Luz para a Maternidade

21 de março de 2022

Carmen Silva Lima de Arruda Juíza Federal do TRF2

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A incidência da contribuição previdenciária sobre a parcela paga a título de salário-maternidade foi um dos temas que veio desafiando nossos tribunais na última década. A questão vinha se pacificando no Superior Tribunal de Justiça pela constitucionalidade da incidência a cargo do empregador, dita patronal, em razão de sua natureza salarial, a despeito da transferência do encargo à Previdência Social (pela Lei no 6.136/1974). Pouco a pouco, firmou-se a orientação no sentido da sua constitucionalidade, sob a sistemática da repercussão geral.

No entanto, reconhecendo-se envolver matéria constitucional, a controvérsia foi levada ao Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), e com o reconhecimento de repercussão geral nos termos do Tema 72 e submetida a julgamento no Recurso Extraordinário no 576967/PR. 

Ali, a questão ganhou novas luzes, descortinando-se uma preciosa oportunidade para o Supremo Tribunal Federal exercer seu mais importante papel, de “iluminista”, promovendo “avanços sociais que ainda não conquistaram adesão majoritária, mas são uma imposição do processo civilizatório”. Abriu-se, então, caminho para compreensão mais ampla do sistema tributário, que deve adequar-se aos comandos constitucionais que estabelecem “isonomia entre homens e mulheres, bem como a proteção à maternidade, à família e à inclusão da mulher no mercado de trabalho”.

Partindo da premissa da legitimidade do “tratamento diferenciado às mulheres” e atendendo-se ao “princípio da proporcionalidade na compensação das diferenças”, por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal firmou a tese no sentido de que “É inconstitucional a incidência de contribuição previdenciária a cargo do empregador sobre o salário-maternidade”.

No voto condutor do Ministro Relator Roberto Barroso a análise desenvolveu-se a partir de um histórico da legislação relacionada ao salário-maternidade, no qual se destacou ter ocorrido uma mudança de natureza, de prestação trabalhista para benefício previdenciário. Neste aspecto, o voto da Ministra Rosa Weber trouxe valiosas contribuições alinhadas ao voto condutor.

Prosseguiu o Ministro Relator demonstrando a existência de uma verdadeira violação à isonomia, considerando a discriminação da mulher no mercado de trabalho, com restrições ao acesso a determinados postos de trabalho, salários e oportunidades, potencializada pela incidência do tributo. Destaca o papel de cuidadora da mulher na sociedade, e como as mulheres negras e pardas são, historicamente, as mais prejudicadas, especialmente por terem menos acesso a métodos contraceptivos e engravidarem mais. Aponta também a discrepância entre mulheres que vivem no meio rural e meio urbano.

Admitir uma incidência tributária que recaia somente sobre a contratação de funcionárias mulheres e mães é tornar sua condição biológica um fator de desigualdade de tratamento em relação aos homens. Evidencia-se verdadeiro, e certamente indesejável, desestímulo à maternidade, impondo “gravame terrível sobre o gênero feminino, discriminado na contratação, bem como sobre a própria maternidade, o que fere os direitos das mulheres, dimensão inequívoca dos direitos humanos”.

Concluiu o Ministro Relator afirmando que, a incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade importa em discriminação incompatível com o texto constitucional e com os tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, pois há “oneração superior da mão de obra feminina, comparativamente à masculina, restringindo o acesso das mulheres aos postos de trabalho disponíveis no mercado, em nítida violação à igualdade de gênero preconizada pela Constituição da República”.

O que restou cabalmente demonstrado no voto do Ministro Relator é que a incidência tributária, na hipótese examinada, agia direta e negativamente para o agravamento da indesejável e inconstitucional discriminação da mulher no mercado de trabalho, e pior, da mãe, e da maternidade. A justiça social inclui equidade na tributação, e a incidência da contribuição sobre o salário-maternidade encerrava evidente tratamento discriminatório entre gêneros. A declaração de inconstitucionalidade dessa tributação corrigiu essa distorção, e juntamente a outros precedentes do STF, representou um importante marco não apenas na luta pela isonomia entre homens e mulheres no mercado de trabalho, e também na proteção da maternidade.

