Em todo o Brasil, juízes identificam e extinguem processos com demandas fraudulentas. Conheça o caso da pequena Comarca de Saloá, em Pernambuco
A litigância predatória está no radar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pelo menos desde o ano passado, quando foi aprovada a Diretriz Estratégica 7, no XVI Encontro Nacional do Poder Judiciário. “É um fenômeno prejudicial não só ao Poder Judiciário, mas a toda a sociedade, pois compromete a capacidade do sistema de Justiça para o atendimento célere e eficiente das demandas legítimas, acarretando gastos de recursos e de tempo com demandas abusivas e, não raro, fraudulentas”, afirmou à Revista JC a Juíza Auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Priscilla Corrêa.
Em geral, segundo a magistrada, estão envolvidos em ocorrências de litigância predatória pequenos grupos de advogados que obtêm procurações desatualizadas, ou até mesmo falsas, com amplos poderes para a resolução de conflitos forjados ou fictícios, em nome de pessoas que muitas vezes nem sabem da existência do processo judicial. Com o objetivo de obter vantagens econômicas, esses maus profissionais tiram proveito em suas causas de pessoas em situação de vulnerabilidade social, como analfabetos e idosos.
A atividade se vale de estratégias que dificultam a defesa dos acusados, tendo como litígios mais usuais as questões previdenciárias, trabalhistas e aquelas envolvendo contratos de consumo e empréstimos consignados.
Desafios ao enfrentamento – Os tribunais de ética e disciplina (TEDs) das seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) são encarregados de investigar e processar as faltas disciplinares de advogados e escritórios e aplicar as punições, segundo o representante da advocacia no CNJ, Marcello Terto. “Havendo tipificação penal, o Ministério Público, enquanto órgão de acusação, deve ser provocado ou atuar de ofício”, acrescentou o Conselheiro.
O dinamismo da prática dificulta o seu enfrentamento, segundo a Juíza Priscilla Corrêa. “Muitas vezes, quando o tema é decidido, ou chega ao tribunal pela via recursal, os agentes predatórios já deixaram de atuar naquela determinada comarca ou seção judiciária e passaram a atuar noutra, na qual suas práticas abusivas ou fraudulentas ainda são desconhecidas”, descreveu a magistrada, que acrescentou: “Parcela ínfima dos operadores do Direito atuam de forma abusiva e promovem litigância predatória. As sanções têm o importante efeito de desestimular tais práticas”.
O Conselheiro Marcello Terto ressalta que outro obstáculo é a falta de visão sistêmica. “Cada instituição tem uma impressão própria, mas limitada da litigância predatória. As grandes instituições financeiras, por exemplo, dizem-se vítimas e apoiam medidas de restrição de acesso à Justiça, mas não esclarecem o mau atendimento, as cobranças abusivas e o motivo de tantas pessoas vulneráveis estarem superendividadas”, ilustrou.
Apoio tecnológico – Aparecendo como uma das aliadas no combate ao problema, está a gestão baseada em dados. “O processo eletrônico e os sistemas processuais permitem ao CNJ e aos tribunais consolidar dados, identificar perfis de litigantes, conhecer os mais presentes e seus comportamentos em juízo. O cruzamento e o compartilhamento dos dados em âmbitos local, regional e nacional podem constituir um divisor de águas no enfrentamento da litigância predatória”, avaliou a Juíza Priscilla Corrêa.
Um exemplo de ferramenta que reúne dados do Poder Judiciário em nível nacional é o Painel de Grandes Litigantes, lançado em agosto do ano passado pelo CNJ. Segundo a magistrada, o uso de painéis de monitoramento é uma das estratégias da Corregedoria Nacional no desenvolvimento de medidas preventivas e repressivas. Através deles, dados processuais são transformados em informação relevante e de fácil acesso para juízes e tribunais.
Os Núcleos de Monitoramento dos Perfis de Demandas (Numopedes) também atuam para coibir a utilização predatória da Justiça. Eles conseguem identificar pedidos que impactam substancialmente no serviço judicial como picos repentinos de entrada de ações em curto espaço de tempo, além de traçar as características dos litígios, suas localidades e as empresas envolvidas. Outra iniciativa da entidade foi a criação, a partir da Resolução CNJ nº 349/2020, do Centro de Inteligência do Poder Judiciário (CIPJ) e da rede de Centros de Inteligência do Poder Judiciário. Tal medida atua para identificar e tratar de modo adequado demandas estratégicas ou repetitivas e de massa.
