Edição 113
Libera já!
31 de dezembro de 2009
Siro Darlan Desembargador do TJERJ, membro da Associação Juízes para a Democracia, membro do Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania
NOTA DO EDITOR
O corajoso artigo do eminente e conceituado desembargador Siro Darlan, que com grande satisfação publicamos, esperando que produza, sem hipocrisia, os devidos debates entre o Poder Público e a sociedade, constitui uma tentativa necessária para minorar as desgraças que estão corroendo a sociedade, matando inocentes e vitimando desgraçadamente a juventude que se encontra completamente desamparada de efetiva assistência pública, em uma luta inglória, na qual o crime está levando vantagem.
O nosso articulista é um experimentado magistrado no trato dos problemas da juventude, e pontificou com grande competência na direção dos Juizados de Infância e Juventude, abordando o relevante assunto da liberação das drogas, que necessita urgentemente de debates para o encontro de resultados que venham encontrar o caminho e a solução para acabar com o tráfico e a violência que campeiam livremente, desafiando a ordem e a lei.
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Assisti entusiasmado ao depoimento do policial norte-americano Jack Cole, na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, defendendo, com argumentos pautados na realidade de sua vivência de 40 anos de guerra contra as drogas, a liberação do comércio de todas as drogas tidas como ilícitas pela legislação. Os dados estatísticos de mortos, presos, e dispêndio financeiro com essa guerra inútil apontam na direção de que a sociedade precisa sair desse entorpecimento patrocinado por uma política que só olha para a preservação dos lucros financeiros que a economia das drogas proporciona, desprezando os valores humanos e apostando na segregação de negros e pobres, que são os clientes referenciais das prisões em todos os países proibicionistas.
Segundo Jack, somente no México morreram 6.290 pessoas no ano de 2008, na batalha contra os cartéis de drogas; enquanto nos Estados Unidos 2 milhões e 200 mil pessoas superlotam as prisões. O Brasil já é o 4º país mais encarcerador do planeta, com 470 mil presos e mais 500 mil cumprindo penas alternativas. Enquanto isso, a produção mundial de drogas ilegais nunca cresceu tanto. Será que essa política que só prende, mata e discrimina é capaz de eliminar a praga das drogas e salvar nossas crianças e famílias?
No Brasil, essa guerra tem envergonhado a Polícia, que dia a dia sofre derrotas acachapantes, como foi o caso da derrubada do helicóptero que causou a morte de três combatentes. Em seguida a resposta foi ainda pior, com 29 mortos que a Polícia atribui a marginais, porque assim fica mais fácil deglutir, mas a reação da família de três deles levou a autoridade policial a pedir desculpas públicas pela injúria assacada.
Está claro que o abuso de drogas, como o alcoolismo, é um problema social e de saúde pública. Empurrar as drogas para a clandestinidade, do mesmo modo que aconteceu com o álcool na década de 1920, serve apenas para aumentar os preços, atrair o crime e promover a corrupção policial e de outras autoridades, além das criminosas e ilegais incursões nas comunidades pobres dominadas pelos grupos criminosos. Está claro que a proibição tem fomentado a prática criminosa organizada com objetivos de obter cada vez maiores lucros.
Segundo o Policial norte-americano, a legalização das drogas e dos serviços de apoio às comunidades através da implantação de políticas públicas responsáveis e consequentes é o remédio verdadeiro e capaz de pôr fim à essa guerra insana, incluindo o financiamento integral para o tratamento dos dependentes. Àqueles que questionam o custo financeiro desse tratamento, respondeu que em 2002 só a quinta parte dos fundos contra as drogas foi usada para a reabilitação. Igualmente importante é um eficiente programa publicitário e educacional para demonstrar os malefícios do uso de drogas e um investimento em políticas públicas visando eliminar a pobreza e a falta de oportunidade, que fazem com que as drogas sejam atrativas.
O mercado ilegal, gerado devido à proibição das drogas, tem causado sérios danos sociais não apenas no Brasil, mas mundialmente. O financiamento norte-americano dessa guerra destinou cerca de 1.300 milhões de dólares ao México e à América Central no ano de 2008. Promoveu-se um derramamento de sangue com violações dos direitos fundamentais, torturas e confissões forjadas, tal como ocorre nas incursões nos morros do Rio de Janeiro. O resultado é, dentre outros danos, a evasão escolar de milhares de crianças e a falta ao trabalho de trabalhadores que, intimidados por essa violência, permanecem em casa com graves prejuízos para o desenvolvimento e a economia do país.
