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Liberdade de Expressão, Liberdade Acadêmica e Ideologia sob a ótica de Tocqueville

19 de julho de 2018

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Angela Vidal Gandra Martins, Membro da Academia Brasileira de Filosofia e da Academia Brasileira de Letras Jurídicas

Introdução
Para a criação do livro “Democracia na América”1, Alexis de Tocqueville e Gustave ­Beaumont fizeram uma viagem disfarçada de pesquisa penitenciária, almejando desvendar o funcionamento da jovem nação estadunidense entre os anos de 1831 e 1832.

Ao passo que na França, um país milenar, a ­democracia apresentava-se frágil, nos Estados Unidos mantinha-se firme, tendo em conta que as Revoluções que a instauraram ocorreram quase simultaneamente nos dois países. Por essa razão, Tocqueville e Beaumont interessaram-se especialmente pela democracia na América.

Nesse sentido, a leitura atenta de seus escritos desperta o leitor brasileiro por uma série de questões, principalmente pela descrição do sistema, pois um país com quase o mesmo tempo de existência do Brasil apresenta um modelo tão consolidado, a ponto de nunca ter possuído outra forma de governo – muito distinto dos gaps democráticos que ocorreram em nosso país –, bem como a ampla e irrestrita liberdade de expressão em todos os campos, em contraposição à realidade brasileira.

Para essa consolidação da democracia na América notamos dois princípios destacados por Tocqueville2, como de grande valia para a sociedade estadunidense: a importância do pensamento majoritário tomado como um todo, conjugado com o respeito ao interesse individual. Em suma, esta estrutura democrática, que conjuga a maioria com o valor pessoal, é de fundamental importância para o pleno desenvolvimento da nação. Esses princípios foram plantados no espírito estadunidense pelos fundadores – a primeira leva de imigrantes que fundaram as 13 Colônias e projetaram o futuro de todo o país –, e, enraizados, permitiram o crescimento e fortalecimento conjunto e assegurado dos estados federados americanos como uma Nação. Bem escreveu John Courtney Murray ao destacar: “[the fathers] built better than they knew”3.

Free Society e Liberdade de Expressão
O poder exercido pela maioria sobre o pensamento na América ultrapassava o conhecido na Europa. A ideia de free society traz também à tona a liberdade de se expressar indefinidamente. Não há na América lei que proíba a expressão livre do pensamento. Por outro lado, é patente a intensidade influenciadora que o poder da maioria exerce sobre o pensamento americano, sendo muito maior do que os monarcas poderiam conquistar em seus países, já que possuíam apenas a força física para utilizar contra os súditos, a qual, apesar de amedrontadora, não se demonstrava tão efetiva. A maioria detém, além da força física, possuída pelos monarcas, a força moral.

Nesse sentido, em palavras de Tocqueville: ­“Au-dedans de ces limites, l’écrivain est libre; mais malheur à lui s’il ose en sortir4”. O fato é que a liberdade de expressão é ilimitada, mas se a ideia defendida entrar em choque com os valores da sociedade americana seus escritos não serão calados à força bruta, como uma censura, mas a própria sociedade o rejeitará. O ideal de free society traz a permissão de compartilhamento de todo e qualquer pensamento e uma verdadeira liberdade de discussão, ainda que apresente também a possibilidade de ser mal encaminhada, resultando em uma menor independência de espírito e certa intolerância, pois os valores defendidos pela opinião pública nesse cenário de exclusão fazem com que, em certos contextos, os americanos ouçam poucas verdades, já que a menor das realidades contrárias a seu status quo incomoda e até mesmo enfurece. De qualquer forma, estando o diálogo alicerçado em princípios liberais, este poderá ser mais facilmente reconduzido

O cenário brasileiro, por sua vez, não se aproxima de um ideal de free society. Em geral, a liberdade de expressão cumpre agendas políticas, porém, de forma artificial. No Brasil, mesmo em tempos democráticos, a falta da liberdade de discussão tende a se manifestar impositivamente, através de controle e silenciamento por grupos rivais.

São crescentes as tentativas de censura de pensamentos que contrariem ou fujam de um determinado padrão, que não representa necessariamente a população. De fato, defensores de ideias controversas não têm o privilégio de gozar do free speech. Nosso país se encontra ainda distante deste ideal, ou mesmo do que poderia supor uma free society, principalmente pelo déficit de educação, substituída pela agenda ideológica. Um exemplo claro dessa atividade esquizofrênica que promove free speech seletivo é a defesa de ditaduras ao redor do mundo quando essas se encontram em acordo com tais ideologias, e o repúdio por defensores de ditaduras ideologicamente opostas, mas igualmente sangrentas, em nome da liberdade e da fraternidade, o que realmente gera perplexidade desde Tocqueville. Passamos a uma breve análise deste fenômeno.

Liberdade Acadêmica e Ideologia
Em tese, uma free society deveria gozar plenamente do free speech. Porém, se este não respeita os limites humanos e a moralidade pública – moralidade não é ficção6 –, dificilmente não degenera no que hoje denominamos “discurso do ódio” que impede o debate pela falta de tolerância; pelo preconceito gerado pela ignorância e pela compreensão do verdadeiro pluralismo fundamentado em determinadas regras de convivência e em sólidas bases de senso comum. Caso contrário, a “cultura da indignação” afogará o saudável intercâmbio de ideias.

