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Menos leis, melhores leis

30 de novembro de 2006

Prof. da Faculdade de Direito e antigo Reitor da Universidade de Coimbra

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Temática

O tema de minha investigação – “Menos leis, melhores leis” – situa-se no domínio da feitura das leis, matéria que, por sua vastidão e complexidade, não cabe obviamente no tempo que disponho. Limitar-me-ei, por isso, a uma breve reflexão sobre uma problemática que, não sendo atual, assume hoje uma especial acuidade. Trata-se de saber como enfrentar a produção desenfreada de legislação, associada a sua falta de qualidade, produção legislativa essa com que freqüentemente nos deparamos e que reclama simplificação e melhoria. Digamos, menos leis, mas melhores leis.

 

Excesso e defeito na atividade legislativa

Não poderá negar-se que existe uma crise do direito e da Justiça e que nela tem sua quota de responsabilidade a crise que, por sua vez, se depara na produção legislativa.

A atividade legislativa, tomada a expressão num amplo sentido, peca freqüentemente, na verdade, por ser excessiva e ou defeituosa.

Constatamos, por um lado, uma “inflação legislativa”, que o poder político não trava, antes incentiva, proliferando a legislação, quantas vezes se publicando novas leis sem que as anteriores tenham sido cumpridamente aplicadas. Sofreremos mais de excesso de leis que de falta delas. Excesso esse que se revela não só no número de diplomas publicados, mas também no tocante a seu objeto e a seu conteúdo, traduzindo-se em situações de grande complexidade legislativa. E nem as rápidas e fundas mudanças econômico-sociais, acentuadas pela globalização e pelo avanço tecnológico, e acontecendo num quadro de progressivo desenvolvimento e aprofundamento democrático, podem justificar tal excesso ou desvario legislativo.

Por outro lado, a legislação é, nas raras vezes, elaboradas sem adequação de objetivos e metodologias e sem a conveniente ponderação e debate, não logrando, aliás, a mais correta formulação. Ao excesso legiferante junta-se, deste modo, a falta de qualidade e de eficiência da produção normativa.

 

Simplificação e melhoria da legislação

Sendo assim as coisas, logo se vê a necessidade de simplificação e melhoria da legislação, exigência, afinal, de uma racionalização legislativa. Careceremos de menos leis, mas de melhores leis. Ou, se preferimos, de melhores e mais eficientes leis.

Uma tal necessidade é, de resto, sentida não apenas em Portugal, ou no Brasil, mas em muitos outros países. Assim, nominativamente, no âmbito da União Européia, ela própria exemplo flagrante de excessos e de deficiências legislativas, e onde, por isso mesmo, acertadamente se reclama uma “melhoria da qualidade legislativa”.

Nesta linha, não faltam iniciativas, estudos e propostas, tanto em Portugal como noutros países, em nível oficial, para diagnosticar aqueles males e a achar para eles a correspondente terapêutica. Tais iniciativas vêm mesmo crescendo e corroboram a idéia de que a melhoria da legislação é uma estratégia verdadeiramente prioritária para o desenvolvimento econômico e sócio-político.

 

Relativização legislativa, flexibilização jurídica, novos modelos de realização do direito, contratualização

A questão legislativa, cumpre salientá-lo, tem de se colocar no plano mais vasto da realização do direito.

É sabido que modernas orientações metodológicas apontam para uma certa relativização legislativa, em sintonia com uma progressiva valorização da aplicação ou realização do direito, no entendimento de que “o direito só o é em concreto” e de que deve afastar-se assim o abstracionismo redutor da justiça e da eqüidade, em proveito de uma efetiva flexibilização legal, melhor se diria, jurídica.

Como afirmo há anos – e, no entretempo, a afirmação ganhou mais consistência –, “o direito cada vez menos se entende com um sistema que sai pronto e acabado das mãos do legislador, para cada vez mais aparecer como algo a fazer em concreto, na prática dos tribunais e na prática jurídica não contenciosa. Há assim um certo deslocamento do eixo-legislador para o eixo-juiz, importando uma progressiva valorização da jurisprudência […]. À tarefa do legislador se junta, deste modo, a tarefa autônoma e decisiva do julgador, ‘súdito’ da lei, mas ao mesmo tempo ‘senhor dela’, na medida que ajuda a vitalizá-la, a descobrir o seu sentido, e tirar dela todas as virtualidades, contribuindo, por assim dizer, para ‘fazer a lei’, para ‘fazer o direito’”.

