Luz na escuridão_Entrevista com Célio Borja, ex-ministro do STF

30 de setembro de 2006

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Além de o Estado estar ameaçado de perder a guerra contra o crime organizado, a democracia está perdendo a admiração da sociedade. O veredito cruel é dado pelo jurista Célio Borja. Aos 78 anos de idade, o ex-ministro da Justiça, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidente da Câmara dos Deputados, tem uma visão bastante crítica da crise moral e ética que o Brasil vem atravessando nos últimos anos. A escalada da criminalidade em todo o país é vista por ele de forma serena, questionando o que leva essas pessoas a uma vida marginal.

Sua avaliação é a de que, muitas vezes, criminosos de colarinho branco ou os doutores criminosos não têm o menor sentido de moralidade, nem pessoal nem pública. “E eles são vítimas da desigualdade social?”, questiona.

Ele considera o Movimento dos Sem Terra, por exemplo, “um caso de banditismo político, nada mais do que isso”. Borja afirma não ter dúvidas de que o Brasil chegou a toda essa crise por causa da degradação do sistema de representação política – partidos, eleições, sistemas eleitorais e uma infiltração da idéia de que a liberdade é um produto dispensável. Veja ao lado a íntegra da entrevista.

A política brasileira, hoje, está mais para mafiosos?
É uma mistura das duas coisas. Há mafiosos e ambiciosos. Há os que querem o poder pelo poder e os que querem o poder apenas para ficar ricos ou para viver melhor. Eu acho que o quadro é esse. Agora, não podemos esquecer, também, dos patriotas de sempre, os que estão na vida pública para se credenciar ao reconhecimento público pelos serviços que podem prestar. Certamente, algumas tintas estão mais carregadas no lado de Dom Corleone e Maquiavel, e menos para Aristóteles e Tomás de Aquino, da filosofia do bem comum. Enfim, existem das três espécies no cenário brasileiro.

E como separar o joio do trigo?
Eu acho que não é difícil. Qualquer pessoa dotada de senso comum – e todos temos – é capaz de distinguir o Dom Corleone de Maquiavel e de Aristóteles e Tomás de Aquino. Mesmo quando a gente, às vezes, fica em dúvida, o próprio tempo se encarrega de esclarecer quem é quem.

A impunidade não estimula a ousadia dos assaltantes de cofres públicos?
Não sei se é só a impunidade, mas claro que ela estimula também. Eu creio que seja o baixo nível de educação pessoal e cívica e, ao mesmo tempo, a destruição de todas as idéias que sustentam essa visão do bem comum como sendo o objeto próprio da política. A política não é a arte de conquistar e conservar o poder, como queria Maquiavel, nem a de se dar bem, como queria Dom Corleone. A política é a ciência do bem comum. Isso não é difícil de as pessoas entenderem, está no consenso. Não é fácil, logo no começo, sabermos quem está a serviço de uma ou outra coisa. Acredito que com um pouco de atenção e reflexão, conseguimos fazer as distinções necessárias.

São os bandidos que entram na política ou os políticos acabam virando bandidos quando obtêm o poder?
Há os dois casos. Há os que entram puros e saem viciados e há os que entram já com finalidades condenáveis, ilícitas… Muitas vezes, o eleitor é conivente com isso, porque não faz nenhuma questão de apurar a qualidade moral do candidato em que vai votar. Freqüentemente, o eleitor é enganado. Mas, o fato é que não é pouco comum a ocorrência disso – entrar na política com o melhor dos propósitos e sair com os piores.

A desigualdade social contribui para aumentar a criminalidade?
Eu, cada vez mais, me convenço do contrário. Ela não é tão importante como estímulo à criminalidade. Eu sempre me recordo das pessoas modestas que conheci, que eram padrões de dignidade pessoal. Eu atentaria contra a memória dessas pessoas se subscrevesse a tese de que são as dificuldades da vida que acabam por empurrar as pessoas para a vida do crime. Eu vejo muitas vezes criminosos de colarinho branco ou os doutores criminosos que não têm o menor sentido de moralidade, nem pessoal nem pública. E eles são vítimas da desigualdade social? São pessoas que se condoem de si mesmas à vista da riqueza dos outros e da sua pobreza? Não é o caso.