A iluminação de Tocqueville nesse sentido radica em seu ceticismo com relação a uma concepção libera­l-democrática levada ao extremo – o que seria já tirania – quer no plano político como no social6. Por outro lado, a liberdade deve caminhar de mãos dadas com a igualdade, dando as mesmas oportunidades para que todos possam participar do debate de forma respeitosa e sem preconceitos. Assim sendo, o verdadeiro free speech não poderia abarcar o que bem expressa George Orwell, em sua reconhecida obra analógica “A revolução dos bichos”: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais aos outros7”. Esta foi uma das principais questões de Tocqueville: “Por que a igualdade de condições tornou-se um elemento importante para a humanidade?”8

De fato, em nosso país temos testemunhado a dificuldade acadêmica em poder manifestar as opiniões de forma civilizada, obstruindo-se a somatória de luzes que poderia supor um diálogo mais aberto capaz de promover soluções práticas e comprometidas para a consecução de uma ordem social mais justa. O trajeto rumo a este ideal só poderia ser percorrido através do cultivo da liberdade acadêmica nos dois polos da relação, ou seja, liberdade para que os alunos possam se expressar e para que os professores possam ajudar a refletir, sem, porém aproveitar-se de seu status para “doutrinar” impondo suas próprias concepções a uma plateia que ainda não desenvolveu seu senso crítico.

A liberdade acadêmica – uma das formas de liberdade de expressão – apresenta suas peculiaridades devido à influência que um professor pode ter sobre os alunos. Por isso, deve realmente ser implementada através do conceito de liberdade constitutiva, ou seja, a capacidade do ser humano autodeterminar-se ao bem. Nesse sentido, deve partir do respeito por ideias, opiniões e pessoas, sem que se imponha o próprio ­ponto de vista, apresentando o conhecimento de forma abrangente para promover a reflexão rumo à absorção da verdade, como bem básico, já que nenhum aluno quer ser enganado. As preferências9, portanto, não devem ser objeto do ensino, tornando-o parcial.

Walter Piekny, Graduando em Direito na USP

Por outro lado, ao aluno também deve ser oferecida a oportunidade de perguntar, sem sofrer “bullying”, quer seja pelo professor, quando discorda ou apresenta um ponto de vista diverso, ou pela classe, com anuência do mestre, por preconceito. Hoje fala-se até mesmo de “compelled speech”, ou seja, defender-se das próprias ideias para poder ser respeitado. Aplicando analogamente o pensamento de Tocqueville no plano político ao educacional, pode-se afirmar que, em sua principal questão de tentar compaginar liberdade com igualdade, mostra-se avesso ao poder absoluto ou à arbitrariedade, defendendo a tese de que a liberdade deve assentar-se na igualdade de condições, salvaguardada por instituições10.

Infelizmente não é a prática habitual em nosso país. Por um lado, em entidades onde o estudante é cliente, pela transformação da atividade educativa em comércio, não há liberdade, já que os conteúdos são somente transmitidos de forma pragmática, sem um real interesse pelos alunos, levando a um certo pacto de mediocridade que não os projeta para o alto, condenando-os a uma visão estreita e reducionista11. Como afirma o jusfilósofo Lon Fuller sobre a relação com os estudantes: “o melhor meio de parecer interessado neles é interessar-se por eles”12, porém essa preocupação com o estudante em si e com sua formação integral não é o motor de uma ação meramente econômica. Por outro lado, vemos a instrumentalização do ensino em nome da ideologia. Nesse sentido, muitos se servem da cátedra para “adestrar”, incutindo nos alunos despreparados sua própria opinião, com fontes restritas e limitadas e sem deixar outra alternativa no discurso. Efetivamente, hoje, ao divergir, muitos sofrem até mesmo represálias manifestadas através de notas baixas, o que é uma triste realidade enfrentada no ambiente acadêmico, embora, frequentemente camuflada.

Vemos ainda, nessa mesma linha, a formação superficial através de slogans bélicos e greves, que acabam sendo sempre injustas, por no mínimo, levar a disperdiçar o tempo e o dinheiro dos estudantes e da sociedade, de forma irresgatável.

A verdadeira liberdade é sustentada pelo conhecimento, já que as escolhas só podem ser feitas quando se conhece bem seu objeto. Podemos ainda falar, como expõe Amartya Sem13, que a liberdade depende também da qualidade da escolha. Se não se oferece conhecimento profundo e sólido, nem espaço para pensar, discordar e construir, é impossível falar em liberdade, pois esta não se enraíza na racionalidade que permite ao ser humano deliberar e escolher com real autonomia.

