LRF, lei eleitoral e a redução dos mandatos dos chefes de poder

31 de dezembro de 2009

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O mandato dos Chefes do Poder Executivo é de quatro anos e o dos demais poderes é de dois anos. No entanto, a análise de normas oriundas do direito financeiro e do direito eleitoral demonstra que, em boa parte deste tempo, o dirigente tem sua liberdade de atuação significativamente tolhida, como procuraremos demonstrar neste breve trabalho.

A realização de qualquer despesa pública pressupõe, dentre outras dezenas de coisas, a prévia existência de dotação orçamentária. Ou seja, para se gastar é preciso que este gasto tenha sido previsto no orçamento. Ocorre que, quando se trata de um novo Chefe do Executivo, esta lei orçamentária decorrerá de um projeto de lei encaminhado pelo governo anterior. Ou seja, o novo prefeito pode passar todo o primeiro ano de seu mandato podendo gastar apenas aquilo que foi planejado por seu adversário, cujo projeto político a população acaba de reprovar nas urnas.

Assim, é plenamente possível que um prefeito — eleito com o programa de construir postos de saúde — não possa fazer nada disso em seu primeiro ano de mandato se o seu antecessor tiver colocado no orçamento previsão de obras apenas de asfaltamento. Tem-se, portanto, uma primeira grande frustração, que a meu ver violenta o princípio democrático, segundo o qual o programa aprovado nas urnas pelo povo é aquele que deve ser executado.

Ademais, as despesas classificadas como “investimentos” (o que inclui a execução de qualquer obra), cuja execução ultrapasse um exercício financeiro, só podem ser realizadas se estiverem incluídas no plano plurianual (conhecido como “PPA”), que é um instrumento de planejamento que, a partir da CF de 1988 (art. 167, §1o), tornou-se não somente obrigatório como, ademais, tem que ser aprovado por meio de lei formal. O conteúdo mínimo do PPA, para a esfera federal, está previsto na CF, que determina que ele “estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada[1].

Qual é, então, o problema para o novo mandatário? O problema é que, como previsto em seu nome, o PPA se refere a mais de um ano, na verdade, a três[2] anos. Ou seja, é bem possível que no primeiro e até no segundo ano de seu governo nosso novo mandatário esteja no curso do período de um PPA aprovado por seu antecessor, que pode, evidentemente, não ter incluído no plano investimentos que só passaram a ser prioritários com a última eleição.

É verdade que o PPA não é imutável. Ou seja, ele pode ser modificado no seu curso por outra lei. Mesmo assim, trata-se de mais uma restrição que alcança o mandatário e cuja utilidade deve ser avaliada, não só pelo direito, mas pelos especialistas em gestão pública, planejamento e teoria política, a fim de que se verifique se o que se ganha com o planejamento — a nosso ver muito pouco, pelo grau de abertura do PPA — compensa o que se perde com o travamento de políticas públicas.

Além das limitações orçamentárias, existem diversas outras que surgem de duas leis: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a lei eleitoral[3]. Ambas estão carregadas de boas intenções — garantir a responsabilidade das finanças públicas e a higidez das eleições — mas, no entanto, criam limitações extremamente rigorosas na atuação dos mandatários, o que inviabiliza inclusive diversos programas sociais. O pior é que, em anos eleitorais, existe uma sobreposição de proibições derivadas das duas leis, o que faz com que as restrições sejam ainda maiores.

Em relação às proibições decorrentes da lei eleitoral, um ponto fundamental é saber se a proibição atinge apenas o ente em cuja esfera estiverem sendo realizadas eleições ou se, ao contrário, todos os entes são sempre atingidos[4]. Na 1a hipótese a restrição atingiria apenas 1 em cada 4 anos. Na 2a, a restrição atingiria 2 anos em cada 4 (ou seja, ano sim ano não). Não temos dúvida de que a interpretação mais correta, sob todos os pontos de vista, é a primeira, já que restrições — ainda mais da magnitude que veremos a seguir — se interpretam restritivamente. No entanto, a segunda interpretação tem sido defendida por importantes autoridades. Com efeito, na virada de 2007 para 2008 (ano em que ocorreram eleições municipais), o Governo Federal anunciou que efetuaria alterações no programa Bolsa Família. Face à restrição — que analisaremos a seguir — de execução de novos programas sociais em ano eleitoral, o então Presidente do TSE, Ministro Marco Aurélio Mello, deu entrevistas (objeto de diversas manchetes na virada do ano) sustentando a posição de que tais alterações seriam ilegais (ou seja, sustentando que, embora se tratassem de eleições municipais e que o programa alterado era federal, ainda assim a referida restrição seria aplicável). É verdade que seu sucessor temperou um pouco a questão[5]; mas, ainda assim, a insegurança jurídica permanece, o que é péssimo para o gestor sério.