É óbvio que um tal entendimento repercute na questão da feitura da lei, reforçando a idéia de que se requer especial contenção e comedimento na preparação e na formulação das leis, valorizando decisivamente sua aplicação concreta como momento-chave da realização do direito.

Acresce o fato de que se está assistindo a um recuo do “direito estadual ou estatal”, e se fala mesmo de um “direito negociado”, embora se deva advertir que aquele recuo e esta negociação comportam perigos, relativamente aos quais importa estar prevenido e encontrar respostas, não avulsas, mas institucionais.

Como quer que seja, uma coisa se afigura certa: a necessidade de novos modelos de realização do Direito, incluindo modelos alternativos da realização jurisdicional e onde haverá certamente lugar destacado para paradigmas contratuais e para mecanismos de natureza ou de recorte contratual, que têm, de resto, tradição jurídico-política, precursora das dimensões modernas ou pós-modernas.

Estes novos esquemas, especialmente os de “direito alternativo” e de “justiça participativa”, são mais harmonizáveis, de resto, com uma democracia aprofundada ou de “mais alta intensidade”. Democracia que, para além de eleições livres e justas e do respeito, dos direitos fundamentais, acentua a vertente participativa ou de cidadania ativa, para “democratizar a democracia”, gerando-se, deste modo, novas formas de contratualidade social. E essas novas formas e esquemas já estão aí, na práxis, por vezes só de maneira informal ou fática, mas nem por isso menos importante e significativa. Assiste-se assim, no sentido que fica dito, a uma certa contratualização do direito, como também, e em consonância, a uma certa contratualização da política. A democracia, aliás, mormente enquanto metodologia e processo político, assenta numa postura dialogante, que reclama e incentiva a consensualização ou contratualização social ou sócio-política, visando uma sociedade mais consensual ou contratualizada do que autoritária ou impositiva.

Nesta linha, fala-se, algo enfaticamente, num a “reinvenção” do direito. Tratar-se-á, pelo menos, de um novo e renovado direito e não será possível operar essa renovação sem repensar amplamente toda a série de procedimentos necessários para levar a bom termo a elaboração legisativa.

 

Dimensionamento da elaboração legislativa: vertentes político-jurídica e técnico-jurídica

A este propósito cumpre salientar que o dimensionamento da elaboração legislativa comporta por assim dizer, uma vertente político-jurídica e uma vertente técnico-jurídica.

A primeira põe em jogo essencialmente a relação entre política e legislação. A segunda leva-nos à teoria da legislação e a legística.

No tocante à primeira vertente, importa realçar que o princípio democrático, entendido numa linha de participação, onde avulta a cidadania ativa, essencial a uma democracia avançada, implica, até constitucionalmente, uma democracia participativa, a qual acarreta relevantes alterações nos paradigmas do Estado e administração, co-envolvendo novos modelos de realização do direito, como acaba de dizer-se. O que tudo tem manifesto significado para a questão da feitura das leis.

 

Teoria da legislação e legística, formal e material

Quanto à segunda vertente, num plano mais técnico-jurídico, deparamo-nos com a teoria da legislação, de resto co-envolvida na outra vertente, e com a chamada legística. Trata-se de áreas do saber que têm a lei como objeto direto e imediato de estudo, abrangendo a produção normativa (legislação) e, nesta, os órgãos, valores, critérios, procedimentos e técnicas de feitura legislativa, em harmonia com os princípios enformadores ou conformadores, à cabeça dos quais se encontram os princípios constitucionais.

Está em causa, antes de tudo, a normação jurídica, onde assume particular relevo a concepção e formação das leis, sujeita a certas regras, com ou sem vinculatividade jurídica, dirigidas genericamente a melhorar a produção e a qualidade dos diplomas legais, sempre com respeito das especificidades existentes no processo legislativo.

