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Lei de Recuperação e Falência: Uma velha senhora, aos onze anos de idade

18 de novembro de 2016

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Tiago Salles, Editor-Executivo da Revista Justiça & Cidadania; Juliana Bumachar, presidente da Comissão Especial de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência da OAB/RJ; Ministro João Otávio de Noronha, do STJ; Fábio Nogueira, procurador-geral da OAB/RJ; Des. Manoel Pereira Calças, corregedor-geral do TJSP; Márcio Guimarães, promotor; Paulo Salles de Toledo, presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperaçao de Empresas

Tiago Salles, Editor-Executivo da Revista Justiça & Cidadania; Juliana Bumachar, presidente da Comissão Especial de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência da OAB/RJ; Ministro João Otávio de Noronha, do STJ; Fábio Nogueira, procurador-geral da OAB/RJ; Des. Manoel Pereira Calças, corregedor-geral do TJSP; Márcio Guimarães, promotor; Paulo Salles de Toledo, presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresas

Seminário no Rio discute o direito das companhias em dificuldades e as necessárias atualizações na Lei de Falência e Recuperação de Empresas

Ainda paira em torno da Lei 11.101/ 2005, conhecida como Lei de Recuperação e Falência, uma densa névoa de incertezas por parte da comunidade jurídica brasileira. O diploma legal chega aos onze anos de idade sem ter sido ainda completamente digerido pelos juristas, mas já demonstra fragilidades que animam muitos a pedir sua reforma. Nesse sentido, o II Seminário de Direito das Empresas em Dificuldade, realizado em 16 de setembro no Rio de Janeiro, foi uma oportunidade ímpar para dissipar dúvidas e ampliar os horizontes, a partir das interpretações da Lei feitas por nomes de grande atuação e reconhecimento na área do Direito Comercial.

Dentre os convidados, participaram os ministros do STJ Luís Felipe Salomão, Paulo de Tarso Sanseverino e João Otávio de Noronha, os desembargadores Manoel Pereira Calças e Manoel Justino Bezerra, o juiz de Direito Dr. Luiz Roberto Ayoub, além de advogados, promotores e outros juristas de vários estados brasileiros com grande conhecimento das questões relacionadas à falência e recuperação de empresas.

Promovido pela Comissão Especial de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência da OAB-RJ, pelo Instituto Justiça & Cidadania e pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresas, o Seminário foi realizado por iniciativa da advogada Juliana Bumachar, presidente da Comissão, e do promotor Márcio Souza Guimarães, titular da Promotoria de Massas Falidas do Estado do Rio. O encontro teve apoio do Ministério Público do Rio de Janeiro, do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresas.

 Prevenção ou UTI

A abertura foi feita pelo ministro João Otávio de Noronha, atual Corregedor Nacional de Justiça. Após avaliar medidas legais e políticas governamentais tomadas com o propósito de recuperar empresas no passado recente do país, Noronha falou sobre a necessidade de rediscutir a estrutura judiciária brasileira voltada para esta finalidade. “Não podemos ter varas especializadas como UTIs. Antes de ir para a UTI, o paciente precisa de diagnóstico e tratamento preventivo (…). É preciso ter a vara especializada em falência e recuperação, mas tem que ter outras, como as especializadas em questões societárias. Os americanos têm uma concepção que nós precisamos aprender: a saúde da economia está na saúde das empresas (…). Precisamos entender que a empresa impacta a saúde da economia e os desígnios da sociedade brasileira, que precisa de empregos e não pode ter contendas tão longas”, disse.

Noronha estimulou a discussão de soluções pouco onerosas, na medida em que o “orçamento é finito”. Em paralelo à criação de varas especializadas, por exemplo, ele acredita que, com os devidos mecanismos de controle, seja interessante contratar agentes especializados em processos de grandes empresas. Para ilustrar, citou o caso dos tribunais do estado da Geórgia, nos Estados Unidos, onde juízes aposentados são contratados, como uma carga horária reduzida, para julgar casos de maior complexidade. Por fim, o ministro saudou a realização do evento: “Em um país que só se discute processo, esse Seminário ressuscita o debate sobre o Direito Comercial e Empresarial”.

