Edição

Lei de Acesso à Informação: caso concreto

19 de abril de 2013

Compartilhe:

Antes do advento da Lei 12.527/11, tive a oportunidade de ser relator do Mandado de Segurança 16.903/DF, impetrado perante o Superior Tribunal de Justiça por uma empresa de multimídia e um jornalista pretendendo obter informações acerca de dispêndios públicos, relativos a determinado período, de órgãos federais da administração direta e indireta.

Embora a superveniência da referida lei possa ter diluído, em tese, o interesse na matéria, os seus aspectos constitucionais e legais permanecem relevantes pelo interesse público subjacente. Por essa razão, tomo a liberdade de reproduzir o voto que proferi:

1 – Postulam os impetrantes, em síntese, conforme item 32 da inicial, que se determine à autoridade impetrada que lhes forneça “os dados relativos aos valores gastos pelos órgãos da administração direta e indireta, federais, nos anos 2000 a 2010, e no atual, com publicidade e propaganda, discriminando-os por veículo de comunicação, nos termos do item c do requerimento formulado (doc. 4)”.

1.1 – Em resposta, no item 4 do doc. 5 (fl. 25e), a autoridade impetrada recusou-se a disponibilizar tais valores, na forma pretendida, “para preservar a estratégia de negociação de mídia promovida anualmente pela SECOM com esses veículos. Desnudar esses valores contraria o interesse público, uma vez que implicará a perda de capacidade de negociação da Administração e pode resultar em prejuízo ao erário por dificultar a obtenção de melhores preços na contratação de mídia”.

2 – Sobreveio a presente ação. Os impetrantes – empresa jornalística e jornalista, respectivamente – fundamentam seu pleito, em substância, nos seguintes preceitos da CF:

Art. 5o

(…)

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

(…)

XXXIII – todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas, cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

Art. 37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (EC no 18/98, EC no 19/98, EC no 20/98, EC no 34/2001, EC no 41/2003, EC no 42/2003 e EC no 47/2005)

(…)

§ 3o – A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente:

(…)

II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5o, X e XXXIII;

Art. 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1o – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5o, IV, V, X, XIII e XVI. (Grifamos)

3 – Há liquidez e certeza, pois a prova é preconstituída, apoiada em documentos. O ajuizamento ocorreu antes de expirado o prazo de 120 dias, a que se refere o art. 23 da Lei 12.016/99. A controvérsia é quanto à matéria de direito, o que não afasta a via mandamental, conforme Súmula 625/STF.

4 – É plausível, razoável, jurídico, legítimo mesmo, que os impetrantes, cujo labor essencial é bem informar à população, busquem, perante órgãos públicos como fontes, dados existentes, em tese relevantes, que lhes permitam fazê-lo. Na outra face, a regra da publicidade, que deve, necessariamente, permear a ação pública, não só recomenda mas, determina mesmo, que a autoridade competente disponibilize à imprensa e a seus profissionais, sem discriminação, informações e documentos, não protegidos pelo sigilo, que é excepcional, dando fiel cumprimento a tão relevante princípio constitucional, republicano.

4.1 – Na espécie, partindo do contexto normativo constitucional, em particular os preceitos transcritos, não há como, juridicamente, escamotear o direito líquido e certo dos impetrantes. As informações e valores que pretendem são de nítido interesse coletivo, não se fazendo, outrossim, presentes as exceções que visam resguardar a segurança da sociedade e do Estado, conforme inscrito na parte final do inciso XXXIII do art. 5o da Constituição Federal.

4.2 – Aliás, cogentemente, o § 1o do art. 220 da Constituição Federal prescreve: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5o, IV, V, X, XIII e XIV”.