Jack Cole acusa os Estados Unidos de fomentarem o crime organizado no México e na América Central com uma lei que exige a deportação dos imigrantes não cidadãos, incluindo os residentes legais que forem sentenciados por certo tempo de crimes. Afirma que as autoridades locais utilizam estas políticas para perseguir muita gente inocente.
Afirmou ainda que o Governo dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que se pronuncia publicamente contra as drogas, comercia secretamente com os narcóticos, e cita como exemplos: 1. durante a guerra do Vietnã, a CIA participou no comércio de heroína no sudeste da Ásia, onde supria as tropas norte-americanas; 2. na década de 1980, a CIA intercambiava armas e dinheiro por cocaína com os contras que lutavam contra o governo sandinista da Nicarágua; 3. durante a intervenção da antiga União Soviética no Afeganistão, os Estados Unidos ajudaram os grupos fundamentalistas mulçumanos de direita trocando sua heroína por armas.
Concluindo, Jack Cole afirmou que a guerra contra as drogas é racista ao atribuir ao Presidente Nixon o comentário de que: “O problema são os negros. A chave é criar um sistema para eliminar os protestos que tenha essa finalidade, mas sem que seja notado”. Esse comentário seria uma resposta aos movimentos de luta pelos direitos civis dos afrodescendentes. E, embora haja consumidores de drogas em todas as etnias e classes sociais, seja por divertimento, seja por razões médicas, a aplicação das leis é tremendamente injusta, porque elege os negros numa proporção cinco vezes maior do que as outras etnias para serem encarcerados.
Vê-se que no Brasil não é diferente, mas podem-se acrescentar às razões étnicas a predominância dos pobres, analfabetos e desempregados, muito embora sejam os de classe média e os ricos os responsáveis pelo capital que sustenta o comércio das drogas, mas raramente frequentam os Tribunais e menos ainda as prisões. Também no Brasil são os jovens entre 16 e 25 anos negros e mulatos que ocupam grande percentagem da população carcerária.
Segundo o Policial, o fracasso da aplicação das leis proibicionistas é tão evidente que foi fundada uma organização que trabalha na busca da legalização das drogas. O fundador foi o próprio Jack Cole, que acredita que se deve eliminar a proibição das drogas, da mesma maneira que foi eliminada a proibição do álcool em 1933, quando, um dia depois da revogação dessa lei, Al Capone e toda sua quadrilha de contrabandistas ficaram sem trabalho.
O que se propõe não é uma apologia às drogas, mas que, com a eliminação da criminalização do uso e do comércio de drogas, seja criado um Fundo de Promoção de Políticas Públicas de educação, saúde, trabalho e habitação para mostrar à sociedade, sobretudo às crianças e aos jovens, os malefícios do uso e abuso de drogas. Esse Fundo seria implementado com os tributos gerados pela venda das drogas e utilizado como um antídoto para curar os doentes provenientes do uso de substâncias entorpecentes.
A liberação dos presos sentenciados por crimes de drogas leves resultaria de imediato em uma economia ao erário que possibilitaria a criação de programas de tratamento e educação das vítimas das drogas. O redirecionamento dos milionários recursos hoje destinados a fomentar a guerra do tráfico possibilitaria o desenvolvimento de políticas de habitação e emprego para as comunidades mais pobres, hoje dominadas pelo poder dos criminosos e a educação e profissionalização dos jovens, que seriam os principais beneficiados com as políticas públicas.
Perguntou-se, no Seminário, ao policial o que ele achava da posição das mães de família diante dessa proposta de liberação das drogas, ele respondeu que na década de 1930 foram as mães, com slogans que concitavam todos a salvarem as crianças e as famílias, as responsáveis pela campanha pela liberação do álcool. A carta emocionada do pai, cujo filho de 26 anos, vítima do “crack”, matou uma jovem de 18 anos na Zona Sul do Rio de Janeiro, emoldura a dura realidade desse mal que atinge todas as classes sociais e deve nos conduzir a um debate sério e racional.
Pode não ser uma ideia nova nem revolucionária, mas com certeza poderia trazer melhores resultados do que a atual, em que apenas acumulamos despesas vãs e óbitos desnecessários, além de uma das mais eficientes redes de corrupção do planeta. Vamos pensar e debater esse tema tabu?