Flexibilização necessária

O primeiro painel, moderado pela Dra. Juliana Bumachar, tratou da “trava bancária”, cessão fiduciária na qual há transferência de créditos para instituições financeiras como garantia de empréstimos, na qual os recebíveis ficam bloqueados até que o empréstimo seja quitado. O desembargador do TJ-SP Manoel Justino Bezerra Filho foi convidado a falar sobre os requisitos para a constituição deste instrumento. Segundo ele, antes mesmo da criação da Lei 11.101 já havia preocupação de que o “favorecimento ao crédito bancário” poderia causar transtornos. Segundo ele, apesar dos entendimentos do STJ sobre o assunto serem referência, vários tribunais estaduais vêm julgando em sentido contrário. O magistrado avalia que o STJ, acertadamente, flexibilizou alguns pontos da Lei para favorecer a recuperação. A Corte não teria feito o mesmo, no entanto, em relação à trava bancária. “Especificamente em relação à cessão fiduciária, tranquilizou-se o entendimento de que os créditos garantidos não se submetem aos efeitos da recuperação. A instituição financeira credora recebe diretamente e resolve o problema dela”, disse.

O desembargador apontou com uma das interpretações mais adequadas determinado voto do ministro Luís Felipe Salomão que, segundo ele, exemplifica a flexibilização que poderia existir em relação à cessão fiduciária. “O voto dizia que a tese extrapolava ao ‘retirar do juízo da recuperação a mínima possibilidade de ponderação entre a qualidade do crédito e a essencialidade dos valores à atividade empresarial. O cessionário autoriza o credor a liquidar extrajudicialmente a garantia a seu nuto e à revelia da recuperação. Enfim, transforma o credor garantido por cessão fiduciária de títulos em um supercredor’. Parece que realmente é o que acontece com a cessão fiduciária”, avaliou Bezerra, que acrescentou para finalizar: “Sei que banco não é instituição de caridade, mas o favorecimento muito grande para um determinado setor acaba trazendo distorções que tornam impossível alcançar a finalidade da recuperação judicial”.

 Smart contracts

Na sequência, o advogado especializado em recuperação judicial Dr. Ivo Waisberg e o professor de Direito Comercial da USP, Dr. Francisco Satiro, cada qual a seu tempo, acrescentaram novas críticas ao tratamento da cessão fiduciária na recuperação. Segundo os juristas, o art. 49, parágrafo terceiro, da Lei 11.101 não foi pensado para a hipótese de cessão fiduciária de crédito. “O artigo fala em direito de propriedade sobre a coisa, retirada da coisa do estabelecimento do devedor, fala de bem de capital essencial. Se o objetivo fosse tratar de crédito, ele teria usado outra linguagem e a gente teria aqui outro tipo de tutela. (…) O legislador não pensou na hipótese da cessão fiduciária de crédito”, comentou Satiro.

Ao final de sua exposição, Satiro comentou uma questão que, segundo ele, deve começar a ser percebida pelo Judiciário nos próximos anos, os chamados smart contracts, arranjos contratuais celebrados via sistema que possuem mecanismos automáticos de execução. “Existe uma cidade que acabou de implantar os smart contracts para o AirBNB, serviço virtual de locação de imóveis. Você paga e recebe um cartão que vai abrir a fechadura. Se por acaso seu cartão for rejeitado, não vai mais abrir mais a fechadura do imóvel”, explicou o professor. Segundo ele, a novidade corrobora uma tendência de mercado que tenta transformar garantias de execução de contrato num procedimento corrente de lógica, para fugir do Judiciário, que só seria acionado para evitar o curso normal que é a execução do contrato. “Se há um ambiente em que esses smart contracts tendem a evoluir rapidamente, é o ambiente do sistema financeiro e das garantias como transferência e cessão de crédito. Prevejo painéis movimentados nos próximos anos”, vaticinou.