5 – Por sua vez, a motivação apresentada pela autoridade impetrada, para não atender à alínea “c” (fl. 23e, doc. 4), inserta em sua resposta (fl. 25e, doc. 5) aos impetrantes – “preservar estratégia de negociação”, ou seja, obter melhores preços –, por mais relevante que seja, é inconsistente, todavia, sob o prisma jurídico, com toda vênia, para excluir o dever primário, básico, fundamental, de disponibilizar ao público, à cidadania, à imprensa, tais gastos efetuados pelos entes administrativos, com publicidade.

5.1 – Note-se que o Decreto 6.555/08, que dispõe sobre as ações de comunicação do Poder Executivo, expressivamente, dentre as diversas diretrizes que enumera, a serem cumpridas, insere a “afirmação dos valores e princípios da Constituição”. Deixar de atender pleito como o presente, atrita, claramente, com tal desiderato, vulnerando garantias e princípios contidos na Constituição Federal, conduta que não deve ser prestigiada, com todo respeito.

6 – Quanto à atribuição da SECOM, para o fim, tal resulta da Lei 10.683/03, art. 2o-B, inciso V, que estabelece competir-lhe assistir direta e imediatamente ao Senhor Presidente da República no desempenho de suas atribuições, especialmente “na coordenação, normatização, supervisão e controle da publicidade e de patrocínios dos órgãos e das entidades da administração pública federal, direta e indireta, e de sociedades sob controle da União” (incluído pela Lei 11.497/07).

6.1 – Assim, mesmo as empresas públicas e sociedades de economia mista federais, não obstante o que se contém no art. 173 e segs. da Constituição Federal, submetem-se à centralização, perante a SECOM, quanto a suas publicidades, inclusive mercadológicas.

7 – Os motivos aventados pela autoridade coatora, para não atender à pretensão feita administrativamente – “preservar estratégia de negociação de mídia” e que “desnudar esses valores contraria o interesse público” (fl. 26e, item 4) –, não têm respaldo jurídico, data venia. Ao contrário, sabendo-se que milita em favor dos atos administrativos a presunção de legitimidade e que a regra é dar-lhes a mais irrestrita transparência – sendo, ainda, as contratações precedidas das exigências legais, incluindo-se licitações –, nada mais lídimo e consentâneo com o interesse público divulgá-los ou disponibilizá-los para a sociedade, cumprindo, fidedignamente, a Constituição Federal e mesmo a legislação ordinária, que assim preconizam, v.g. Lei 9.784/99, art. 2o e seguintes.

7.1 – Embora despiciendo, lembre-se que, sob o influxo da denominada teoria dos motivos determinantes, de há muito sedimentada pelo nosso Direito Administrativo, quando eles se divorciam da realidade fático-jurídica, na prática ou não prática do ato administrativo, este ficará viciado, nulo de pleno direito ou anulável, conforme a natureza absoluta ou relativa do vício, competindo ao Judiciário, caso provocado, observado em todo o seu contexto e alcance o devido processo legal, restaurar a supremacia do direito violado. No caso, os motivos apontados como determinantes da não disponibilização, por veículo de comunicação, dos valores gastos com publicidade divorciam-se, inteiramente, de nossa ordem jurídico-constitucional, não devendo subsistir, pois violam preceitos fundamentais, suficientes em si mesmos, de aplicabilidade direta e imediata, tal como se lê no § 1o do art. 5o da Constituição Federal.

8 – Com absoluta pertinência, em seu alentado voto na ADPF 130/DF, que declarou não recepcionada pela atual Constituição Federal, a Lei 5.250/67 (famosa Lei de Imprensa), o eminente Ministro AYRES BRITTO, Relator, consignou, expressivamente, em parte da ementa:

A Constituição reservou à imprensa todo um bloco normativo, com o apropriado nome “Da Comunicação Social” (Capítulo V do Título VIII). A imprensa como plexo ou conjunto de “atividades” ganha a dimensão de instituição-ideia, de modo a poder influenciar cada pessoa de per se e até mesmo formar o que se convencionou chamar de opinião pública. Pelo que ela, Constituição, destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Entendendo-se por pensamento crítico o que, plenamente comprometido com a verdade ou essência das coisas, se dota de potencial emancipatório de mentes e espíritos. O corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de expressão jornalística e liberdade de imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como o mais evoluído estado de civilização.

