Medidas cautelares, duração razoável do processo e responsabilidade civil do Estado pelo risco estatal judicial anormal

1 de fevereiro de 2021

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Vivencia-se no Brasil, atualmente, a cautelarização” da vida, sobretudo nos processos criminais, nas ações civis públicas e nas ações por improbidade administrativa. Disto decorre a “expropriação de direitos” de litigantes no início dos processos judiciais (muitas vezes lícitas), que podem não ser decididos em tempo razoável. Passou a ser quase uma regra no Brasil a postulação dos órgãos de controle, sobretudo do Ministério Público, de medidas liminares que privam os réus (via instituto da indisponibilidade) da generalidade dos seus bens ou mesmo da liberdade de locomoção.

Não se pode questionar a necessidade e a utilidade desses provimentos cautelares pelo Judiciário brasileiro, com o fim de proteger a recomposição de eventuais danos perpetrados contra o erário. Todavia, não é possível que os processos dos quais provêm essas liminares se eternizem e obriguem os litigantes a conviverem com restrições a direitos fundamentais por tempo irrazoável e desproporcional.

Igualmente, não é correto afirmar que as medidas cautelares em tais espécies de processos constituem atos equivocados do Sistema de Justiça brasileiro, no combate à improbidade e ao crime. Todavia, a difusão de tais atos cautelares acaba gerando para a sociedade uma nova espécie de risco: o risco estatal judicial, que poderá ser considerado normal, na hipótese de deferimento de tutela cautelar justa e com gestão processual célere, ou anormal, caso a cautelar afete direitos fundamentais sem o devido cuidado e respeito às normas constitucionais e legais, sobretudo as inovações trazidas à lei de introdução ao direito brasileiro, com gestão processual ineficiente.

A propósito, tenho sustentado que se faz necessário e importante ponderar, após o alargamento dos instrumentos de acesso à Justiça para o exercício do combate à corrupção e ao crime organizado após a promulgação da Constituição de 1988 (e das inúmeras inovações legislativas), que a atuação dos órgãos de controle, a partir da utilização do princípio in dubio pro societate, deve ser reinterpretado para dele se exigir a atuação a partir de prova mínima razoável (e não meros indícios) e levando em consideração as circunstâncias concretas da época dos fatos, sobretudo para se impor medidas cautelares que restrinjam os direitos à propriedade, à locomoção, à manutenção da honra e da imagem. O princípio in dubio pro societate merece ser reinterpretado à luz do princípio da responsabilidade e do postulado do devido processo legal quando medidas drásticas afetarem direitos individuais fundamentais do cidadão, sob pena de sua exposição (e, assim, de sua dignidade humana) ao risco demasiado de ações infundadas e abusivas que refletem o poderio estatal. Isto é, a justa causa para atuação dos órgãos de controle que compõem o “sistema de justiça” e a decisão judicial que limite direitos fundamentais dos cidadãos não pode ser objeto de motivação frágil baseada em meros indícios; necessário, para tanto, a comprovação de provas mínimas que justifiquem a submissão do cidadão a qualquer constrangimento de ordem moral ou mesmo patrimonial.

Não fosse isso suficiente, necessário advertir que Constituição Federal de 1988 tem regra expressa que determina a duração razoável do processo judicial e administrativo no art. 5º, LXXVIII. O vigente Código de Processo Civil seguiu o mesmo caminho nos artigos 4º e 139, II. Ou seja, no Brasil é direito fundamental do cidadão ter a prestação jurisdicional em tempo razoável, por força da constituição e da lei processual civil.

Deste modo, é uma imposição constitucional a correta gestão de processos pelos magistrados, de modo a (respeitando as preferências legalmente estabelecidas) priorizar o julgamento das ações em que houver medida cautelar que prive o cidadão do direito de propriedade ou do exercício de direitos outros (direito ao trabalho, por exemplo) a partir de prova mínima dos fatos; isto decorre, como visto, do direito fundamental ao processo justo, equitativo e célere.

