sem terra, sem habitação e sem emprego, que não gozam de direito a qualquer parcela das terras brasileiras, nessa categoria estariam incluídos. Em compensação os privilegiadíssimos cidadãos brasileiros indígenas (300.000) seriam intocáveis possuidores de 10% do Brasil.

Tampouco é razoável argumentar-se que a palavra “tradicionalmente” usada pela constituinte, estaria a sinalizar que, por determinação constitucional, as terras que possuíam no passado continuam a lhes pertencer. Nesse caso, Paulo Bonfim, que mora em São Paulo – e que é o príncipe dos poetas brasileiros – seria o dono da maior cidade da América Latina, pois sua família (ele é descendente direto de Bartira e João Ramalho) fundou São Paulo. E o governo deveria desalojar todos os paulistanos, para outorgar-lhes os direitos à terra que sua família “tradicionalmente” ocupou.

O certo é que o infeliz texto do dispositivo constitucional está provocando conflitos semelhantes aos provocados pelos violadores da lei enquistados no MST, sendo que a conivência governamental, que leva a proteger os privilégios indígenas contra os cidadãos brasileiros, pode, inclusive, despertar, no futuro, o interesse de potências do Primeiro Mundo em substituir a União na tutela dessa parcela da nação brasileira, que o constituinte – na leitura canhestra do governo – teria transformado em segmento autônomo, separado do povo brasileiro.

Se assim fosse, valeria a pena que cada brasileiro requeresse a “cidadania” indígena, para, de imediato, tornar-se dono de parte do Brasil.

Concluo insistindo na interpretação que oferto ao dispositivo, ou seja, de que pertencem aos indígenas não as vastas extensões territoriais que se lhes pretende atribuir, mas, apenas, aquelas terras (aldeias e terrenos lindeiros) que vinham ocupando em caráter permanente em outubro de 1988 (e que permanecem atualmente) o que, de rigor, significa, de um lado, manter protegidos seus costumes e tradições, e, de outro, assegurar a igualdade entre todos os brasileiros.