O papel do administrador judicial

Moderado pelo Dr. Bruno Rezende, advogado que atua justamente no ramo da administração judicial, o painel seguinte teve como foco as atribuições e desafios dos administradores judiciais (AJs). O primeiro a falar foi o professor de Direito da UFRGS, Dr. Cássio Cavalli. Inicialmente, ele comentou que a composição do Seminário indica que a comunidade do Direito em reestruturação de empresas já possui um caráter nacional. “Agora podemos pensar em soluções para o país como um todo e não em soluções meramente regionais, que não se comunicam com a experiência acumulada por outros estados”, avaliou. Na sequência, passou a descrever as funções do administrador judicial nos processos de falência e recuperação. O AJ atua como auxiliar do juiz na organização do processo; organiza a verificação de créditos e assembleias de credores; desempenha atos de execução como a arrecadação de bens e avaliação de ativos; além de
funções de mediação, como nivelar as informações entre devedores e credores. Na recuperação, o AJ
cuida ainda de fiscalizar o andamento dos negócios, além de evitar desvios de ativos. Na falência, administra a massa falida e se transforma “no administrador de fato da empresa”, conforme explica o professor.

Cavalli defendeu a profissionalização da função. O principal obstáculo seria a dificuldade de estabelecer critérios claros para sua remuneração. “De quanto deve ser a remuneração? De 5%, de 1%, de R$ 100 mil, de R$ 10 milhões? Qualquer resposta a princípio é válida. Existe um meme do Facebook que eu gosto muito que é o cardápio de um restaurante. Esse restaurante serve três pratos com três ingredientes, mas apenas dois estão em cada prato. Nós temos que escolher o que queremos. Os ingredientes são: bom, rápido e barato. Se for bom e for rápido, não será barato. Se nós queremos que o AJ desempenhe bem suas funções e seja rápido, seu trabalho não será barato. É uma questão de escolha”, opinou.

A remuneração do AJ

O corregedor geral do TJ-SP, Manoel Pereira Calças, deu continuidade à discussão sobre a remune­ração do administrador judicial, esmiuçando os critérios aplicados nas decisões do STJ e do TJ-SP. Seria levada em consideração a capacidade de pagamento do devedor, o grau de complexidade do trabalho e a comparação com o trabalho de outros profissionais que cumprem tarefas semelhantes (peritos judiciais, por exemplo). O valor da remuneração, limitado ao teto máximo legal de 5% do valor devido, deve considerar também o teto constitucional dos salários de ministros do STF.

“A remuneração de determinado profissional como administrado judicial não pode ter o efeito de um prêmio lotérico para um exclusivo ganhador. A remuneração do administrador tem que observar o postulado da proporcionalidade e da razoabilidade (…). Havia casos, ao menos no Estado de São Paulo, de nomeação de ex-juízes e ex-membros do MP que enriqueceram com concordatas de valores estratosféricos. Não é para isso que o Poder Judiciário está aí”, disparou o desembargador. Calças ressaltou ainda que só os juízes podem decidir sobre os honorários dos administradores, prerrogativa da qual “não podem abrir mão”, de modo a evitar acordos fraudulentos para fixar milionárias remunerações para AJs.

Responsabilidade civil do administrador

O Dr. José de Anchieta da Silva completou o quadro com uma discussão sobre a responsabilidade civil do AJ. Lembrou que, apesar da recuperação judicial ser um processo caro, invasivo, estigmatizante e, essencialmente, de perdas, a Lei de Falência e Recuperação não tem dispositivo específico para tratar da responsabilidade civil do administrador judicial. Haveria apenas algumas disposições dispersas, “como no art. 18, que fala do quadro geral de credores. Ou no art. 23, que estabelece que o AJ deve apresentar contas e relatórios nos prazos assinalados, sob pena de responder por crime de desobediência. Ou ainda no art. 24, no qual se encontra que ‘agindo com desídia, culpa, dolo, descumprindo obrigações de suas contas desaprovadas o administrador não receberá sua remuneração’”. Sobre esse último artigo, Anchieta acrescentou: “Quando a lei caminhou para falar numa instância efetiva de responsabilização, não o fez em função de responsabilizar, mas apenas de punir”.

“Qual é, com clareza, a dificuldade de se estabelecer a responsabilidade do administrador? Ele não vota, não é credor. A responsabilidade dele é funcional. É um terceiro. Não sendo credor, não gerindo coisa própria, que tipo de responsabilidade a lei brasileira lhe destinou? Concluo dizendo que na varredura da Lei que fiz, não encontrando porque não existe uma disposição específica dizendo da sua responsabilidade, resta voltar ao Código Civil de Miguel Reale (…). A conclusão que cheguei é que a responsabilidade civil do administrador na ação de recuperação judicial, tal qual como regulado na lei brasileira, é a responsabilidade com concurso da culpa. É a responsabilidade simples, a responsabilidade do Código Civil”, finalizou.