Com efeito, em se verificando situação tal que uma medida cautelar torne indisponíveis bens de litigantes, mantendo-os privados do exercício da integralidade ou de parte dos poderes inerentes ao direito de propriedade (ou de direitos da personalidade outros) por prazo manifestamente irrazoável e decorrente de injustificada demora processual, ter-se-á configurada a hipótese de responsabilidade civil estatal, nos termos do art. 37, § 6º da Constituição Federal, sobretudo se a decisão de mérito for de improcedência da pretensão.

Neste contexto, em se tratando de violação ao princípio da duração razoável do processo, não se afigura juridicamente correto e possível extrair do art. 5º LXXVIII da Constituição Federal interpretação que importe em responsabilizar apenas administrativamente o agente público que não o cumprir. A regra veio ao ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional nº 45/2004 com a intenção de proteger o cidadão, criando mais um direito fundamental para ser cumprido pelo Estado. E a consequência prática que protege o cidadão por ter um direito fundamental violado é a reparação ou mesmo compensação pelos prejuízos advindos da violação do princípio da duração razoável do processo. Neste sentido faz-se necessário citar recente e inovador precedente do Superior Tribunal de Justiça:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. LESÃO. DESPACHO DE CITAÇÃO. DEMORA DE DOIS ANOS E SEIS MESES. INSUFICIÊNCIA DOS RECURSOS HUMANOS E MATERIAIS DO PODER JUDICIÁRIO. NÃO ISENÇÃO DA RESPONSABILIDADE ESTATAL. CONDENAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO CARACTERIZADA.

1. Trata-se de ação de execução de alimentos, que por sua natureza já exige maior celeridade, esta inclusive assegurada no art. 1º, c/c o art. 13 da Lei nº 5.478/1965. Logo, mostra-se excessiva e desarrazoada a demora de dois anos e seis meses para se proferir um mero despacho citatório. O ato, que é dever do magistrado pela obediência ao princípio do impulso oficial, não se reveste de grande complexidade, muito pelo contrário, é ato quase que mecânico, o que enfraquece os argumentos utilizados para amenizar a sua postergação.

2. O Código de Processo Civil (CPC) de 1973, no art. 133, I (aplicável ao caso concreto, com norma que foi reproduzida no art. 143, I, do CPC/2015), e a Lei Complementar nº 35/1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), no art. 49, I, prescrevem que o magistrado responderá por perdas e danos quando, no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude. A demora na entrega da prestação jurisdicional, assim, caracteriza uma falha que pode gera a responsabilização do Estado, mas não diretamente do magistrado atuante na causa.

3. A administração pública está obrigada a garantir a tutela jurisdicional em tempo razoável, ainda quando a dilação se deva a carências estruturais do Poder Judiciário, pois não é possível restringir o alcance e o conteúdo deste direito, dado o lugar que a reta e eficaz prestação da tutela jurisdicional ocupa em uma sociedade democrática. A insuficiência dos meios disponíveis ou o imenso volume de trabalho que pesa sobre determinados órgãos judiciais isenta os juízes de responsabilização pessoal pelos atrasos, mas não priva os cidadãos de reagir diante de tal demora, nem permite considerá-la inexistente.

4. A responsabilidade do Estado pela lesão à razoável duração do processo não é matéria unicamente constitucional, decorrendo, no caso concreto, não apenas dos artigos 5º, LXXVIII, e 37, § 6º, da Constituição Federal, mas também do art. 186 do Código Civil, bem como dos artigos 125, II, 133, II e parágrafo único, 189, II, 262 do Código de Processo Civil de 1973 (vigente e aplicável à época dos fatos), dos artigos 35, II e III, 49, II, e parágrafo único, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, e, por fim, dos artigos 1º e 13 da Lei nº 5.478/1965.