8.1 – Em última ratio, o que desejam os impetrantes, com os dados de fato pretendidos, é viabilizar, no particular, o cumprimento de sua tarefa, que tem especial assento na Carta Magna, de examinar o respectivo conteúdo e, com fidelidade, bem informar à comunidade Nacional, credora definitiva das informações de interesse ou mesmo utilidade pública.

9 – Peço licença para reportar-me, ainda, ao substancioso parecer emitido pelo ilustre Dr. ANTONIO FONSECA, Subprocurador-Geral da República (fls. 150/166), que abordou, analiticamente, “A Segurança do Estado e da Sociedade: limites ao acesso”, as “Razões da Recusa”, “Informação por meio de certidão”, “Direito à informação: a força dos precedentes”, “O alcance da Lei 12.232/10 (art.16)”, “O dever de transparência na Lei de Finanças”, “A competência da SECOM”, “O argumento do interesse privado”, “A filosofia do governo aberto”, afastando, ao cabo de contas, convincentemente, todos os óbices levantados pela autoridade impetrada, para não atender o pretendido. Referido parecer ficou assim ementado:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO À INFORMAÇÃO. DOCUMENTO PÚBLICO. ACESSO. GASTOS DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA. 1 – Para o exercício do direito à informação (CF/1988, art. 5o, XXXIII), não se exige que os dados contidos em documento público sejam fornecidos sempre com precisão e sob a forma de certidão. 2 – De acordo com o art. 6o, incisos I, VI, VIII e IX, do Decreto Federal no 6.555/2008, e documentado nos autos (Acordo de Cooperação Técnica), a autoridade impetrada detém a competência para fornecer as informações solicitadas pelos impetrantes. 3 – Permite-se acesso a documento público inclusive para atendimento de interesse particular. Essa franquia reflete a filosofia do “governo aberto” (Open Government Partnership), com a qual o Governo da Presidente Dilma está comprometido. 4 – Conforme o art. 5o, XXXIII, e o art. 37, § 3o, II, da CF/1988, as únicas limitações ao acesso a documentos públicos de interesse particular ou de interesse coletivo ou geral são constituídas por dados e informações consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado, ou que digam respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas. A preservação de estratégia de negociação de mídia com os veículos de comunicação não se enquadra em qualquer das limitações acima. 5 – Parecer pela concessão da segurança.

Por oportuno, cumpre transcrever os seguintes trechos do parecer ministerial (fls. 155/164e):

Razões da recusa

Por outro lado, nota-se um conflito de posicionamentos a respeito de a autoridade impetrada dispor ou não das informações requeridas pelos impetrantes.

Nesse sentido, no Ofício no 58/2011/GAB/SECOM-PR (fls. 25/26), apontado como coator, a autoridade impetrada não nega que disponha os dados, mas busca justificar o seu não fornecimento. Porém, ao prestar informações nos autos, assevera tanto não deter competência legal para fornecê-los, como não dispor dos referidos dados.

…………………………………………………………………………………….

Extrai-se dos autos que a autoridade impetrada dispõe dos dados requeridos, mas se recusa a fornecer cópia deles sob o argumento de não serem exatos, já que consistem em pedidos de inserção (PI), que não equivalem precisamente aos valores efetivamente gastos discriminados por veículo de comunicação.

Nessa situação, nada impede que a autoridade impetrada os forneça sob a ressalva de que não correspondem precisamente aos gastos efetivos em questão, sobretudo porque sobre eles não recai nenhum tipo de sigilo exigido pela Constituição da República, como já explanado.