Por todo o Brasil – Com ou sem a ajuda dessas ferramentas, as demandas abusivas estão sendo identificadas e coibidas em todas as regiões do País e em vários ramos da Justiça. Os exemplos são muitos. Em Mauá, no ABC Paulista, a Juíza Tatiane Pastorelli Dutra, da 3ª Vara do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2), verificou 563 ações ajuizadas pela mesma advogada no período de seis meses. No Amazonas, o Juiz Anderson Luiz Franco de Oliveira, titular da 3ª Vara de Parintins, extinguiu processo contra uma instituição bancária em que a autora sequer tinha conhecimento da ação e cujo patrono havia ajuizado mais de 90 processos em três meses. A captação ilícita de clientela em reservas indígenas era a marca de 972 ações protocoladas por um único advogado em Coronel Bicaco, no Rio Grande do Sul. E em Mato Grosso, o Juiz Alexandre Meinberg Ceroy, da 3ª Vara Cível de Barra do Garças, passou a exigir procurações atualizadas de advogados ao suspeitar que as partes não haviam autorizado os profissionais a pleitear ações de indenização.
Conheça agora o caso da Comarca de Saloá, município de 15 mil habitantes no Agreste de Pernambuco, onde ações repetitivas, com petições padronizadas, em grande volume, tratando de objetos iguais ou semelhantes e sempre com os mesmos advogados alertaram o Juiz de Direito Rômulo Macedo Bastos, titular da Vara Única de Saloá. Após constatar fortes indícios de litigância predatória, ele decidiu extinguir de uma só vez 1.476 processos.
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“A QUASE TOTALIDADE DAS PARTES SEQUER CONHECIA OS ADVOGADOS”
Entrevista com Juiz de Direito Rômulo Bastos, titular da Vara Única de Saloá (PE)
Revista Justiça & Cidadania – Quais foram os indícios de litigância de má fé observados nos processos extintos?
Juiz Rômulo Macedo Bastos – Os principais indícios ocorreram com o reiterado ajuizamento de ações padronizadas, contendo os mesmos patronos e, inúmeras das vezes, as mesmas partes. Além disso, devido à percepção de grande volume desses processos, inicialmente designou-se audiências preliminares, a fim de as partes ratificarem as procurações outorgadas e, quando da realização dessas, a quase totalidade das partes afirmou em juízo que sequer conhecia os advogados e não tinha aposto qualquer assinatura ou impressão digital nos documentos e procurações.
RJC – Como o senhor percebeu as repetições, inconsistências e indícios de má fé? Foi usado algum tipo de inteligência artificial na triagem dos processos?
RMB – Dessas ações verificou-se que eram ajuizadas todos os dias e em grande volume (a distribuição mensal de processos triplicou), cujos objetos eram idênticos ou semelhantes e, até mesmo, quando ajuizadas por outros advogados diversos, que não pertenciam ao mesmo escritório, mas que também ajuizavam tais ações em massa. Verificou-se também que o padrão das petições se repetia. Ademais, havia um “fracionamento do dano moral”, pois nas demandas aludidas se questionavam diversos serviços, em que em cada uma era pleiteada reparação por um único serviço, o que ocasionava a litigância de uma mesma parte em diversos processos.
Diante dessa situação, apesar de não ter sido utilizado nenhum tipo de inteligência artificial, a equipe da Vara Única da Comarca de Saloá, por intermédio dos diligentes servidores e do presente magistrado, automaticamente já percebeu o aumento significativo de ações repetitivas, daí se começou a se pensar em alguma solução, visto que tal conduta impactava significativamente a distribuição da referida unidade judicial.
RJC – Quais eram os tipos de processos?
RMB – Tais demandas possuem como objetos, especialmente, discussões acerca de serviços bancários, em que as partes, muitas das vezes, afirmavam que “não contrataram tais serviços, ou se contrataram, estes são nulos, por ter sido transigido sem procuração pública”. Diante disso, a parte terminava por passar o ônus da prova à parte ré, estas que eram instituições bancárias, dificultando a defesa dessas, devido à enorme quantidade de processos. Nesse ínterim, diante do descomunal volume de ações, percebeu-se que, em muitas delas, não havia sequer contestação, pois a parte ré encontrava-se na situação de ter que se defender em massa, prejudicando o direito de defesa.
RJC – O senhor tem notícias da existência de relatos semelhantes em outras comarcas?
RMB – É de se considerar também que é do nosso conhecimento e da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Pernambuco que o mesmo grupo de advogados ajuizou inúmeras demandas idênticas ou semelhantes em outras comarcas da região, como Garanhuns, Bom Conselho e Iati, entre outras. Há notícias, até mesmo, na região do sertão pernambucano.
RJC – O senhor seguiu alguma diretriz sobre litigância predatória e captação de clientela para embasar sua decisão, como recomendações do CNJ ou do Código de Ética da OAB?
