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Mediação: justiça dentro e fora do sistema Estatal

1 de julho de 2015

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Foto SiteÀs voltas com os recentes passos da mediação no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo o profissional mais cético quanto a meios autocompositivos se vê obrigado a buscar o mínimo de conhecimento sobre esse novo recurso.

As principais bases normativas nessa área se encontram hoje no Novo Código de Processo Civil (NCPC) ainda em vacatio legise nos textos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) consolidados na Resolução 125 e na Recomendação 50. Para coroar a modernização normativa nessa área, é bastante prometedor o trâmite do Projeto de Lei n. 7.169/2014 que oferecerá regulamentação detalhada para além da mediação judicial.

Toda essa atenção destinada à mediação não é novidade se observado o histórico da institucionalização desse mecanismo de uma maneira globalizada. De países europeus continentais – cujos sistemas processuais se assemelham ao nosso – a países asiáticos como Cingapura e Índia, a promoção da mediação é um projeto comum nas últimas duas décadas. Da amplitude desse fenômeno não escapam nem mesmo ordenamentos como o Russo, cujas peculiaridades políticas e culturais costumam pautar as reformas legislativas. E, se a mediação não é a panacéia para os problemas judiciais, ela é, sem dúvida, um tratamento que pode oferecer boas respostas a certas expressões do conflito como o litígio.

A aproximação desse meio ao aparato jurisdicional tradicional baseia-se no ideal de múltiplas portas, há décadas defendido e implementado com êxito em diferentes estados norte-americanos e em outros países guiados originalmente pelo common law. Esse modelo traz para o sistema de justiça clássico, a possibilidade de obter respostas diversas, além da decisão baseada em direitos e pautada pela autoridade estatal.

E por que levar outras ‘’portas’’ para o judiciário? Ao responder indagação semelhante, o Professor Frank Sander1 , precursor dessa proposta de concentrar a oferta de diferentes métodos, se refere a uma simpática analogia retratada na razão explicitada por um famoso ladrão que, quando perguntado sobre o motivo que lhe levava a roubar bancos, afirma: ‘’Porque é lá onde o dinheiro está! ”.

Assim como o dinheiro está no banco, as disputas estão nos órgãos jurisdicionais. Pelo menos no Brasil não há dúvidas quanto a isso, já que o número de processos em tramitação na Justiça já ultrapassa a marca dos 100 milhões. Comparados ao número total de habitantes de nosso país, isso implicaria dizer, simbolicamente, que, a cada dois brasileiros, um deles é um litigante potencial, o que contraria o anseio de uma cultura de combate à litigiosidade excessiva frequentemente exclamada por autoridades.

Como os números avultam, via de regra as cifras atribuídas à conciliação também costumam interessar ao meio jurídico. No entanto, ao abordar a mediação, parece que a perspectiva pode ser um pouco diferente e contrastar com o fluxo concentrado em mutirões e ações pontuais. Em poucas palavras, a mediação é um processo estruturado, complexo e com técnicas profissionais diferenciadas. Assim como a conciliação, a mediação busca a autocomposição, porém o faz com uma maior atribuição de autonomia às partes, das quais se exige uma atuação mais criativa, em um processo flexível, transparente e confidencial. Não excludentes, conciliação e mediação prometem uma convivência pacífica na resolução de conflitos dentro da promessa de uma justiça brasileira mais moderna que estimula a resolução (ou pelo menos seu intento) de controvérsias privadas pelas próprias partes. Para a construção desse cenário, a contribuição de instituições externas ao judiciário é fundamental.

A questão talvez seja como adequar essa justiça de características privadas dentro da estrutura estatal. Para tanto, é preciso informar distintos atores: juízes, servidores, auxiliares, membros do Ministério Público e da advocacia, porquanto todos são relevantes para que os programas de mediação alcancem bons resultados. Isso não quer dizer que serão todos mediadores ou devam possuir conhecimentos profundos em técnicas de facilitação. Ao contrário, a riqueza do pluralismo processual está justamente na diversidade de métodos e na contribuição de cada participante para o sucesso do processo. E como os principais passos para a mediação no Brasil têm sido centralizados inicialmente na estrutura judicial, os atores públicos passam a ser ainda mais relevantes.

Contudo, a mediação não deve se limitar às disputas levadas ao juiz. Quando a autoridade judicial é requerida, o conflito provavelmente já atingiu um nível mais alto em sua escalada, com prejuízos severos de comunicação e outras consequências. A título de ilustração, na experiência do Centre de Médiation et d’Arbitrage de Paris (CMAP), gentilmente relatada por Mélanie Germain – responsável de atividades internacionais do Centro –,a proporção de acordos obtidos em mediações encaminhadas pelo judiciário que gira em torno de 65% é inferior à média de 90% observada nas mediações privadas iniciadas antes da propositura da ação na mesma instituição. Embora o número de mediações bem sucedidas seja animador em ambos os casos, fica evidente que o encaminhamento das disputas em momento propício é fator que contribui para a resolução.