Pois bem, como já adiantado, no último ano do mandato ou — dependendo da interpretação que se dê ao dispositivo em questão — em qualquer “ano em que se realizar eleição” (ou seja, no 2o e no 4o ano do mandato), segundo o art. 73, §10o, da Lei no 9.504/97, é proibido distribuir gratuitamente bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de: calamidade pública, estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.

Ou seja, num país tão carente de políticas públicas na área social, um ente não pode iniciar um programa no último ano do mandato do respectivo dirigente. O pior é que, perdoe-se a insistência, dependendo da interpretação, isso tampouco pode ser iniciado no 2o ano[6]. Ora, o problema é que, devido ao fato, já comentado, de que o Chefe do Executivo governa o primeiro ano com o orçamento decorrente de proposta enviada por seu antecessor, é bem provável que não haja previsão orçamentária que permita o início do programa no 1o ano de governo, o que, em decorrência do referido dispositivo, igualmente inviabiliza sua execução no 2o ano. Conclui-se, então, que novos programas sociais só são facilmente iniciados no 3o ano de governo. Se estivéssemos na Escandinávia é bem possível que a população pudesse esperar. No Brasil, isto quase nunca é possível.

Note-se que a interpretação gramatical do dispositivo pode levar a resultados desastrosos. Por exemplo, a entrega de uniforme escolar para alunos da rede pública não deixa de ser uma “distribuição gratuita de bens” que, portanto, estaria proibida. Ora, podemos demonstrar os equívocos de tal interpretação, mas o fato é que ela é “compatível” com a expressão gramatical da norma, o que, aliado à velha compreensão (“em vigor” em alguns manuais) de que a administração só pode fazer o que estiver expressamente autorizado em lei, expõe um prefeito que assim o fizer aos riscos de uma ação de improbidade.

Seguindo a linha temporal, somos levados aos limites estabelecidos pela LRF. Estes, na verdade, aplicam-se não apenas aos Chefes do Executivo; mas, igualmente, aos chefes de outros poderes. Pois bem, a primeira limitação (seguindo a linha temporal) estabelecida pela LRF se encontra em seu art. 42, que veda “ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a  serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito”. Compondo a regra proibitiva, o parágrafo único do dispositivo estabelece que “na determinação da disponibilidade de caixa serão considerados os encargos e as despesas compromissados a pagar até o final do exercício.”

Em linguagem leiga a interpretação do dispositivo pode parecer simples. As autoridades referidas não podem contrair, nos últimos 8 meses de seu mandato, dívida que não possa ser paga dentro do próprio mandato, salvo se deixarem “em caixa” dinheiro suficiente para que a dívida seja paga pelo sucessor. Mas a regra está longe de ser simples. Algumas expressões merecem atenção especial, “cumprir”, “obrigação de despesa”; “disponibilidade de caixa” e “encargos e despesas compromissadas”. Com efeito, o dispositivo estabelece que a obrigação de despesa contraída nos últimos 8 meses do mandato tem que ser “cumprida integralmente”. Ora, o que é cumprir integralmente uma despesa pública? A pergunta se impõe porque a execução da despesa pública é um procedimento (e, como tal, dividido em distintas fases) complexo, regulado por lei própria — Lei no 4.320/64 — que não se utiliza da expressão “cumprir” despesa, e sim das expressões — que correspondem a distintas fases —“empenhar”, “realizar”, “liquidar”, “efetuar” ou “ordenar” o “pagamento” de despesas. Assim, a insegurança jurídica na definição da matéria é extremamente prejudicial aos gestores públicos.

Como se tudo isto não bastasse é de se destacar que a aplicação do dispositivo aos Chefes dos demais Poderes e instituições é ainda mais absurda uma vez que o mandato de tais dirigentes é, em regra, de dois anos, com o que eles sofrerão a incidência da proibição durante 1/3 de seu mandato.

Seguindo com as proibições, temos aquela (prevista no art. 21, parágrafo único, da LRF) segundo a qual “é nulo de pleno direito o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal expedido nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato do titular do respectivo Poder ou órgão”. Ainda na esfera de pessoal — mas agora se voltando para a Lei eleitoral (art. 73, V, da Lei no 9.504/97) —, temos a proibição, aplicável no mesmo período[7], de que o agente efetue quaisquer atos que importem em admissão, que demita sem justa causa e que, dentre outras medidas “ex officio”, remova, transfira ou exonere servidores públicos[8]. Ou seja, a rigor, a simples transferência de um médico de um posto de saúde localizado em um bairro, para outro posto em bairro distinto, estaria proibida neste período.

Já nos três meses que antecedem o pleito, é proibido (pelo art. 73, VI e seu § 3o da Lei n.º 9.504/97) “realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e dos Estados aos Municípios, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública.” Note-se que, em nossa federação hipercentralizada do ponto de vista fiscal, as transferências voluntárias compõem parte significativa do orçamento de quase todos os municípios e boa parte dos estados. Com a regra em questão, qualquer obra com estes recursos que não tenha se iniciado neste prazo só poderá ser iniciada no ano seguinte, alongando-se o tempo de atendimento às demandas da população.