O papel dos credores e os limites do juiz

O Seminário teve continuidade com o painel “O papel do credor na recuperação judicial”. A moderação foi feita pelo juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Roberto Ayoub, e coube ao ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino discutir os precedentes judiciais sobre o poder do credor diante da empresa em dificuldades. Ele disse que embora a Lei de Recuperação e Falências tenha 11 anos, apenas nos últimos cinco anos ela passou a ter uma maior confiança por parte da comunidade jurídica. “Para nós todos é uma grande oportunidade fazer essa avaliação crítica do que está acontecendo nos microssistemas da recuperação”, comentou. Após uma análise da evolução histórica da recuperação no Brasil, Sanseverino buscou demonstrar o quanto a Lei de Falência e Recuperação foi importante para atualizar o Direito Comercial no país. Segundo ele, na nova lei o juiz tem um papel muito importante, porém limitado. “O poder de deliberação da assembleia geral dos credores, inclusive discutindo o plano de recuperação com os próprios devedores, é um poder bastante amplo. O controle feito pelo juiz é bastante restrito, fica em primeiro lugar no plano da legalidade, verificando exatamente se as deliberações estão dentro dos parâmetros legais e, num segundo momento, na questão relativa ao abuso de direito, para evitar abusos do devedor ou dos próprios credores”.

Ainda sobre os limites do poder de controle do juiz, disse o ministro que três correntes da doutrina se refletem na jurisprudência. Para a primeira corrente, de menor expressão, seria um papel apenas homologatório. Para a segunda, deve ser restrito à legalidade das deliberações. A terceira entende que o juiz deve ter papel ativo no controle do mérito das deliberações e na análise da consistência econômica do plano de recuperação. Essa última corrente, segundo Sanseverino, se fundamenta no art. 41 da Lei 11.101, que trata dos fins da recuperação, dentre os quais estão não apenas o atendimento dos credores, mas também o zelo pela função social da empresa e o interesse da comunidade na qual ela está inserida. Os precedentes do STJ, segundo ele, indicam que o juiz pode promover o controle da legalidade sem que isso signifique, contudo, restringir a soberania da assembleia geral de credores.

Desconsideração da personalidade jurídica

Fugindo do óbvio na discussão do incidente da desconsideração, tema laboriosamente discutido pela comunidade jurídica, o promotor Márcio Souza Guimarães buscou demonstrar que a desconsideração é motivada pela própria natureza do ser humano: “Somos animais com incrível capacidade de destruição e, infelizmente, nos tornamos grandes fraudadores. A fraude está na origem da desconsideração”, explicou. Na sequência, ao tratar da compatibilidade da desconsideração com a recuperação judicial, questionou: “Será que o litisconsórcio ativo, que vem sendo tão aceito, já não é uma forma de desconsideração? Quando admitimos que determinado credor de uma companhia, que assinou com aquela sociedade, seja posto no bolo de cinco ou seis companhias cujo patrimônio será único, estamos admitindo que há desconsideração de cada personalidade jurídica para que a empresa, uma atividade econômica só, faça frente a todos os credores (…). O que me parece é que a desconsideração da personalidade já vem sendo utilizada para fundamentar este posicionamento”.

Para o promotor, a responsabilidade daqueles que administram empresas ainda está em construção no nosso sistema, sem os dispositivos que já existem, por exemplo, nos sistemas europeu e dos EUA. “Aqui ainda temos a ideia de que, pedindo a recuperação, aquele que está por trás (da empresa) terá um salvo conduto. Não pode ser assim”, disse. Em suas conclusões, reafirmou que a desconsideração da personalidade jurídica seria admissível na recuperação judicial, por lhe parecer que nenhum mecanismo legal pode servir de salvo conduto para a prática de fraudes. Ressalvou, no entanto, que a desconsideração deve excepcional, pois a regra é a boa fé. “Deve ser demonstrado o mínimo necessário para que o incidente seja instaurado”, finalizou.