Nesse contexto, um ponto interessante é a ampliação do sistema de justiça e, consequentemente, da ciência jurídica, para campos ainda pouco explorados no Brasil, que dizem respeito ao oferecimento de mecanismos de gestão de conflitos em âmbito privado. Um dos grandes nomes dentro do campo da negociação, William Ury2 , lembra os benefícios da antecipação na resolução de conflitos com a feliz afirmação “Contenha se necessário, resolva se possível e, melhor que tudo, previna”.

Essa nova afinidade entre jurisdição tradicional e tratamento de conflitos extrajudicial pode ser bastante interessante seja antes do conflito se expressar em disputas, litígios e outros procedimentos; seja depois de já judicializadaa controvérsia.

Esse enriquecimento processual da justiça brasileira é resultado de um processo contínuo. A arbitragem mostrou grandes avanços nos últimos tempos. Desde a Lei 9.307/96, passadas as resistências iniciais e sanada a discussão de constitucionalidade, pode-se dizer que o campo floresceu bastante e hoje aponta para uma grande evolução refletida na reforma prevista no PL 406/2013, resultado do trabalho intenso e exitoso da comissão de juristas capitaneada pelo Ministro Luís Felipe Salomão do Superior Tribunal de Justiça. Por outro lado, na seara da mediação, com a ausência de um marco legal, esse progresso aconteceu de forma mais lenta, o que também não destoa da realidade do contexto internacional, onde a mediação só assumiu mais importância em um período mais recente.

No entanto, a ausência de um marco legal não pode ser apontada como única causa para nosso atraso. O exemplo de Cingapura comprova que a mediação pode avançar dentro e fora dos sistemas judiciais sem que exista um marco legal, o que se observa pelas informações apresentadas por Ian MacDuff, renomado mediador atuante no país e professor da Singapore Management University.

Nessa linha, já há no Brasil algumas experiências pontuais em mediação no setor empresarial e em questões de família que ocultam uma enorme potencialidade, mas ainda produzem efeitos gerais incipientes. Com os novos passos do ordenamento, é provável que essas experiências pontuais passem a dar lugar a uma atividade profissionalizada que pode impactar positivamente os números do sistema judiciário e, quiçá, reverter a tendência cultural litigante.

Essa relação entre o setor público e privado é interessante e funciona muito bem em muitas jurisdições. Jay Welsh, Vice-Presidente do JAMS, uma das mais ativas organizações de mediação privada dos Estados Unidos, afirma que a instituição recebe inúmeros encaminhamentos de casos dos órgãos jurisdicionais, que não são capazes de absorver e resolver todas as disputas. Com tamanho sucesso do método no país norte-americano, a mediação é tão bem estabelecida que ele não conseguiria nem mesmo imaginar alguma política pública que fosse capaz de aumentar ou melhorar o uso de mediação.

Finalmente, em uma visão prospectiva no Brasil e com base nas pistas encontradas na experiência de países europeus, asiáticos e norte-americanos, compreende-se que a mudança de uma justiça concentrada dentro do Estado para uma justiça plural depende não só de câmbios legislativos, mas também do estabelecimento de um diálogo e colaboração transparente e efetivo entre instituições públicas e privadas.

As linhas de abertura dessa via contida na recomendação 50 do CNJ foram corroboradas pelas previsões do NCPC, que promove o fortalecimento de um sistema de tratamento de disputas aberto ao apoio de organizações privadas. Mas será que precisamos esperar até 2016?

Como processo eminentemente voluntário, a me­diação propriamente dita e o acordo só serão possíveis se as partes realmente quiserem. Desde que não exista vedação expressa – e no que tange direitos transigíveis, no Brasil, não há! – não é necessário esperar. A mediação é algo que precisa ser menos comentado na literatura e mais vivido na prática da advocacia e do manejo do conflito. Os resultados são positivos tanto para o sistema de justiça como para o cidadão que, além de usuário, passa a ser copartícipe no processo de solução.

Na verdade, a justiça suave que se promove fora dos autos processuais e eventualmente dos prédios públicos, ainda que não se encaixe no esquadro rígido do arquétipo tradicional de justiça, não implica uma Justiça fora do Estado, que permanece com o dever de zelar pela obediência ao ordenamento. O Estado passa simplesmente a se inserir em um modelo pluralista que exige uma maior participação cidadã nos processos de tomada de decisão: e porque não também na justiça? Afinal, quem melhor do que a própria parte para saber o que, quando e como seus interesses podem ser satisfeitos.

 

Notas___________________________________________

1 Sander, Frank (2008) A Dialogue Between Professors Frank Sander and Mariana Hernandez Crespo: Exploring the Evolution of the Multi-Door Courthouse, University of St. Thomas Law Journal: Vol. 5: Iss. 3, Article 4. P. 671
2 Ury, William, Frank (2000). The third side. New York: Penguin Books. p. 113. Tradução própria