Edição 288
Maioridade da Lei Maria da Penha: da promessa à realidade da proteção
5 de agosto de 2024
Fabíola Sucasas Negrão Covas Promotora de Justiça / Coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo/ Integrante do Conselho Nacional do Ministério Público
Há dezoito anos, em 7 de agosto de 2006, o Brasil deu um passo significativo na luta contra a violência doméstica com a promulgação da Lei Maria da Penha. Essa legislação prometia oferecer proteção eficaz às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, buscando romper o ciclo de agressões que se perpetuavam devido à falta de resposta adequada do sistema judicial. Desde o início, a lei não apenas visava punir os agressores, mas também prevenir a violência e oferecer suporte às vítimas, estabelecendo um marco legal robusto e específico para tratar desse problema complexo.
A violência doméstica e familiar contra a mulher, muitas vezes banalizada e tratada como um problema privado, foi finalmente reconhecida como uma grave violação dos direitos humanos. Em 2006, o cenário era de violência invisibilizada, em que os casos frequentemente não eram reportados ou, quando o eram, não recebiam a devida atenção. A Lei Maria da Penha representou uma mudança de paradigma para o Direito, ao reconhecer que a violência doméstica é uma questão de interesse público que afeta toda a sociedade. Esse tipo de violência pode assumir várias formas, incluindo agressão física, psicológica, sexual, moral e patrimonial, cada uma impactando profundamente a vida das mulheres e de suas famílias.
De acordo com a 4a edição da pesquisa Visível e Invisível: A vitimização de mulheres no Brasil, todas as formas de violência contra a mulher cresceram 4,5 pontos percentuais recentemente. Houve um aumento considerável nos episódios de violência física, ameaças graves, perseguições e agressões com armas de fogo e facas. Mulheres jovens, separadas e divorciadas são as mais vitimizadas, com taxas de vitimização consideravelmente maiores em comparação com mulheres casadas ou viúvas. A violência, predominantemente cometida por parceiros íntimos, revela uma triste realidade na qual 58% dos agressores são ex-cônjuges, ex-companheiros ou parceiros atuais.
O sistema de Justiça brasileiro enfrenta uma expressiva dificuldade com a alta taxa de congestionamento dos processos de violência doméstica e feminicídio. O tempo médio para a conclusão desses processos é de aproximadamente dois anos e dez meses, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2023, o número de casos pendentes cresceu 15%, ultrapassando um milhão de processos, sendo que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) lidera com 164.383 casos pendentes.
Esse congestionamento é preocupante não apenas porque ameaça a prescrição dos casos, mas também prolonga o sofrimento das vítimas que aguardam por justiça, muitas vezes ainda convivendo com seus agressores. A espera prolongada por uma resolução judicial adequada pode levar a uma reorganização forçada das relações familiares, de modo que a vítima continua a viver em condições de insegurança e pressão emocional.
Desde a sua promulgação, a Lei Maria da Penha passou por diversas alterações diretas e indiretas com o objetivo de aprimorar sua aplicação e oferecer maior proteção às mulheres. Entre as mudanças mais marcantes, sobressai a autonomia das medidas protetivas de urgência, que agora podem ser concedidas independentemente do processo penal e duram até a cessação do risco. Isso permite que as mulheres obtenham proteção imediata sem aguardar o andamento do processo judicial, destacando a importância de sua palavra na avaliação do risco. Além disso, novas tipificações criminais, como violência institucional, violência psicológica e stalking, foram introduzidas para reconhecer e penalizar formas de violência anteriormente não abordadas e já reconhecidas entre os fatores de risco de feminicídio.
Nesse aspecto, celebra-se a exigência da aplicação do Formulário Nacional de Avaliação de Risco (FONAR) durante o primeiro atendimento à mulher vítima de violência doméstica e familiar pelo sistema de Justiça, medida que tem como finalidade contribuir para a interrupção dos ciclos de violência e a prevenção de feminicídios.
A perspectiva de gênero tornou-se um elemento central na reestruturação do sistema de Justiça brasileiro em nome do enfrentamento à discriminação e à violência contra as mulheres, reconhecendo-se a necessidade de adoção de protocolos próprios em seus julgamentos. O Supremo Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e outras instâncias judiciais têm trabalhado para garantir que os procedimentos judiciais penais sejam justos e sensíveis às questões de gênero. Isso inclui o reconhecimento de que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transgênero, a proibição do uso do argumento da legítima defesa da honra, a proibição de argumentos que questionem o comportamento moral da vítima ou sua experiência sexual. Essas mudanças são fundamentais para evitar a revitimização das mulheres durante os processos judiciais e assegurar que a Justiça seja feita à luz da interseccionalidade, de maneira imparcial e respeitosa.
A Lei Maria da Penha não apenas introduziu novas medidas protetivas e penalidades, mas também impulsionou mudanças estruturais no sistema de Justiça e nas políticas públicas de proteção à mulher. A criação de delegacias especializadas, com equipes treinadas para lidar com casos de violência doméstica e que devam funcionar de modo ininterrupto, é um exemplo de como se busca melhorar o atendimento às vítimas. A destinação de 5% dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para ações de enfrentamento à violência contra a mulher é outra medida importante que visa contribuir para o orçamento destinado à implementação das políticas previstas na Lei.