Em São Paulo, o crime organizado está praticando uma demonstração de força à sociedade brasileira ou o Estado está perdendo a guerra contra o crime organizado?
Eu acho que são as duas coisas. O crime organizado está dando uma demonstração de força, tanto que está assustando a todos nós. Agora, de outra parte, alguma coisa não está corretamente diagnosticada na ação do Estado, na ação repressiva. Eu não saberia dizer o que falta, onde o Estado peca, mas todos nós podemos constatar que ele não ganha a guerra. Não sei se está perdendo, mas ganhando não está. Continuamos todos a sofrer os efeitos da criminalidade organizada, em todos os níveis – tráfico de drogas, prostituição, roubo de cargas, assalto de todos os tipos, tanto nas ruas, como no campo e estradas. Há alguma coisa que não permite que o Estado ganhe a guerra. A ação do Estado, até certo ponto, é eficaz, põe o criminoso na cadeia, aqui ou ali consegue debelar a ação criminosa, mas não ganha a guerra. Enquanto a ação policial é mais intensa, o tráfico se recolhe; mas reaparece quando a polícia se cansa ou se retira. A guerra não é ganha. Há alguma coisa desesperançando as pessoas de verem um dia a lei se sobrepor à criminalidade.

A gente vê que o crime organizado lança os seus tentáculos em todos os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Isso não significa uma crise muito séria no país?
Não. Eu acho que é a crise de sempre, universal. Os maniqueístas sempre vêem o mal de um só lado, nunca vêem do outro lado. O maniqueísmo não é bom conselheiro. O mal está em toda parte. Existe um velho livro da literatura moralista francesa que dizia: “O mal está entre nós”. Essa que é, ao meu ver, a realidade da condição humana. Nós próprios somos bons e maus ao mesmo tempo. Somos feitos de luz e sombra. A vida nos oferece isso – grandes momentos de alegria e momentos de visível tristeza. Então, não se deve imaginar que o mal, um dia, estará todo de um lado e o bem do lado oposto. O mal e o bem estão misturados.

Enquanto isso, o presidente Lula não está agindo nem reagindo efetivamente contra o crime organizado. O senhor concorda com isso?
Concordo. Há uma certa leniência com o crime organizado e talvez não haja leniência nenhuma com um ladrão pé-de-chinelo. Com a organização, existe certo respeito, uma preocupação de não “aprontar”. Eu acho que houve, nesses últimos 80 anos, um fato que comprometeu muito a fidelidade de certos grupos políticos aos valores morais. Criou-se o conceito do crime político, em que certas ações são condenáveis, mas passam a ser toleráveis, na medida em que visam a um fim político. Por exemplo, o assassinato dos adversários ou o roubo de dinheiro público ou privado para fins políticos, para sustentar campanhas, fomentar determinadas atividades, subversivas ou não. Eu acho , como já disse, que houve uma certa leniência com o crime, a principio alegando razões políticas, e agora, descaradamente, por uma má consciência, porque fica mal cobrar dos outros aquilo que não se fez anteriormente. Quem organizou o “mensalão” e coisas parecidas não tem muita moral para botar o dedo no nariz dos criminosos comuns.

O país está assistindo a uma campanha eleitoral onde não se vê, através de discursos ou entrevistas, propostas dos candidatos para resolver essa crise política e ética na democracia que o país atravessa. Essa falta de debate e propostas também não é grave?
Acho gravíssimo! É exatamente a falta desse debate que está transformando a eleição em um plebiscito. O tema do plebiscito seria: “Lula fica ou Lula vai?”. A eleição pressupõe o debate em torno de temas de interesse público. Esse debate não existe.
O que é preciso mudar?
O que eu tenho observado, e cada vez me convenço mais, é que existe um escudo invisível separando o governo e a administração. Veja bem, o governo é constituído pelos políticos eleitos, não é? Já a administração, com os cargos preenchidos por funcionários de carreiras estáveis. Mas a eficiência da extensão dos benefícios dos cidadãos só é possível através de uma administração eficiente, e não através de projetos ou planos de governo. É lamentável, mas no debate atual não vejo nenhum candidato sugerindo, por exemplo, uma mudança no sistema federativo. Ou, uma muito importante, que seria redefinir o papel do Supremo Tribunal Federal que atualmente funciona, convenhamos, como juiz da lei, com poder realmente supremo, que pode, inclusive, chegar ao ponto de considerar inconstitucionais as leis que o parlamento, no exercício das suas atribuições pode criar e até alterar. Até o momento, o que se pode registrar na atual campanha é a escassez de idéias.