Em suma, o Chefe do Executivo (e, em menor medida, os chefes dos demais poderes) tem um tempo bem inferior ao de seus mandatos nominais, no qual estarão efetivamente livres para executar seu programa. O pior é que estes entraves se aplicam justamente num momento em que, em outra seara — constitucional —, cresce cada vez mais o movimento de máxima valorização e de possibilidade de execução forçada dos direitos sociais com o crescimento exponencial da demanda de diversas providências por parte do poder público, que, para piorar, no pouco tempo que lhe resta livre tem que executar suas ações sob o comando de leis extremamente burocratizantes como a Lei no 8.666/93.

Em suma, se não há dúvida de que os objetivos buscados pela LRF e pela lei eleitoral são importantes, por outro lado há de se refletir se eles justificam a intensidade dos entraves colocados para a gestão pública. A nosso ver o legislador “errou na mão” e alguns ajustes se tornam necessários, sob pena de frustrarmos cada vez mais a expectativa da população por uma boa prestação de serviços públicos.


[1] Reforçando a determinação constitucional, o art. 5o , § 5o da Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece que “a lei orçamentária não consignará dotação para investimento com duração superior a um exercício financeiro que não esteja previsto no plano plurianual ou em lei que autorize a sua inclusão, conforme disposto no § 1o do art. 167 da Constituição.”

[2] Segundo o art. 165, § 9o da CF, este prazo deveria ser estipulado em lei complementar. Assim, o dispositivo legal que “fixa” este prazo é o art. 23 da Lei n. 4.320/64, segundo o qual “As receitas e despesas de capital serão objeto de um Quadro de Recursos e de Aplicação de Capital, aprovado por decreto do Poder Executivo, abrangendo, no mínimo, um triênio.” O problema é que este dispositivo tratava de um mero “quadro”, ou demonstrativo, que deveria acompanhar a proposta de lei orçamentária.

[3] Lei n. 9.504/97.

[4] Na 1a hipótese a restrição valeria para os municípios apenas em ano de eleição municipal e para estados e a União em eleição estadual e federal. Na 2a hipótese, em qualquer ano eleitoral, todo e qualquer ente sofreria a restrição.

[5] Para que se tenha uma ideia da polêmica, ao noticiar, em maio de 2008, a posse do novo presidente do TSE, Ministro Carlos Ayres Britto, o sítio do jornal O Globo afirmava: “O grande debate nas eleições deste ano deverá ser a ampliação de programas sociais do governo Lula (…). O presidente fez várias viagens a municípios para falar da ampliação destes programas e os partidos de oposição contestaram formalmente (…) no TSE. O antecessor de Britto na presidência do TSE, ministro Marco Aurélio Mello, criticou a prática de ampliar os programas sociais e insinuou que ela seria ilegal pelo fato de este ano ser de eleições nos municípios. Mais cauteloso, Britto apontou apenas que essa será uma grande questão a ser definida pelo TSE neste ano. Esse tema é um fio de navalha, porque a linha que separa o legal do ilegal é muito tênue, comentou o novo presidente do TSE. Ele considerou primeiro o fato de haver eleições em todos os anos pares, ora municipais, ora presidenciais. Assim, os governantes reclamam, segundo Britto, que o veto à ampliação destes programas poderia levá-los a governar ano sim, ano não. O problema, para ele, está em manter o equilíbrio de forças entre os candidatos, verificando se há mesmo benefícios indevidos aos municípios aliados ao governo. Como fica a paridade de armas entre os candidatos nesta temporada de caça aos votos? Perguntou”

(http://oglobo.globo.com/pais/mat/2008/05/08/para_presidente_do_tse_partidos_devem_ser_fieis_programas-427278944.asp, consulta feita em 30.03.2009).

[6] No qual haverá eleições em outros entes.

[7] O dispositivo localiza temporalmente a proibição nos 3 meses que antecedem o pleito e até a posse dos eleitos. As eleições, no Brasil, se realizam sempre no 1º domingo de outubro (art. 28, 29, II e  77 da CF). Assim, dependendo da data em que caia o 1º domingo de outubro, a proibição atingirá os últimos seis meses de mandato ou os últimos 5 meses e 3 semanas do mandato

[8] A Lei ressalva: a nomeação ou exoneração de cargos em comissão e designação ou dispensa de funções de confiança; a nomeação para cargos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais ou Conselhos de Contas e dos órgãos da Presidência da República; a nomeação dos aprovados em concursos públicos homologados até o final do sexto mês do último ano de mandato; a nomeação ou contratação necessária à instalação ou ao funcionamento inadiável de serviços públicos essenciais, com prévia e expressa autorização do Chefe do Poder Executivo; e a transferência ou remoção ex officio de militares, policiais civis e de agentes penitenciários.