A atenção à dependência econômica e à violência patrimonial também se constituiu como foco relevante. A concessão de auxílio-aluguel, uma medida tradicionalmente de iniciativa da assistência social, foi concorrentemente relegada à judicialização por força de lei. Agora, faz parte do rol de medidas que podem ser adotadas pelo juiz para proteger as mulheres, oferecendo uma alternativa segura e digna para aquelas que precisam deixar suas casas por causa da violência. Essa medida amplia as ferramentas disponíveis para garantir a segurança e a estabilidade das vítimas em situações de vulnerabilidade.
O enfrentamento à cultura patriarcal, em que as desigualdades de gênero, enraizadas, contribuem para o aumento real da violência de gênero, coloca a educação em um lugar de extrema relevância. É imperativo incluir, nos currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio, conteúdos sobre direitos humanos e prevenção de todas as formas de violência contra mulheres, crianças e adolescentes.
Apesar dos avanços legislativos, ainda existem muitos obstáculos a serem enfrentados. A alta taxa de subnotificação, com 61% das mulheres que sofreram violência em 2023 não procurando uma delegacia, indica que muitas vítimas estão em silêncio e ainda não confiam no sistema de Justiça ou não têm acesso a ele. A complexidade dos casos de violência de gênero requer uma abordagem especializada e sensível, que leve em consideração as dinâmicas de poder e controle presentes nessas situações. Não por outro motivo, atribui-se ao efeito backlash – a reação adversa dos agressores diante das denúncias ou da resistência das mulheres – o aumento dos índices de violência contra a mulher.
No entanto, nem todas as notícias são desanimadoras. Um dado que pode indicar um ponto positivo é o aumento de 21,3% no registro de novos processos com pedidos de medidas protetivas, totalizando 663.704 novos casos. Esse aumento sugere que mais mulheres estão se sentindo seguras para denunciar agressões e buscar proteção. Além disso, o aumento de 0,9% nas ligações para o 190 relacionadas à violência doméstica, chegando a 848.036, pode indicar uma maior conscientização e disposição da sociedade em reconhecer a gravidade do problema e tomar medidas para enfrentá-lo. O aumento das tentativas de feminicídio em 7,1% também pode ser visto como um indicador de que os sistemas de proteção estão conseguindo intervir de modo mais eficaz, impedindo que muitas dessas tentativas resultem em mortes.
A maioridade da Lei Maria da Penha representa um marco importante na luta contra a violência de gênero no Brasil. Não há dúvida de que houve uma intensa evolução da conscientização institucional, observada nas mudanças e melhorias no sistema de Justiça e na resposta à violência de gênero. No entanto, a plena efetividade da lei depende de um esforço contínuo para aprimorar o sistema de Justiça e garantir que as políticas públicas sejam verdadeiramente inclusivas e protetivas.
É essencial que a sociedade, o governo e as instituições de justiça continuem a trabalhar juntos para transformar a promessa da Lei Maria da Penha em uma realidade concreta, na qual todas as mulheres possam viver livres de violência e com igualdade de oportunidades. A esperança de Maria da Penha, expressa em sua carta ao STF, deve ser um compromisso de todos nós: um futuro sem violência, no qual a dignidade e os direitos das mulheres sejam plenamente respeitados.
Notas_____________________
1 BUENO, Samira et al. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil: sumário executivo. 4. ed. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023.
2 Conselho Nacional de Justiça. O Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha: ano 2022 / Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: CNJ, 2023.
3 Brasil. (2023). Lei nº 14.550, de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14550.htm
4 Brasil. (2022). Lei nº 14.321, de 31 de março de 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/Lei/L14321.htm
5 Brasil. (2021). Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021. Institui o Programa de Cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica e Familiar e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para incluir o crime de violência psicológica contra a mulher. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14188.htm
6 Brasil. (2021). Lei nº 14.149, de 5 de maio de 2021. Institui o Formulário Nacional de Avaliação de Risco, a ser aplicado à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14149.htm
7 Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico] / Conselho Nacional de Justiça. — Brasília : Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2021.
8 Brasil. Superior Tribunal de Justiça. (2022). Recurso Especial 1.977.124/SP. Relator: Ministro Rogério Schietti Cruz. Julgado em 5 de abril de 2022. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202103918110&dt_publicacao=22/04/2022
9 Supremo Tribunal Federal. (2023). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 779. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690
10 Supremo Tribunal Federal. (2022). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1107. Origem: DF – Distrito Federal. Relator: Min. Cármen Lúcia. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6817678
11 Brasil. (2017). Lei nº 13.505, de 8 de novembro de 2017. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para dispor sobre o direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar ao atendimento policial e pericial especializado.
12 Brasil. (2023). Lei nº 14.541, de 3 de maio de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14541.htm
13 Brasil. (2022). Lei nº 14.316, de 29 de março de 2022. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2022/lei-14316-29-marco-2022-792428-norma-pl.html
14 Brasil. (2023). Lei nº 14.674, de 22 de junho de 2023. Inclui a concessão de auxílio-aluguel como medida protetiva. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14674.htm
15 Brasil. (2021). Lei nº 14.164, de 10 de junho de 2021. Altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para incluir nos currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança, o adolescente e a mulher, observadas as diretrizes da legislação correspondente e a produção e distribuição de material didático adequado a cada nível de ensino. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14164.htm
16 Senado Federal. (2023). Mapa Nacional da Violência de Gênero. Disponível em: https://www.senado.leg.br/institucional/datasenado/mapadaviolencia/
17 ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024.
18 Idem
19 Idem
20 Idem
21 Penha, Maria da. (2021). Carta de Maria da Penha ao STF. Instituto Maria da Penha. Disponível em: https://www.institutomariadapenha.org.br/assets/downloads/carta_de_penha_ao_stf.pdf
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