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Linha de passe sobre a gestão do futebol

4 de maio de 2023

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Unir paixão aos negócios pode ser uma tarefa difícil de executar com equilíbrio. Ainda mais se essa tarefa envolve uma das principais manifestações culturais do País, como é o caso do futebol. No entanto, essa é a missão a que se propôs a Lei nº 14.193/2.021, a Lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), que vem gerando discussões acaloradas tal qual o esporte cuja gestão pretende profissionalizar.

Para examinar as questões que envolvem a Lei, um time de magistrados, parlamentares e juristas entrou em campo para o 1º Seminário de Direito Desportivo da Escola Judicial da 3ª Região da Justiça do Trabalho (EJUD3). O evento, realizado com o apoio da Revista Justiça & Cidadania, aconteceu em março, em Belo Horizonte (MG), a cidade-sede do Cruzeiro Esporte Clube, primeiro clube brasileiro a constituir uma SAF.

Apesar da forma amadora como é gerida a maioria dos times do futebol brasileiro – que acumularam dívidas de cerca de R$ 10 bilhões, como informou durante o evento o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Alberto Balazeiro – este esporte ainda assim é uma potência econômica, responsável por 0,7% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Porém, num cenário de crise econômica, aprofundada pelo fechamento dos estádios durante o período mais grave da epidemia de covid-19, os clubes se viram diante da necessidade de profissionalizar a gestão do seu principal ativo.

“A Lei da SAF, encorpada com acréscimos congressuais, traz benefícios capazes de atrair a maioria dos clubes para o novo modelo. Ela tem dupla finalidade: pôr fim às dívidas trabalhistas e fiscais dos clubes, e facultar a constituição de sociedade empresarial destinada a arrecadar investimentos internacionais para a profissionalização da gestão do futebol no Brasil”, explicou em sua participação o Ministro do TST Alexandre Agra Belmonte, membro do Conselho Editorial da Revista JC.

Lacunas – Com o propósito de fazer com que o “clube deixe de ser um lugar de endividamento para se tornar um lugar de empreendimento”, como sintetizou a Diretora da EJUD3, Desembargadora Rosemary Afonso, a Lei da SAF já precisa de aprimoramentos, apesar de ter apenas dois anos de vigência.

É o que também defende o Deputado Federal Pedro Paulo (PSD-RJ), relator de um projeto de lei (PL nº 5.082/2016) para o aperfeiçoamento da Lei da SAF em tramitação na Câmara dos Deputados: “É uma lei muito jovem, que tem um enorme desafio de interpretação, mas acredito que sob o aspecto da profissionalização do futebol, já começamos a ter a convicção de que a lei precisa de uma modernização”.

“A Lei está cheia de conceitos mal definidos ou mal compreendidos. Algumas lacunas teremos que preencher diante de casos concretos. Vamos precisar buscar a intenção da lei e sua melhor forma de interpretação”, afirmou o decano do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ministro João Otávio de Noronha, que é também membro do Conselho Editorial da Revista JC.

Jurisprudência – No mesmo sentido, conforme salientou o Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3), Desembargador Ricardo Antônio Mohallem, há desafios para a uniformização da jurisprudência relacionada ao tema.

“Não posso utilizar a interpretação da Lei da SAF e ao mesmo tempo entender que ela é totalmente incompatível com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com Lei da Sociedade Anônima (Lei nº 6.904/1.976) ou com a Lei de Recuperação Judicial (Lei nº 11.101/2005, alterada pela Lei nº 14.112/2020). A Lei da SAF não pode se dissociar da própria realidade do mundo”, acrescentou o Ministro do TST Evandro Valadão.

Dívidas – Os debates mais polêmicos foram os relacionados à responsabilidade pelas dívidas e os incentivos concedidos para que os clubes, até então estruturados como associações sem fins lucrativos, se transformem em sociedades empresárias. “A Justiça do Trabalho tem a preocupação e a experiência em debater calotes. (…) Mas o princípio da Lei não é a fraude, é de que haja pagamento. Ela faz o alongamento do pagamento e ao mesmo tempo promove a injeção do crédito”, esclareceu o Ministro Balazeiro.

A Lei da SAF postula duas formas de pagamento das dívidas: a recuperação judicial ou o regime centralizado de execuções (RCE). Na prática, os clubes preferem a recuperação judicial. “É preciso gerar mais incentivos para que os clubes virem sociedades empresárias ou estipular esta obrigatoriedade, que não existe no modelo brasileiro”, comentou o Deputado Pedro Paulo.

Para o parlamentar, a possibilidade de postular a recuperação judicial é um estímulo poderoso para a transformação dos clubes. “Já o RCE foi um erro, porque misturamos dívidas trabalhistas com cíveis. E ele tem lacunas que também deixaram espaços para espertezas”, complementou Pedro Paulo.