Trata-se, depois, da denominada legística, quer material, quer formal. A legística matéria versa primordialmente sobre a criação de soluções normativas (v.g., necessidade da legislação, prévia ou sucessiva) e diversas questões relacionadas com a elaboração dos projetos e dos textos finais (por ex., comissão elaboradora, consultores, processos de participação e audiência de entidades, públicas ou privadas, onde se enquadra a participação dos cidadãos na feitura das leis através da internet, exposição de motivos, outras questões ainda). A legística formal tem em mira, fundamentalmente, o discurso, a linguagem e a redação dos textos legais. Merece saliência, no plano legístico, a desmaterialização de procedimentos, com recurso às novas tecnologias e informação e comunicação, facilitando, por ex., a aprovação e publicação de diplomas legais e aproximação aos cidadãos, e permitindo a redução de custos. É o caso da disponibilização do Diário da República em versão eletrônica, de acesso universal e gratuito, e de outras mídias de administração eletrônica.

A legística, visando, a melhorar a atividade legiferante, designadamente através da consolidação e da compilação oficial de legislação, tem sido recentemente, em Portugal, alvo de importantes contributos, em nível de organismos governamentais, em especial a Presidência do conselho de ministros e Ministério da Justiça (como é o caso do “Gabinete de Política Legislativa e Planejamento do M.J.”), sem esquecer outros ministérios (recorde-se a “Comissão de Simplificação Legislativa”, do então Ministério da Reforma do Estado e Administração Pública) e a contribuição de outras entidades, como o INA (Instituto Nacional de Administração), além de valiosos contributos de natureza individual.

De destacar também, em nível europeu, diversos estudos, propostas e acordos, com o relatório final do “Grupo de alto nível para a qualidade legislativa”, conhecido como “relatório Mandelkern” (2001) e o novo Acordo Interinstitucional sobre a qualidade legislativa intitulado “Legislar Melhor” (2003). Muito recentemente, o presidente da Comissão Européia, Durão Barroso, reiterou a necessidade de eliminar legislação, que considerou excessiva, desnecessária, por vezes até absurda.

Por último, refira-se à resolução do conselho de ministros português nº 63/2006, de 18 de maio deste ano, que aprovou o “Programa Legislar Melhor”. Com ele se pretende amis participação, adequação e qualidade nos atos normativos, com mais preocupação pela simplificação e transparência dos procedimentos, de forma a desburocratizar o Estado e a facilitar a vida dos cidadãos e das empresas. “A concretização destes objetivos conforma-se com “as recomendações da União Européia e de organizações internacionais a que Portugal está associado, no âmbito das iniciativas da chamada Better Regulation e insere-se no esforço global do Governo em ordem à simplificação e desburocratização, constante do chamado Programa SIMPLEX 2006. O programa “Legislar Melhor” contém numerosas medidas, mormente no plano da legística, formal e material, nas áreas que já assinalei, e noutras. Deve destacar-se, a mais já dito, a  “adoção de programas regulares de formação de técnicos e especialistas em legística e em ciência da legislação”, bem como, na esfera organizativa e no quadro do Plano de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE), a implementação de estruturas técnicas indispensáveis ao bom funcionamento do Governo, nominativamente no que diz respeito aos procedimentos de produção de normas jurídicas.

 

Conclusões

a) A crise na produção legislativa, elevando-se, sobretudo numa legislação freqüentemente inflacionada e ou defeituosa, impõe a necessidade de simplificação e melhoria legislativa.

b) Tal necessidade torna-se premente num contexto que valoriza a aplicação ou realização do direito e em que se reclama flexibilização jurídica. O que, por sua vez, aponta para a emergência de novos modelos de realização do direito, onde haverá lugar destacado para paradigmas e mecanismos contratuais.

c) Este renovado direito configura novos relacionamentos no plano político e democrático, mormente no que toca à legislação.

d) Para além de uma vertente político-jurídica, onde ganha força a contratualização sócio-política, visando uma sociedade mais consensual do que autoritária, há que prestar especial atenção à vertente técnico-jurídica, no âmbito da teoria da legislação e bem assim da legística, formal e material.

e) A teoria da normação jurídica e as regras visando a reduzir, consolidar e melhorar a produção legislativa, matérias sobre as quais atualmente se registram importantes contributos, são de crucial importância para a qualidade legislativa e ajudarão a minorar a crise do direito e da Justiça, concorrendo para a edificação de uma melhor sociedade.