………………………………………………………………………

A competência da SECOM

Além disso, a competência da SECOM para fazer o controle ou manter registros relativos aos valores totais gastos por todos os órgãos das Administrações Direta e Indireta do Governo Federal pode ser deduzida do disposto no art. 6o, incisos I, VI, VIII e IX, do Decreto Federal no 6.555/2008, ainda que a SECOM disponha apenas dos pedidos de inserção, sem relação necessária com os gastos efetivos.

A propósito, os impetrantes fizeram expressa referência, em seu requerimento, ao fato de que as informações e os dados requeridos estariam contidos em relatórios anuais produzidos pelo IAP para a SECOM (fl. 24), em atendimento a Acordo de Cooperação Técnica entre essas entidades, que prevê expressamente tal encargo (fls. 84/85).

Com efeito, considerando-se que os referidos relatórios foram produzidos e remetidos para a SECOM, para o cumprimento de suas específicas atribuições, fica afastado qualquer interesse jurídico por parte de outras entidades da Administração Indireta do Governo Federal, sendo desnecessário dar-lhes ciência da tramitação do presente mandamus.

Em síntese, pelo inciso X, art. 5o, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas; pelo XXXIII, também há proteção às informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Afora tais exceções, a regra é a publicidade irrestrita, tal como vimos dos dispositivos transcritos e, ainda, do art. 93, IX e X, da mesma Carta Magna, aqui, especificamente quanto às decisões do Judiciário, inclusive no campo administrativo.

Há de prevalecer, portanto, no caso, a regra geral da publicidade e acessibilidade às informações, legitimamente pretendidas pelos Impetrantes, o que se sintoniza com a norma do art. 5o, da LICC (atual LINDB), segundo a qual “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Ora, a observância do princípio da publicidade pela administração, insere-se no seu fim social e atende ao bem comum, pois “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” – parágrafo único, do seu art. 1o.

Logo, visando a pretensão a obter elementos de fato que permitam fazer reportagem a respeito, a qual se destina ao povo, pois se trata de jornal, nada mais coerente que se atenda a tal pleito, em face das franquias constitucionais arroladas.

Gize-se, aliás, que em 18/11/11 foi publicada a Lei 12.527, dispondo sobre acesso a informações previsto nos arts. 5o, XXXIII, 37, § 2o, II e 216, § 2o, todos da CF, a qual, respeitadas as exceções já apontadas, abre e determina ampla publicidade aos atos dos Poderes Públicos, em todas as unidades federativas, órgãos diretos e indiretos, de tal modo que, penso mesmo que este mandamus não mais se justificaria, porque despido de interesse processual, pois administrativamente deveria ser atendido o pleito. No entanto, após intimadas, a autoridade impetrada e a UNIÃO apresentaram impugnação reiterando a inviabilidade do pedido dos impetrantes, o que motiva, ainda, o interesse no julgamento deste writ.

Ante o exposto, concedo a segurança, nos termos do pedido (fl. 13e, itens 32/33), devendo a autoridade impetrada, em prazo razoável, não superior a 30 dias, cumprir esta decisão. Custas na forma da lei. Honorários indevidos, conforme Súmula 105/STJ.

É o voto.

Observe-se que o recurso teve seu julgamento iniciado em 27/6/12 e concluído em 14/11/12. O writ foi concedido pela Primeira Seção do STJ, à unanimidade. Houve, no entanto, a oposição de embargos de declaração, que foram impugnados e se encontram pendentes de julgamento.

Releva notar, por fim, que o Brasil participa da Open Government Partnership (OGP) ou “Parceria para Governo Aberto”, que é uma iniciativa internacional cujo objetivo é assegurar compromissos governamentais concretos nas áreas de promoção da transparência, combate à corrupção, participação social e estímulo ao desenvolvimento de novas tecnologias. Além disso, o direito fundamental de acesso à informação é também reconhecido por organismos da comunidade internacional, dos quais o Brasil faz parte, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA). Tudo a refletir o comprometimento de nosso país com o ideal democrático.