Conclusão
Trabalhei como professora visitante na Harvard Law School por alguns anos, estudando uma importante discussão para a Filosofia do Direito – o Hart­-Fuller Debate – no Estado onde encontramos ainda na casa de John Adams, o rascunho dos escritos constitucionais que começa afirmando que “all men are born free and equal”. Pensava que um debate fecundo – como este que passou para a história do pensamento jurídico – só é possível onde há liberdade acadêmica, podendo gerar a partir do respeito por ideias opostas e pelas pessoas que as veiculam, um diálogo profundo que ecoará, através de reflexões ulteriores, muito além de seu espaço.

Dessa forma, alunos – e professores! – poderão aprender uns dos outros sem transformar a universidade em um campo de batalha seja por orgulho, competição, interesse econômico ou em nosso caso, ideologias, que também têm seus interesses….A verdadeira ­liberdade é humilde, no bom sentido da ­palavra, pois respeita, sem preconceito disfarçado de abertura, e está sempre pronta a escutar, como nas antigas “quaestiones disputatae” que exigiam repetir o que fora previamente dito pela posição oposta para poder ­responder ou contestar devidamente, demonstrando ter efetivamente acompanhado o raciocínio. Um ambiente acadêmico construído sobre essa atitude de deferência e apreço, permitiria dissentir – com educação e delicadeza, pois a arrogância e o desprezo são o reverso da verdadeira sabedoria – de forma compatível com o cultivo do coleguismo ou mesmo de fortes amizades, como foi o caso de Lon Fuller e Herbert Hart, comprovado através das cartas que intercambiaram.

As sementes deixadas por Tocqueville em busca do ideal democrático continuam frutificando no solo americano, através de debates e fóruns universitários14, especialmente perante um governo que, atualmente, tem surpreendido a Nação a cada ­momento. Vivemos também uma situação juridicamente caótica em nosso país, em luta por um verdadeiro Estado ­Democrático de Direito. Consolidadas as batalhas que vão sendo tenazmente empreendidas para defendê-lo de acordo com a nossa Carta Magna, resta formar uma nova geração, que possa dar continuidade ao ­arduamente conquistado, o que só poderá ocorrer através da educação ética de cada cidadão a partir de uma verdadeira potencialização de sua liberdade.


Notas
1 TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracy in America. Hazleton: The Pennsylvania State University, 2002.
2 DAMROSCH, Leo. Tocqueville’s Discovery of America. Kindle Edition, 2011.
3 MURRAY, John Courtney. American National Biography. (By Leon Hooper) New York: Oxford: Oxford University Press, 1999.
4 TOCQUEVILLE, Alexis. De la Démocratie en Amerique. Pagnere, 1848, tome 2.djvu/146.
5 MACYNTIRE, Alasdair. Expressivism vs. Neoaristotelianism Apud The Public Discourse (9-III-18).
6 TOCQUEVILLE, 2002, p. 18 et seq.
7 ORWELL, George. Animal Farm. New York: Hartcourt, 1973.
8 TOCQUEVILLE, 2002.
9 Power, Preference and Morality in Macyntire, 2018. 9 Power, Preference and Morality in Macyntire, 2018.
10 ARON, Raimond. As etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
11 “(…) move beyond narrow making money self-interest to focus on broader issues (…)” GALBREATH, Jeremy. “Strategy in a world of sustainability: A developmental framework” in Handbook of Corporate Sustainability: Framework, Strategies and Tools. Northampton: Edward Elgar Publishing, 2011, p. 37-56.
12 FULLER, Lon. On teaching Law. Cambridge: Harvard Law School Repository, 1950, p. 39.
13 LACEY, Nicola. Out of the Witches Cauldron? Reinterpreting the Context and Reassessing the Significance of the Hart-Fuller Debate. The Hart-Fuller Debate in the Twenty-First Century. Edited by Peter Cane. Oxford: Hart-Publishing, 2011, p. 7 et seq.
14 Como por exemplo o Tocqueville Forum on A,merican Ideas and Institutions promovido pela University of Houston, Texas.

Referências bibliográficas
ARON, Raimond. As etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
DAMROSCH, Leo. Tocqueville’s Discovery of America. Kindle Edition, 2011.
FULLER, Lon. On teaching Law. Cambridge: Harvard Law School Repository, 1950.
GALBREATH, Jeremy. “Strategy in a world of sustainability: A developmental framework” in Handbook of Corporate Sustainability: Framework, Strategies and Tools. Northampton: Edward Elgar Publishing, 2011.
LACEY, Nicola. Out of the Witches Cauldron? Reinterpreting the Context and Reassessing the Significance of the Hart-Fuller Debate. The Hart-Fuller Debate in the Twenty-First Century. Edited by Peter Cane. Oxford: Hart-Publishing, 2011.
MACYNTIRE, Alasdair. Expressivism vs. Neoaristotelianism Apud The Public Discourse (9-III-18). Power, Preference and Morality in Macyntire, 2018.
MURRAY, John Courtney. American National Biography. (By Leon Hooper) New York: Oxford: Oxford University Press, 1999.
ORWELL, George. Animal Farm. New York: Hartcourt, 1973.
TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracy in America. Hazleton: The Pennsylvania State University, 2002.
TOCQUEVILLE, Alexis. De la Démocratie en Amerique. Pagnere, 1848, tome 2.djvu/146.