Com a publicação do acórdão, foi autorizada, no âmbito do Procuradoria da Fazenda Nacional, a dispensa de contestar e recorrer no Parecer SEI no 18361/2020/ME e determinada a inclusão do tema na “Lista exemplificativa de temas com jurisprudência consolidada do STF e/ou de tribunal superior, inclusive a decorrente de julgamento de casos repetitivos, em sentido desfavorável à Fazenda Nacional”, conforme art. 2o, V, VII e §§ 3o a 8o, da Portaria PGFN No 502/2016. 

Em junho de 2021, após o julgamento dos embargos de declaração opostos, certificou-se o trânsito em julgado do RE 576967, sendo expedida a Instrução Normativa da Receita Federal regulamentando a restituição, a compensação, o ressarcimento e o reembolso, no caso de quotas de salário-família e de salário-maternidade.

A luta pela igualdade de gênero está longe de chegar ao fim. Impõe-se prosseguir na busca de mecanismos que efetivamente contribuam para a diminuição das desigualdades. O caso ora analisado bem traduz a importância do aprimoramento do nosso sistema tributário, tornando-o mais equitativo e sensível à discriminação sofrida pelas mulheres; um instrumento capaz de garantir a igualdade de gênero, num Estado democrático que tem como objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e igualitária, para promoção do bem de todos, sem discriminação.

Saliente-se por fim que, ao julgar o tema 72, o Supremo Tribunal Federal contribuiu com os compromissos assumidos na Cúpula das Nações para o Desenvolvimento Sustentável, tendo o RE 576967/PR sido catalogado sob três objetivos da Agenda 2030: Objetivo 5, que trata da igualdade de gênero, Objetivo 10, por promover a redução de desigualdades, e Objetivo 16, ao buscar estabelecer a “Paz e instituições eficazes”.

Notas_____________________________

1“No julgamento dos Recursos Especiais repetitivos 1.230.957/RS e 1.358.281/SP, a 1ª Seção firmou a compreensão de que incide contribuição previdenciária patronal sobre as seguintes verbas: salário-maternidade, salário-paternidade, horas extras, adicional de periculosidade e adicional noturno.” REsp 1814866/SC, Relator Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 1/10/2019, DJe 18/10/2019 Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201901400083&dt_publicacao=18/10/2019>. Acesso em 8/2/2022.

REsp 1.230.957/RS 1ª Seção/STJ, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, DJe de 18/3/2014. Disponível em:<https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201901400083&dt_publicacao=18/10/2019>. Acesso em 8/2/2022.

2 Tema 72- Título: Inclusão do salário-maternidade na base de cálculo da Contribuição Previdenciária incidente sobre a remuneração. Descrição: Recurso extraordinário em que se discute, à luz do art. 195, caput e §4o; e 154, I, da Constituição Federal, a constitucionalidade, ou não, da inclusão do valor referente ao salário-maternidade na base de cálculo da Contribuição Previdenciária incidente sobre a remuneração (art. 28, § 2o, I da Lei no 8.212/1991 e art. 214, §§ 2o e 9o, I, do Decreto no 3.048/1999). Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=72> Acesso em 8/2/2022.

3 RE 576967, Relator: Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 5/8/2020, processo eletrônico Repercussão Geral – Mérito DJe-254 20-10-2020 Publicado em 21/10/2020. Disponível em:< https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur433965/false>. Acesso em 8/2/2022.

4 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização da vida, Ed. Fórum, 2018, p. 11.

5  Item 4 da Ementa do Acórdão – RE 576967.

6 RE 629.053, RE 658312

7 Parecer SEI no 18.361/2020/ME, autorizando a não apresentação e contestação e recurso nos casos em que se discute a incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade.

8 Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/representacao-judicial/documentos-portaria-502/lista-de-dispensa-de-contestar-e-recorrer-art-2o-v-vii-e-a7a7-3o-a-8o-da-portaria-pgfn-no-502-2016#1.8_ok . Acesso em 10/2/2021.

9 IN/RFB no 2.055, de 6/12/2021. Dispõe sobre restituição, compensação, ressarcimento e reembolso, no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-rfb-n-2.055-de-6-de-dezembro-de-2021-365444911> Acesso em 10/2/2021.

10 Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/sdgs> Acesso em 10/2/2021.

11 Disponível em: http://portal.stf.jus.br/hotsites/agenda-2030/#about Acesso em 10/2/2021.

12 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2591930. Acesso em 10/2/2021.