Ativismo creditário x fundos abutres

O próximo a falar foi o professor de Direito Dr. Maurício Menezes, que discutiu a tendência do mercado de converter os direitos dos credores em ações das companhias em recuperação. “Estamos falando de um saneamento financeiro que acaba repercutindo na estrutura de capital da companhia (…) direitos acionários, distribuição de poder e satisfação de direitos dos demais agentes econômicos envolvidos. A medida é muito bem-vinda. Algumas recuperações foram bem-sucedidas utilizando esse instrumento. A questão é como fazer? Talvez o ponto central diga respeito ao método. Conforme seja bem-sucedido ou não, poderá aprofundar conflitos ou, muito ao contrário, vir a mitigá-los”, avaliou.

Para os devedores, a conversão é vista como medida de sobrevivência. Para os credores, como forma de exercer uma defesa promocional dos seus interesses, influenciando na governança da companhia para tornar mais valioso seu “investimento”. A participação ativa de credores profissionais, segundo ele, já mudou o perfil da recuperação judicial nos EUA e deve, em breve, ter reflexos também no Brasil. Ele defendeu, no entanto, a imposição de limites contra excessos e uma necessária distinção entre credores ativistas colaborativos e os chamados “fundos abutres”. “É preciso ficar de olho, pois esses fundos visam exclusivamente seu próprio direito sem considerar os direitos e expectativas dos demais, aproximando-se do cenário de abuso de direito”, alertou. Dentre as principais vantagens da conversão de crédito em ações estariam o acompanhamento ativo da governança da companhia, a colaboração direta e indireta para o soerguimento da empresa e um relativo alívio dos sacrifícios impostos aos credores. Menezes finalizou sua palestra com outro alerta: é necessário alterar a lei tributária para que não se entenda mais a conversão de dívidas em ações como um perdão de dívida, o que gera tributação extraordinária sobre “quem não tem nem condições de pagar aos credores atuais, quanto mais por operações feitas no curso da recuperação”.

Recuperação extrajudicial

O último painel do dia, “Desafios da Lei das Empresas em Dificuldade”, moderado pelo Dr. Daltro Borges, teve início com a palestra do Dr. Paulo Penalva Santos, procurador do Estado do Rio de Janeiro, que falou sobre a recuperação extrajudicial. Segundo ele, quando o empresário entra em processo de dificuldade, a primeira opção é a chamada concordata amigável, que a Lei denomina de acordo privado no art. 167. “A gente percebe que esse acordo privado é o primeiro passo que o devedor dá em direção aos credores. Essa sensibilidade de que os credores têm, de que no momento que tiver dificuldades o devedor vai pedir uma recuperação, com perda patrimonial para todos, também aumentou o escopo desse acordo privado”, avaliou.

Seguindo o roteiro, quando o acordo privado não dá certo, os devedores tentam capitalizar a empresa com auxílio dos sócios. Se isso não for viável, podem partir para a recuperação extrajudicial. No entanto, segundo Penalva, o número de pedidos de recuperação extrajudicial ainda é reduzido. O que se deve a uma série de fatores, como o aumento do número de acordos privados, que são menos traumáticos para as partes. Outro fator é que a recuperação extrajudicial não permite a negociação com todas as classes de credores, como no caso dos trabalhistas. Um terceiro fator é a questão da proteção, que na recuperação extrajudicial não existe em relação à ação revocatória ou à sucessão trabalhista e tributária, como acontece na recuperação judicial. Como vantagens da recuperação extrajudicial, Penalva destaca a celeridade do processo, que acontece em função de não haver assembleia de credores nem plano de recuperação, apenas um plano de pagamentos, sem a possibilidade de decretação de falência.

Insolvência transnacional

O Dr. Paulo Salles de Toledo, desembargador aposentado do TJ-SP e presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresas, abriu sua fala com um comentário sobre os efeitos do tempo na Lei de Falência e Recuperação. “A Lei 11.101 foi aplaudida inicialmente pelo fato de ter atualizado a legislação brasileira em matéria de empresas em recuperação. Com o passar do tempo, no entanto, mostrou fragilidades, de modo que hoje percebe-se claramente que há diversos pontos na Lei a serem alterados (…). A Lei que foi tão atual em tantos aspectos, deixou de ser quanto à insolvência transnacional”, comentou.