5. Não é mais aceitável hodiernamente pela comunidade internacional, portanto, que se negue ao jurisdicionado a tramitação do processo em tempo razoável, e também se omita o Poder Judiciário em conceder indenizações pela lesão a esse direito previsto na Constituição e nas leis brasileiras. As seguidas condenações do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por esse motivo impõem que se tome uma atitude também no âmbito interno, daí a importância de este Superior Tribunal de Justiça posicionar-se sobre o tema.

6. Recurso especial ao qual se dá provimento para restabelecer a sentença”. (REsp 1383776 / AM -RECURSO ESPECIAL – 2013/0140568-8. 2ª Turma do STJ. Relator Ministro OG FERNANDES. Julg. 06/09/2018. DJe 17/09/2018).

Note-se, pois, que no Brasil já se permite ao cidadão, observando, sempre, o caso concreto, buscar frente ao Estado, diretamente perante o Poder Judiciário, o respeito ao direito fundamental à prestação jurisdicional ou administrativo em tempo razoável, bem assim o direito à indenização ou à compensação por danos decorrentes da inobservância do art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.

E o Direito brasileiro está a permitir tal postulação indenizatória frente ao Estado diante de situações ilícitas praticadas pelo magistrado (ou mesmo pela falha na organização da justiça, a exemplo da ausência de juiz em comarca por prazo irrazoável), que pode conduzir mal a gestão dos processos que constituem o acervo de sua serventia, ou mesmo por condutas de agentes públicos outros que retardam injustificadamente ou dolosamente o resultado final do processo. Não se olvide, pois, que além da responsabilidade civil do Estado, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, poderá também o agente público ser responsabilizado administrativamente e civilmente (regressivamente, como regra), salientando que na hipótese dos magistrados é necessária a comprovação de dolo ou fraude, nos termos do art. 143 do vigente Código de Processo Civil, não sendo possível a utilização de presunções.

A cautela, porém, ditará o exercício do direito anteriormente referido de modo a não se incutir no imaginário dos litigantes que processo moroso é sinônimo de ato ilícito capaz de deflagrar o dever de indenizar do Estado. Será necessário analisar cada hipótese para, à luz das circunstâncias concretas (tais como complexidade, pluralidade de partes, sobrecarga de trabalho, etc.) se extraírem elementos que caracterizem a violação do princípio da duração razoável do processo.

Em conclusão, pode-se sumarizar o estudo sustentando que as medidas cautelares postuladas em processos judicias de controle da improbidade ou mesmo em processos criminais devem ser precedidas de prova mínima a justificar a supressão, no início da demanda, de direitos fundamentais, em razão da reinterpretação do princípio in dubio pro societate à luz do princípio da responsabilidade e do postulado do devido processo legal, sendo vedada a fundamentação em meros indícios ou presunções. Igualmente, em sendo deferidas as referidas liminares, ressalvadas as preferências legais, esses processos devem ser priorizados para julgamento final de mérito, impedindo-se que os litigantes fiquem privados dos direitos fundamentais indefinidamente. Este cenário, cada vez mais presente, traz para o Estado brasileiro um novo modelo de risco a atrair a possibilidade de sua responsabilidade civil objetiva prevista no art. 37, § 6º da Constituição Federal, qual seja, o risco estatal judicial anormal.

Notas

1 A necessidade de ponderação do exercício do poder do Estado com o princípio da responsabilização está previsto, inclusive, no art. 54 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que veda o abuso de direitos.

2 A propósito, se manifestou Daniel Sarmento: “a justificativa para a limitação ao direito fundamental deve ser a proteção de algum bem jurídico também dotado de envergadura constitucional – seja ele outro direito fundamental, seja algum interesse do Estado ou da coletividade”. In Livres e Iguais – Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

3 O tempo é uma preocupação antiga da doutrina jurídica brasileira muito antes da edição da Emenda Constitucional nº 45/2004. Mencione-se, por todos, a densa obra de José Rogério Cruz e Tucci: “Tempo e Processo: uma análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual (civil e penal)”, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.