RMB – A fim de cumprir a lei e as orientações dos órgãos de controle do Judiciário, especialmente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do CNJ, ao extinguir tais processos foi indicado expressamente o fenômeno caracterizado como sham litigation.
Explicitou-se que “O ajuizamento de sucessivas ações judiciais, desprovidas de fundamentação idônea e intentadas com propósito doloso, pode configurar ato ilícito de abuso do direito de ação ou de defesa, o denominado assédio processual” . “Destarte, a partir do momento em que se ajuízam ações temerárias repletas de vícios processuais, pode o Poder Judiciário limitar o direito de ação que, conforme explicitado, não é absoluto.”
Além disso, o CNJ lançou, em 8/2/2022, recomendação sobre litígios predatórios e demandas repetitivas, com causas de pedir semelhantes (Recomendação nº 0000092-36.2022.2.00.0000), orientando os tribunais do País a adotarem medidas de cautela com o fim de coibir ações predatórias e o ajuizamento em massa de ações, as quais prejudicam e cerceiam o direito de defesa das partes.
Além disso, no próprio Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) e em sua Corregedoria Geral de Justiça sedimentou-se o entendimento de que tais fatos graves configuram a modalidade de demanda predatória, em que o Centro de Inteligência da Justiça Estadual de Pernambuco (Cijuspe), cuja intelecção foi registrada na Nota Técnica nº 02/2021, elucida a própria configuração do que seja demanda predatória, aludindo: “Cuida-se de espécie de demanda oriunda da prática de ajuizamento de ações produzidas em massa, utilizando-se de petições padronizadas contendo teses genéricas, desprovidas, portanto, das especificidades do caso concreto, havendo alteração apenas quanto às informações pessoais da parte, de forma a inviabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa.
A prática é favorecida pela captação de clientes dotados de algum grau de vulnerabilidade, os quais podem ou não deter conhecimento acerca do ingresso da ação, e pelo uso de fraude, falsificação ou manipulação de documentos e omissão de informações relevantes, com nítido intento de obstaculizar o exercício do direito de defesa e potencializar os pleitos indenizatórios. As demandas predatórias são marcadas pela carga de litigiosidade em massa, por ações ajuizadas de maneira repetitiva e detentoras de uma mesma tese jurídica (artificial ou inventada), colimando ainda, no recebimento pelos respectivos patronos de importâncias indevidas ou que não serão repassadas aos titulares do direito invocado.” Ou seja, estes processos ajuizados na Comarca de Saloá caracterizam-se como demandadas predatórias. Devo aqui ressaltar o esforço institucional do TJPE em coibir a prática do ajuizamento de demandas predatórias através da orientação efetivada por meio da referida nota técnica.
RJC – Os autores dos processos extintos serão responsabilizados? Caso sim, qual tipo de responsabilização podem receber?
RMB – Os órgãos de persecução administrativa e penal já estão cientificados do fato posto e, em dias recentes, foi até recepcionado por este juízo, pedido de informações sobre a situação. Entretanto eventual sancionamento encontra-se na alçada de tais órgãos, como a OAB e o Ministério Público.
RJC – O senhor consegue quantificar o impacto da litigância de má fé sobre a efetividade da tutela jurisdicional? Sabe dizer em quanto aumentou o tempo médio da tramitação dos processos em Saloá?
RMB – As consequências dessa litigância em massa são diretamente sentidas na presteza e efetividade jurisdicional, deixando a unidade judiciária abarrotada de litígios fabricados, afetando, inclusive, a análise de demandas urgentes e com prioridade legal. Nesse período, até mesmo os demais advogados, que propuseram outros tipos de demandas, terminavam por ficar prejudicados, pois os seus processos tramitavam com lentidão, sem a celeridade necessária. Tal situação ocorria porque as metas estabelecidas, prioritariamente, requerem a solução do maior número de processos e essas demandas predatórias acabavam por deixar os processos mais complexos e com tramitação morosa.
Por ser uma vara única, a Comarca de Saloá possui muitos processos urgentes, que rotineiramente são ajuizados, como acolhimentos institucionais, medidas protetivas da Lei Maria da Penha, ações de alimentos, guarda, busca e apreensão, réus presos, etc. Sendo assim, apesar da prioridade total dada pela vara a essas demandas, os processos em massa acabavam por dificultar a tutela jurisdicional. Nesse contexto, a prática do ajuizamento de tais demandas predatórias impactou o tempo médio de tramitação processual.
Portanto, a decisão de extinguir tais demandas foi tomada em favor de toda a sociedade, pois, com isso, resguarda-se o direito à saúde, alimentação, moradia, liberdade, entre outros direitos fundamentais, quando postos em juízo.