Modelos – O advogado e doutor em Direito Empresarial Pedro Teixeira explicou que a lei oferece três modelos de formação da SAF. No primeiro, a associação civil originária deixa de existir para se tornar uma SAF. A segunda forma realiza a cisão do departamento de futebol da área relacionada à atividade social do clube e esportes amadores. Na terceira hipótese, há a constituição por pessoa natural, jurídica ou fundo de investimento de uma nova sociedade.

“O legislador deu a possibilidade dessas SAFs serem criadas sem serem responsabilizadas diretamente pelo passivo dos clubes, mas assumindo a obrigação de contribuírem para o pagamento dessas dívidas do passado. Era preciso garantir segurança jurídica para o investidor de que essa SAF não seria diretamente responsável pelo passivo sem ter nada dessas entidades”, apontou Teixeira.

Dos clubes que já constituíram SAF, o pioneirismo do Cruzeiro chamou atenção, tendo sido comprado pelo ex-jogador de futebol Ronaldo Fenômeno. O Clube Atlético Mineiro e o América Futebol Clube, também sediados em Minas Gerais, são outros exemplos de agremiações que estão no caminho para “abandonar o amadorismo em direção ao profissionalismo”, como pontuou o vice-presidente do Atlético Mineiro, José Murilo Procópio. “Esse modelo de clube associação está ficando obsoleto e a SAF vem com capacidade de investimento, mais regras e definições. O futebol brasileiro depende desse passo para ser competitivo em nível mundial”, acrescentou o presidente do América-MG, Marcus Salum.

Participaram também do evento o Desembargador do Tribunal Regional Federal da 6ª Região Flávio Boson, representando a Presidente do TRF6, Desembargadora Mônica Sifuentes; o Vice-Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Desembargador Alberto Vilas Boas Vieira de Sousa, representando o Presidente do TJMG, Desembargador José Arthur de Carvalho Pereira Filho; o Desembargador aposentado do TRT3 Paulo Sifuentes, fundador da Academia Nacional de Direito Desportivo; o Desembargador do TJMG Moacyr Lobato; o Desembargador do TRT3 José Murilo de Moraes; o Procurador-Geral da Justiça de Minas Gerais, Jarbas Soares Júnior; o assessor parlamentar João Rafael Soares, representando o Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco; e o Doutor em Direito Comercial Rodrigo Monteiro de Castro.

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“É muito dinheiro envolvido, então precisa-se de mais governança e profissionalismo”

Três perguntas para o Presidente do Cruzeiro Esporte Clube

Revista Justiça & Cidadania – O futebol é uma paixão nacional. Passar a geri-lo como atividade empresarial de forma profissional ligada a interesses de investidores pode ameaçar essa condição e desagradar torcedores?
Sérgio Rodrigues – O futebol é uma paixão, mas também é um negócio, uma indústria. A lógica dos clubes associativos que mantinham o futebol já se inverteu há algum tempo. Não existe mais essa questão da gestão não profissional. É muito dinheiro envolvido, então precisa-se de mais governança e profissionalismo. Não acho que essa condição de paixão esteja ameaçada, pelo contrário. O que não pode são times com R$ 1 bilhão em dívidas continuarem gastando para agradar o torcedor. Essas dívidas deixam várias pessoas sem receber, não recolhemos tributos, enfim, são dívidas imensas feitas para ganhar títulos. É preciso buscar uma gestão sustentável. Para isso, ter a atividade vista de forma empresarial é fundamental.

JC – O clube sendo bem administrado colabora para uma melhora na qualidade do futebol apresentado em campo?

SR – Não tenho dúvida nenhuma de que sim. O maior exemplo disso é o Flamengo, que passou cinco anos se reestruturando, depois de estar afundado em dívidas, e a partir daí tem colecionando títulos e bons desempenhos em campo. Porque isso traz credibilidade, permite contratações, mantém salários e impostos em dia. O clube não corre o risco de bloqueio. Vai se refletir também na montagem de um elenco que pode ter mais durabilidade, em investimento extracampo, em qualidade de nutrição, em análise de desempenho, de gramado, logística para viagens, etc.

JC – Como foi a experiência pioneira do Cruzeiro com a SAF? O que pode ser compartilhado com outros clubes brasileiros?
SR – O nosso pioneirismo foi inspirador para outros. Grandes mudanças são feitas no amor ou na dor. A nossa foi na dor, mas mostramos um caminho que foi de profissionalizar até a forma de venda do clube. Hoje temos um Departamento de Esporte e Entretenimento. Esse passo permitiu que o medo que todos teriam – em princípio, já que todo mundo tem medo do desconhecido – fosse rompido. É claro que há discussões sobre segurança jurídica, sucessões trabalhistas, mas o Cruzeiro está sendo pioneiro nisso também, em dar essa tranquilidade. Então, esperamos que a lei seja cumprida a rigor pelo Poder Judiciário. Nosso exemplo mostra que é possível fazer a venda de qualquer clube do Brasil que queira, ainda que o clube tenha muitas dívidas. O Cruzeiro tinha uma dívida bilionária, mas tem também uma grande torcida e se preparou para isso.