Segundo ele, há duas grandes soluções que o Direito prevê para este tipo de insolvência: o Regulamento Europeu e a Lei Modelo da UNCITRAL (Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional). A solução europeia é restrita àquele continente, enquanto a Lei Modelo oferece resposta mais ampla, com diretrizes para a edição de normas legisladas em todos os países do mundo. A particularidade da Lei Modelo, segundo Menezes, é que ela se dirige não ao cidadão, nem aos estados ou empresas. Dirige-se ao legislador de cada estado, para que ele possa verificar as possibilidades de adequação ao ordenamento jurídico nacional.

O desembargador demonstrou que os dois únicos mecanismos da Lei que tratam da insolvência transnacional são insuficientes para responder ao desafio. O primeiro, no art. 3º, fala da competência do juízo brasileiro para deferir recuperação ou decretar falência para filial de empresa que tenha sede fora do Brasil, com eficácia limitada ao território nacional. A outra hipótese, no art. 97, fala que o credor estrangeiro poderá pedir a falência de devedor brasileiro, com a adoção de nossas leis, desde que preste caução para custas e eventual indenização. Os fatos, no entanto, pressionam o legislador. Há grandes e recentes casos de recuperação, com questões diretamente relacionadas à insolvência transnacional, para as quais não há direito expresso no ordenamento brasileiro. Vários deles envolvem empresas brasileiras com atuação internacional. “Evidentemente, o juiz brasileiro não pode alegar lacuna na lei ou inexistência de norma expressa e tem procurado dar a solução mais adequada (…). Os juízes têm admitido o processamento conjunto de todas as recuperações na Justiça brasileira, inclusive de pessoas jurídicas estrangeiras que integram o grupo que pediu recuperação”, explica Salles de Toledo, que mencionou como exemplos os casos da OGX, OAS, Oi e Sete Brasil.

Há um problema concreto nessa solução: a jurisdição brasileira não alcança sociedades estrangeiras, que estão submetidas às leis do país em que foram constituídas, de modo que uma eventual determinação de juiz brasileiro não será necessariamente cumprida pelo juízo estrangeiro. Para dotar o ordenamento nacional de instrumentos mais adequados, o desembargador defendeu a inserção de disposições da Lei Modelo na Lei 11.101. “Não temos necessidade de uma nova Lei de Recuperação, mas todos concordam quanto à necessidade de uma reforma pontual. Caberia, no bojo desta reforma, disciplinar também a insolvência transfronteiriça (…). A Lei Modelo parece ser a resposta ideal, pela harmonização com regras acolhidas por diversas legislações, colocando o Brasil próximo do sistema jurídico adotado por outros estados (…). Com um sistema assemelhado, haveria maior segurança jurídica para os agentes econômicos”, defendeu.

Aplicação do novo CPC

O Dr. Sérgio Campinho, professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da UERJ, falou na sequência sobre a aplicação de disposição do novo Código de Processo Civil à Lei 11.101. Focou na questão dos prazos. “É um grande desafio, de grande relevância para a segurança jurídica. Como vão se contar os prazos de natureza processual na falência e na recuperação? Vamos aplicar a regra dos prazos processuais, contados em dias úteis? Ou a regra dos prazos de natureza material, em dias corridos? Começamos logo com um grande problema: Qual é a natureza do prazo de 60 dias para a apresentação do plano? (…) Minha posição, minoritária entre aqueles que já se debruçaram a escrever sobre o assunto, é a de que não aplica o regime do art. 219 do novo CPC aos processos de recuperação. Os prazos na lei 11.101 são peremptórios e seguem o seu curso direto, normal, não há o que se falar em dias úteis”, pontuou.

Seu primeiro argumento em defesa desta posição está no art. 189 da lei 11.101, que manda aplicar o CPC no que couber, isto é, no que for compatível. “O caráter suplementar está evidenciado, de sorte que só se aplica quando não houver uma rejeição da lei inicial, o que pode se dar por conflito direto com a regra ou por conflito principiológico”, defendeu.

Segundo Campinho, toda a construção da Lei 11.101 é feita no sentido de conferir celeridade aos processos de falência e recuperação. “Não podemos esquecer que a recuperação judicial traduz um processo sob sacrifícios, em que os direitos tanto do devedor quanto dos credores estão restritos. A solução célere é fundamental, justamente apara aliviar esse sacrifício que se impõe em prol de um bem maior, que é a preservação da empresa. Não a preservação daquele que exerce a empresa, e sim da empresa na sua concepção de organismo vivo de múltiplas relações com terceiros, gerando riquezas para a sociedade. (…) Por esses elementos, parece que o princípio da celeridade está sim a inspirar todo o procedimento da recuperação judicial”, argumentou.