O que o senhor considera emergencial para um processo de mudança?
Ah, sem dúvida, a democracia participativa. Por quê? Porque é através da participação pelo voto que fica possível exercitar com mais eficiência a democracia. Ou seja, não é com referendos ou até plebiscitos, mas acionando ONGs e lobbies, por exemplo.

Seria tão eficiente assim?
Sem dúvida, porque todos eles existem na sociedade, mas com um detalhe – não em seu nome. O propósito maior não é a condução, mas acionar com eficiência a administração.

Seria o caso do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), por exemplo?
Não, lógico! Não estou me referindo ao banditismo político…

Por que a democracia brasileira chegou a esse ponto, praticamente ao fundo do poço?
Chegou a esse ponto por causa da degradação do sistema de representação política – partidos, eleições, sistemas eleitorais, uma infiltração da idéia de que a liberdade é um produto dispensável. Mas, a liberdade é a própria essência da democracia. As revoluções inglesa, norte-americana, francesa foram revoluções de liberdade. A liberdade que marcou o mundo moderno, tanto com relação às idéias e pensamentos como em relação à organização política. Insistem muito em fraternidade e igualdade, claro que elas foram conquistas importantes das que não se pode abrir mão, mas não precisa se jogar fora a liberdade para se ter as outras duas. A liberdade faz falta, porque se ela, por acaso, não existir, em uma sociedade toda regulada pelo Estado, a representação política é descaracterizada, juntamente com todo o regime político-democrático. Isso tudo está na raiz daquilo que se chama hoje “crise da democracia”. Na realidade, essa é uma crise falsa, porque ela deriva, exclusivamente, de uma prédisposição de recusar à democracia a sua principal virtude: ser um regime de homens livres.

Fala-se na necessidade de uma nova Constituição, para corrigir as falhas da atual. Essa seria a solução ideal?
Não. O que eu tenho visto são propostas que só interessam aos políticos, só são discutidos temas que interessam a quem tem mandato. Não se fala nunca na reforma do sistema eleitoral, fala-se, quando muito, no voto fechado. Isso só interessa, evidentemente, aos partidos. Os grandes problemas, tanto das organizações políticas como das sociais do país, não são considerados dignos de uma reforma constitucional. Acho melhor ir devagar com esse setor.

Qual é o conceito que o senhor tem da atual Constituição?
Sem dúvida nenhuma,  seu papel é regulamentar. Mas tenho a acrescentar que também vejo um caráter antidemocrático nela…

Como assim?
Pela sua pretensão em engessar a sociedade, interferindo em quase tudo. Até em pensão alimentícia! Ora, isso deve ser tratado pelo direito comum. Além do mais, parece não ter limites, principalmente com relação ao poder do Estado em criar impostos. O meu ponto de vista é que uma Constituição deve preservar princípios, que são universais, com vida longa, vale ressaltar.

Por que o senhor acha que a democracia é evangélica?
Porque ela tem um fundamento moral, a sua essência é de ordem moral. O que constitui a finalidade do Estado é o serviço à sociedade, é a famosa frase aristotélica de que “a política é a ciência do bem comum”. Este é o fundamento moral do regime democrático. É sob este conceito de moralidade pública que se estrutura todo o regime democrático. Quando se perde isto, não há democracia. Quando digo que ela é de natureza evangélica, estou simplesmente repetindo uma frase do Henri Bergson, o grande filósofo francês da Idade Moderna. Ele, sendo judeu, dizia que a essência da democracia é evangélica, porque foi o Evangelho que nos ensinou a compaixão, a chamada amizade física, como fundamento da ordem democrática. Não é o ódio nem a guerra mas a amizade que faz a democracia. É a dedicação de todos ao bem comum de todos que a caracteriza, exatamente o que o Evangelho ensinou ao mundo.

O Brasil de hoje é pior ou melhor que o de antes?
Em muitos aspectos é melhor, até moralmente. Com relação ao serviço público, basta dizer que o concurso público é a única porta de entrada para os cargos públicos. Isso realmente fez uma diferença enorme. O Estado hoje é melhor controlado do que foi no passado. A educação também se generalizou. A aspiração de todos é a universalização do ensino e isso vem sendo conseguido. Alfabetizou-se praticamente toda a população, pelo menos a parcela infantil e juvenil. O nível de vida, sobretudo das famílias de menor renda, é melhor hoje do que foi no passado. Então, enxergo belos sinais de progresso material. Agora, nosso o grande problema nosso continua sendo o progresso moral. É aí que está nossa crise.