Para Campinho, quando determinados os prazos da recuperação são contados em dias úteis, toda essa construção pela celeridade desmorona. “Chego a uma conclusão: o sistema de prazos do CPC é incompatível com o sistema da Lei 11.101. Achei por bem trazer esse tema para o nosso debate porque ele tem desafiado as mentes mais brilhantes da doutrina do Direito em crise do Brasil”, concluiu o jurista.

 Reforma da Lei de Falência e Recuperação

O último palestrante do Seminário foi o Dr. Fábio Ulhoa Coelho, professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da PUC-SP e idealizador do tradicional Congresso Brasileiro de Direito Comercial, que terá sua sétima edição em maio do ano que vem. Para ele, qualquer proposta de mudança hoje na área do Direito Comercial e das empresas em dificuldades de ter a preocupação básica de aumentar a segurança jurídica. “Há insegurança jurídica quando há imprecisão das decisões judiciais. Não existe nenhum lugar do mundo em que 100% das decisões judiciais seriam previsíveis. O que existe é o que podemos chamar de margem de imprevisibilidade, com a qual os empresários do mundo todo acabam convivendo. Temos insegurança quando essa margem alcança níveis que começam a dificultar a organização da atividade empresarial”, pontuou, acrescentando: “Há insegurança jurídica quando há uma dissintonia entre o risco assumido e o risco suportado”.

Para Coelho, a estratégia utilizada para dar mais segurança aos dispositivos legais têm sido ‘caprichar mais na redação das leis’, o que, segundo ele, não funciona. “Precisamos de outra estratégia, com a formação de uma nova cultura. (…) Em termos operacionais, isso nos faz caminhar para diplomas que tenham um forte acento principiológico. Algo utilizado, por exemplo, no Código do Consumidor, que disseminou toda uma cultura em torno da defesa do consumidor. Uma lição de como devemos tratar as próximas leis de Direito Comercial, para que elas possam contribuir para a formação de uma cultura que nos leve à maior segurança jurídica”, defendeu.

Encerramento

Coube ao ministro do STJ Luís Felipe Salomão fazer a palestra de encerramento do Seminário, que contou na mesa com a participação do presidente da OAB-RJ, Felipe Santa Cruz. Para iniciar sua argumentação, o ministro recorreu a William Shakespeare, que na peça O Mercador de Veneza – que tem como pano de fundo o cumprimento de um contrato – escreveu: “Quero ser acordado pela luz empoeirada do sol, que entra pelas frestas das persianas”. A imagem foi usada justamente para discutir a questão da segurança jurídica. “Tudo o que não se quer para um processo de recuperação judicial ou de falência é a insegurança jurídica. No rumo dos negócios o que vale é o talento no risco de se apostar num caminho ou outro. Para o campo da recuperação judicial, precisamente, o conceito é ainda muito mais fechado do que aquele princípio que invocou aqui o Dr. Fábio. Dentro da recuperação judicial, a segurança jurídica provém não só das decisões dos juízes, mas do cumprimento dos precedentes judiciais, agora de forma ainda mais acentuada com o CPC novo”.

Salomão destacou que o STJ cumpre papel relevante neste sentido. O Tribunal vem interpretando os principais diplomas posteriores à redemocratização e, inclusive, fará em breve o exame de muitas questões processuais relativas à Lei 11.101 que foram discutidas no Seminário. “Nossa incumbência é muito grande nesse momento, justamente porque o CPC novo fala no princípio de que os precedentes, embora não vinculantes do ponto de vista técnico, têm agora um peso especial. Quando se trata de jurisprudência consolidada, é muito mais do que uma tentativa de sedução dos operadores do Direito. Têm agora um peso em termos de funcionamento do próprio sistema judicial (…). Então, o que nós temos que examinar dentro do conceito de segurança jurídica é o respeito aos precedentes”.

“Espero que com esses novos diplomas e essa nova visão que nós estamos construindo, possamos cada vez mais aprofundar a ideia da recuperação judicial como um dos pilares para a construção de uma sociedade justa, eficiente e adequada que é o que nós esperamos para a sociedade brasileira”, finalizou o ministro Luís Felipe Salomão.